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Coluna

A psicanálise e a roupa suja das mulheres

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Exposição “Varal de roupa suja - vamos mudar o conceito de que lavar roupa suja é ruim?” foi montada no Instituto Federal - Campus Porto Alegre - Divulgação
Vamos mudar o conceito de que lavar roupa suja é ruim?

Semana passada comemoramos o Dia Internacional da Mulher, data que marca vários eventos femininos, com muito sangue e suor das mulheres que a protagonizaram, desde 1910. Naquele ano, em Copenhague, na Dinamarca, Clara Zetkin, feminista marxista alemã, tomou a palavra, durante a II Conferência Internacional de Mulheres para propor às trabalhadoras do mundo inteiro que se organizasse um dia internacional das mulheres. Com isso, elas poderiam turbinar uma campanha mundial pelo direito ao voto.

Em 25 de março de 1911, 146 trabalhadores de uma indústria têxtil americana, dos quais 125 eram mulheres, em sua maioria imigrantes judias e italianas com idade entre 13 e 23 anos, morreram em um incêndio da fábrica para a qual trabalhavam. A tragédia provocou uma intensificação da luta das mulheres operárias estadunidenses. A “União internacional de mulheres da indústria têxtil” ficou mais ativa do que nunca em suas reivindicações de condições dignas de trabalho.

Mas foram as russas soviéticas, em 1917, que fizeram com que a data entrasse definitivamente para a história da luta das mulheres. No 8 de março daquele ano, elas tomaram as ruas de Petrogrado (São Petesburgo), reivindicando “pão e paz” (nome que deram a seu movimento), se insurgindo contra a monarquia e contra a participação Russa na I Guerra mundial. A revolta durou vários dias, ganhando cada vez mais o estatuto de greve geral e luta política, cujo resultado foi a queda da autocracia russa e a ascensão dos bolcheviques ao poder.

Então, a data, além de celebrar a memória das muitas mulheres que perderam suas vidas na luta, celebra também a dimensão socialista desta última. Pois esta luta, que começou pelo direito ao voto, foi muito além dele, transformando-se em uma batalha contra o patriarcado e o sistema capitalista.

Todo este introito histórico é para dizer a vocês que vale a pena que nos perguntemos o que é que realmente “comemoramos” no 8 de Março. De minha parte, prefiro pensar em celebração, que nos remete mais a um rito de memória do que a uma atitude triunfal e festiva, embora me pareça muito legítimo que também comemoremos, nesta data, a coragem das mulheres que lutam. Pensemos então em comemorar e celebrar, para sermos mais justas.

Minha celebração-comemoração começou na segunda pela manhã, com uma roda de conversa com mulheres que participam do projeto “mãos de mães”, lá na sede do Cuidado que Mancha, este maravilhoso grupo de teatro que há quase três décadas atua lindamente na cena do viver, e na vida que se encena. As mães recebem ali formação em gastronomia e em outras áreas, para geração de renda, e suas crianças são acolhidas e estimuladas por atrizes que se ocupam delas enquanto suas mães se ocupam de melhorar suas vidas. Foi uma experiência muito intensa, e muito grandiosa, a de escutar aquelas mulheres e vê-las escutando umas às outras, e se ajudando reciprocamente a lavar sua roupa suja de toda uma caminhada no tempo.

Na terça-feira, fechei a agenda do consultório por várias horas (obrigada, querides pacientes, pela compreensão e sensibilidade) para ir para o Instituto Federal - Campus Porto Alegre montar, junto com uma colega de equipe, a exposição “Varal de roupa suja - vamos mudar o conceito de que lavar roupa suja é ruim?”. Vai até este dia 14, quando teremos, além da exposição e palestra, uma apresentação sobre o trabalho do Projeto Gradiva - atendimento clínico psicanalítico para mulheres em situação de violência, a primeira clínica popular gratuita de psicanálise desta cidade, atuando desde 2019 com mulheres periféricas, em grande parte negras e em vulnerabilidade social.  

 

Na quarta-feira à noite e na quinta pela manhã, foi hora de dar, junto com minha colega Kellen Pasqualeto, uma aula magna para os alunos do curso de Psicologia da Faculdade Mario Quintana, sobre violência contra a mulher. Experiência linda e gratificante, pois pela primeira vez vi um auditório de estudantes de Psicologia com tantas alunas e alunos negros, e todos muito engajados na temática e na discussão do problema.

Na sexta-feira, voltei ao Cuidado que Mancha para assistir ao espetáculo cênico-musical comemorativo à semana do dia da mulher, e consumir as delícias gastronômicas preparadas pelas mulheres do projeto “mãos de mães”.

Enfim, passei toda a semana, e ainda prossigo, praticando a psicanálise na qual desde sempre me engajei: uma psicanálise que não se contenta em ser subversiva apenas pelo fato de dar lugar de palavra ao desejo humano e à sua ética. A psicanálise da qual lhes falo aqui, é uma psicanálise que se quer subversiva com toda a radicalidade que isso comporta, pois é uma psicanálise feminista, emancipada de seus ideais burgueses, e decolonial.

Por isso podemos andar por aí, lavando tanta roupa suja da história das mulheres e também da psicanálise (pois sim, foram elas que fundaram, com Freud, esta clínica) e colocando em xeque nossos ideais contemporâneos. Era o mínimo que dava para fazer para celebrar a memória de tantas mulheres, uma grande lavação de roupa suja que equivale a dizer: “Obrigada meninas, por tanto. É com a coragem de vocês que seguimos em frente”.

* Rosane Pereira é psicanalista e escritora, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre -APPOA, e Presidente da Associação Projeto Gradiva - atendimento clínico psicanalítico para mulheres em situação de violência. É autora, entre outros, de “Mulheres Esquecidas” (Editora  Bestiario, 2022).

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko