Maria Amélia de Almeida Teles, mais conhecida como Amelinha, nasceu no dia 6 de outubro de 1944 em Contagem, Minas Gerais. Sua militância política teve início no ano de 1960, quando ainda muito jovem aderiu ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) por influência de seu pai. Ao lado de Criméia, sua irmã mais jovem, foi presa em 1964, logo após o golpe, no Quartel do Barro Preto na capital mineira, onde permaneceram detidas por duas noites acusadas de subversão.
Em 1968, com o racha interno do PCB, as irmãs, vivendo em situação de clandestinidade desde 1965, decidem aderir ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), convictas da necessidade da luta armada diante da conjuntura política. Amelinha, então casada com o militante César Teles, passou a atuar junto à imprensa do partido. “Eu fazia o jornal Classe Operária. Se tiver alguma matéria sobre mulher, foi eu que escrevi”, lembrou Amelinha.
Em sua segunda prisão, ocorrida em 1972, Amelinha, César e Carlos Nicolau Danielli, companheiro de militância do casal, foram capturados pela equipe da Operação Bandeirantes (Oban). Em sua trajetória carcerária, passou pelo DOI-Codi/SP, Deops/SP, Presídio do Hipódromo e por fim, Casa do Egresso, somando aproximadamente 10 meses de reclusão. Após a soltura, deu continuidade à militância política, que tem entre suas principais bandeiras o movimento feminista e a busca pelos mortos e desaparecidos políticos.
Atualmente, com seus 78 anos, é coordenadora do Projeto Promotoras Legais Populares e integrante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Foi assessora da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo - Rubens Paiva e da Comissão da Memória e da Verdade da Prefeitura de São Paulo. É autora da pesquisa Breve História do Feminismo no Brasil (1993-2017, Alameda).
Dos 20 aos 27 anos, Amelinha viveu na clandestinidade. Todos com quem militou na imprensa foram mortos pela ditadura militar. Alguns não foram sepultados até hoje. “Por isso, sou uma sobrevivente”, contou em um encontro de mulheres jornalistas e comunicadoras, em São Paulo.
A família Teles é autora da ação declaratória que levou o major Carlos Alberto Brilhante Ustra a ser reconhecido pela justiça como torturador. “Foi o único militar declarado torturador pelo Estado brasileiro nas três instâncias. Só não recorreu porque morreu em 2015”, recorda Amelinha. “Eu denunciei não é por mim. Se eu não tivesse denunciado, teria enlouquecido”, reflete, ao relembrar que Ustra levou seus filhos pequenos dentro da sala de tortura, onde seu corpo era todo hematoma.
Nesta entrevista ao Brasil de Fato, Amelinha conta sua trajetória e fala sobre os feminismos de ontem e hoje.
Brasil de Fato RS - Como começou a tua militância, principalmente nesse trabalho de base com as mulheres?
Amelinha Telles - Então, eu sou uma militante política bastante antiga, vamos dizer que tem mais de 60 anos, porque eu estou com 78 anos. Nessa militância em busca da justiça social, eu acho que fui aprendendo com outras pessoas no caminho, ou vários caminhos. Participei da luta contra a ditadura, fui presa política.
Na ditadura a minha principal atividade foi a imprensa clandestina. Eu era do grupo responsável pela edição da Classe Operária, um jornal do Partido Comunista do Brasil, e também outras publicações a respeito da América Latina, questões mundiais, reforma agrária, questões políticas referentes ao processo da ditadura. E aí quando eu saí da prisão, eu passei a buscar, a continuar minha militância, mas tinha que ser de outras formas.
BdFRS - Tu ficaste quanto tempo presa?
Amelinha - Eu fiquei um ano presa. Aliás, eu saí junto com a que é hoje chamada ministra Eleonora Menicucci, nós saímos juntas da cadeia, e a gente até brinca, nós saímos no dia da Nossa Senhora Aparecida. Eu fui para um presídio, não para cumprir pena, porque na verdade eu fui condenada depois de muitos anos que eu já estava em liberdade. Porque o processo ficava ali cozinhando, deixando eu ser presa num processo mais formalizado.
A gente passava por vários centros de tortura, prisão, presídio
Então quando eu saí, a minha militância voltou pros assuntos e pros movimentos que estavam acontecendo naquele período de 1974. Eu falo sempre que 1974 foi um ano dos desaparecidos políticos. É onde teve mais desaparecidos políticos, quase não teve nenhuma morte publicada na mídia, eram desaparecimentos só. Foi a época do Geisel.
A distensão se deu com a continuação da forte repressão, mas de uma forma mais escondida. Antes se apresentavam as mortes como de terroristas mortos em tiroteio, ou então terrorista se suicidou, mas falavam o nome daquela pessoa que foi morta muitas vezes. Depois não, a gente não via mais nenhuma notícia sobre essas pessoas. Então eu saí justamente naquele período em que muitas mães buscavam, principalmente mães, mas familiares buscavam seus desaparecidos, e muitas me procuravam com a esperança de que eu tivesse alguma informação sobre essas pessoas. Quem sabe você viu, onde você passou, porque a gente passava por vários centros de tortura, prisão, presídio.
E aí por ser aquela época, eu fui testemunha mesmo de um desaparecimento, sem saber que eu estava sendo testemunha, que foi do Edgar Aquino Duarte. Então eu comecei a entender um pouco como que era o mecanismo da repressão, que é muito sutil, muito difícil, é muito desinformado, eles procuram te desinformar.
Eu lembro o medo que sentia de falar 'eu sou feminista', porque a própria esquerda não entendia
BdF RS - E como tu chegaste ao movimento feminista?
Amelinha - Eu comecei a participar na comissão de familiares de mortos e desaparecidos políticos na ditadura, participei do movimento feminino pela anistia e depois eu fui pro movimento feminista pela anistia. Porque eu comecei a sentir a necessidade dessa discussão de que eram muitas mulheres, e que nos traziam pra essa luta, tinha a ditadura, tinha um momento político, mas tinha nossa situação, nossa condição de mulheres.
Eu passei a militar num movimento feminista também muito incipiente, muito ainda tentando se entender. O feminismo era novo pra nós, essa palavra, eu lembro o medo que sentia de falar "eu sou feminista", porque a própria esquerda não entendia. Eu comecei a ver que o principal trabalho era sentir com outras mulheres. É engraçado isso, naquela época já tínhamos as fake news, a desinformação, a falta de diálogo. Por exemplo, o que define uma feminista, a gente discutia muito o feministômetro.
Eu comecei que, primeiro, eu era muito periferia. Eu sempre fui periferia, pela minha condição econômica, pela minha condição social e pela minha condição política, porque eu fiquei muito tempo na clandestinidade, e clandestinidade é você ser marginalizada. Eu fui educada, a minha formação na juventude que pesa muito, eu vejo hoje como é importante, foi toda na base da não-liberdade, do não-diálogo, da não-discussão, com tantas indagações e sem poder me manifestar. E aí eu vi que as mulheres da periferia sabiam muito mais coisas do que eu e do que outras feministas que eram consideradas “as feministas”, porque naquele tempo se discutia muito esse feministômetro. Para você se declarar feminista você tem que ser isso, isso, isso...
Aí eu percebi que eu sou feminista popular, mas assim, de vivência, não é de estudos. Vivência porque eu vivi com as mulheres da periferia, com as mulheres de sindicato, eu na clandestinidade. Além de ter toda a repressão, eu só trabalhei com homem, eu não trabalhei com mulher, na imprensa só tinha homem, você entendeu?
Então eu senti que tinha algo desconfortante pra mim sempre, e essas mulheres que foram pra guerrilha, muitas passaram ali perto de mim, porque as vezes tinha que fazer reunião, eu percebi nelas mais combatividade, mais coragem do que eu... Eu pensei nelas, todas elas, a minha irmã, a Elenira, a minha irmã mais nova, Eva, que morreu. Uma das poucas sobreviventes, Crimeia, ainda tem esse nome que virou moda agora, tanto é que muita gente pensa que ela é ucraniana, que é filha de comunista e comunista é doido, tem uns nomes que não batem bem. Ainda bem que meu pai pôs, que é o pai que colocava o nome, comunista é tão machista quanto essa sociedade, e ele pôs Maria Amélia, que é o nome da minha avó. Pelo menos é um nome normal vamos dizer, agora Crimeia é anormal.
Eu fui trabalhar no jornal Brasil Mulher, que era um jornal feminista na época, era o único na época, e depois veio o Nós Mulheres, depois vieram outros. Mas aqui em São Paulo, qual que é o espaço que se tem pra discutir feminismo? E eu vi como era difícil discutir o feminismo, eu aprendi muito com essas mulheres. Tinha mulher que acha que o nosso jornal não era feminista, mas eu acho que era, porque até se declarava, e tratava de questões que hoje eu analiso que eram muito avançadas.
Encontrei mulheres maravilhosas daqui do meio popular, como do meio mais intelectual, mais acadêmico, mais partidário, eu sou uma mulher de sorte. Aí eu me dedico à educação popular, porque eu acho que a educação popular é um trabalho mais horizontal, é um trabalho mais dialogável. Eu já vi mulher falando: nossa, mulher trans, não, tenho medo. Eu falei: vamos trazer uma aqui e vamos conversar com ela? Na conversa é uma mulher como nós, como qualquer outra mulher, e com problemas, cada uma de nós tem seus problemas.
BdF RS - Na tua opinião, a partir de toda essa tua vivência, quais seriam as principais bandeiras pra esse 8 de Março?
Amelinha - Eu acho que tem as nossas bandeiras que já são tradicionais, contra a violência, pelo direito de decidir, pela autonomia, mas eu acho que as bandeiras políticas gerais têm que estar nas nossas manifestações. Hoje nós temos que defender a democracia e o governo eleito pelo povo, com todas as críticas que nós possamos ter, nós temos que defender, porque esse governo foi eleito numa circunstância muito difícil, porque o país tá dividido. Foram 58 milhões de votos e 60 milhões de votos, quer dizer 2 milhões de votos pra esse país aqui é muito pouco.
Houve uma ditadura fascista, houve vítimas e sobreviventes, e o Estado brasileiro nunca reparou a altura dos acontecimentos
As ameaças estão presentes, o que fizeram em 8 de janeiro mostra o quanto que nós estamos despreparadas pra enfrentar os ataques fascistas. Nós enquanto sociedade, enquanto governo democrático, nós estamos despreparados. Eles avisando que iam fazer a manifestação, porque eles avisaram, e eu como sou boa nessa rede social, eu vi isso antes, mas na minha cabeça ficou que alguém lá tinha um serviço de inteligência da esquerda que ia tomar as providências, e não. Aquilo ali foi gravíssimo, eu considero que o 8 de janeiro não pode ser esquecido.
Nos remete a pensar que nós temos que ver a história desse país, quer dizer, houve uma ditadura fascista, houve vítimas e sobreviventes, e o Estado brasileiro nunca reparou a altura dos acontecimentos. A própria manifestação do Bolsonaro naquele dia 17 de abril de 2016, quando ele fala em memória de Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, ou seja, ele faz uma apologia da tortura, do torturador, e não há uma reação do próprio Parlamento, já nem falo da sociedade, a sociedade ficou nos cantinhos se manifestando. Nós temos que ser mais contundentes, e eu acho que esse 8 de Março é o momento.
BdF RS – Completa exatamente dois meses do 8 de janeiro...
Amelinha - Eu acho que nós temos que mostrar essa nossa defesa da democracia, do governo eleito, esse governo está precisando de muito apoio popular, se não ele não vai dar conta. Acho que as pessoas têm que pensar isso, nós temos que manifestar contra esse fascismo bolsonarista, que aqui em São Paulo ele está presente, inclusive no Estado, em vários estados.
Foram as mulheres trabalhadoras que começaram a falar do 8 de Março
Quer dizer, o governo federal está muito ameaçado, e eu acho que como militante, com meus 78 anos, e o Lula tem 77 anos, ele tem um ano de diferença, porque ele é de outubro e eu também... E eu agradeço no fundo do meu coração, não agradeço por aí, mas no fundo do meu coração eu agradeço ao fato dele se assumir candidato, de ir à luta, porque ele era o único que nós tínhamos.
Nós temos um acirramento da desconfiança, da dispersão, do separatismo, desse separatismo que existe no mundo. Com esses anos de fascismo que a gente viveu, de ataques o tempo todo, nós temos que retomar a nossa história, a história de luta. Então eu penso que nós temos que sempre lembrar da história, e o 8 de Março é um marco.
Foram as mulheres trabalhadoras que começaram a falar do 8 de Março, a criar essa data, tanto é que essa data era dos movimentos sindicais, depois ela vem pra rua, vem pra todas as mulheres. A gente tem que lembrar dessa história, porque a história traz muitas vivências de resistência, de enfrentamento e de superação. Porque nós temos que, com certeza, superar isso. E vamos superar, porque tudo passa na vida. Eu já vi que tudo passa, isso também vai passar.
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Edição: Marcelo Ferreira