A fantasia de todo neurótico é justamente o suposto controle sobre a própria vida
O dia está chuvoso, mais uma vez pego meu guarda-chuva novo, como todos os outros que perdi nos últimos tempos e saio de casa. Já se foi o tempo em que eu tinha medo de andar pela rua durante a chuva. Não sei bem quando perdi esse medo, só sei que ele não era meu. Talvez veio das histórias que escutei durante a infância de crianças que passaram pela tragédia de se queimarem ao serem atingidas por raios durante tempestades enquanto brincavam em lugares desprotegidos ou simplesmente pelas queixas generalizadas a respeito de dias molhados. Lembro da minha amada avó materna que dizia que a chuva a tranquilizava, ela não sabia bem o que era, se o cheiro de terra molhada ou o som irregular do ambiente que a transportava para uma cachoeira, ou as duas coisas. Escutar ela trouxe um novo sentido pro que eu vinha significando até então.
Bem, caminho até um café, chego como sempre no horário combinado. Abro meu livro preferido e começo a lê-lo mais uma vez. Cem anos de solidão, do Gabriel Garcia Marquez. Tem algo que me prende naquela história de infinitas repetições de padrões familiares que culminam no fim do legado da família Buendia sobre a terra. Sempre penso: e se um deles, ao longo do tempo, tivesse feito algo de inesperado? Alguma coisa que o arrancasse da pura lógica da repetição de padrões, será que a história teria terminado de outra forma?
Meu amigo chega e eu volto pra realidade. Começamos a conversar sobre o futuro. Claro, falar do futuro é pensar sobre as escolhas presentes que temos feito. Cada escolha é uma aposta de que novos caminhos podem ser trilhados. Onde vamos parar? Não tem como saber. É como a metáfora que escutei esses tempos do processo psicanalítico: um colono que sai desbravar novas terras. Sabe muito bem o ponto de partida, mas não onde e o que vai encontrar pelo caminho e muito menos onde chegará. Enquanto relato minha história, me escuto e percebo que tudo o que eu planejei, até então, deu errado. E não é sobre tornar a minha vida uma grande catástrofe, mas perceber que cheguei onde estou e jamais tinha planejado estar aqui.
Não casei pensando em me separar, não me formei em Ciências Biológicas para depois fazer outra graduação, não comecei o doutorado para no segundo ano interromper, não achei que perderia um melhor amigo (que me apresentou o desejo pela Psicologia) num acidente de carro, nem que moraria há 430 km da minha família e muito menos que me tornaria analista. Nada disso estava nos meus planos. Eu planejava outras coisas, outra vida, viver outras histórias. Hoje, me tornei o que sou justamente por meu caminho ter se desviado.
Agora tenho novos planos, mas será que irão se realizar? Talvez eu já tenha minimamente aprendido que as coisas não serão exatamente da forma que eu estou planejando. Como suportar sair do controle e curtir um pouco mais a viagem? Afinal, a fantasia de todo neurótico é justamente o suposto controle sobre a própria vida. É ter tudo organizado para não precisar lidar com a angustiante posição de não saber. Mas bem sabemos que muitas vezes o tempo vira, a previsão muda e começa a chover. Da repetição de lidar com o imprevisível não nos livraremos. Enfim, na vida tudo é rio.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko