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"No mês de fevereiro, vivenciei em Barra Grande, uma vila no litoral de Piauí, uma linda experiência numa comunidade de bio-construtorAs" - Foto: mariam pessah
Celebramos o 8 de Março, mas desejamos estender nossa luta ao mês todo, até chegar ao ano inteiro

Está iniciando março e nós, feministas, o associamos ao mês de luta das mulheres.

Em Porto Alegre já começaram as atividades. Dia 2, teve no Armazém do Campo um potente encontro organizado pelas compas do MST, com música, canções, muita poesia combativa e necessários discursos em fúria. 

Gosto de pensar que temos uma estratégia, a de dar visibilidade a uma data específica, o 8 de Março, mas que desejamos estender nossa luta ao mês todo, para assim, chegar ao ano inteiro de lutas e resistências.

Então, foi isso que eu vivenciei no mês de fevereiro, em Piauí. Deveríamos chamar de acaso como é que eu cheguei naquela comunidade maravilhosa de bio-construtorAs? Desde que conheci a Adriana, fiquei muito curiosa em visitar esse espaço em Barra Grande, onde se vê, se fala e se respira permacultura e feminismo.

Fiquei 8 dias com elas. Dizem que o 8 simboliza o infinito.


"Esse lugar tem muitos grupos de mulheres e os feminismoS estão em alta. Milagres existem" / Foto: mariam pessah

Quando cheguei, já estavam me esperando. Coisa mais linda! Elas sabiam que em Porto Alegre eu organizo o Sarau das minas há 6 anos, então, Thais propôs um encontro no Quintal das artes, Suzane topou, Mari começou a ensaiar e todas juntas saraureamos. Barra Grande é uma vila, no litoral de Piauí, com 2.900 habitantes. Detalhe. Tem muitos grupos de mulheres e os feminismoS estão em alta nesse lugar. Milagres existem.

Durante esses 8 dias, tudo foi novo. Neste momento, no estado do Nordeste que fica no extremo oposto de Porto Alegre é o inverno e chove todos os dias, ou quase. Nossa atividade seria em um espaço aberto. Como iriam se apresentar dois grupos de mulheres que fazem música, havia que garantir um teto. Um teto todo nosso. O tema, o dia todo, foi: e se chove? E o que dizia cada aplicativo de clima minuto a minuto. Isso fazia parte da organização, do compromisso que cada uma sentia com a atividade, de desejar um encontro nosso.

Tivemos uma noite estrelada, com música, poesias e exposições de arte. Não precisamos explicar que era um momento nosso, que não, que não discriminávamos os homens, mas que preferíamos estar entre nós-outras. As poesias lidas foram todas de autorias de mulheres e assim como as cantoras, as músicas também eram mulheres. Não foi necessário dizer que nós também entendemos de som, que podemos fazer força transportando instrumentos, que também somos motoristas. Que estamos em todas partes. Será isso um milagre ou consciência de autonomia feminista?  

Também não precisamos explicar que nós não somos tema, tema de sarau, tema de canções escritas por eles. Nós somos acontecimentos. Nós-outras desejamos relatar o mundo e nos escutar na visão das nossAs vozes.


As casas são todas de bioconstrução / Foto: mariam pessah

Muitos anos atrás, eu sonhava com viver em uma comunidade e, durante muito tempo, e, com muitas amigas e companheiras, falamos sobre isso. Cheguei a escrever, inclusive, a comunidade que eu sonhava. Até que mostrei o projeto para uma amiga e sua resposta imediata foi: vamos fazer? E me dei conta que nesse momento eu estava mudando o rumo da minha vida, entrando pela primeira vez na Universidade, com 46 anos, e que também eu nunca construiria meu sonho na Europa. A minha amiga era do Estado Espanhol.

No meu sonho, cada uma de nós teria sua casa-quarto com banheiro e seriam importantes os espaços comuns. Uma vida, ou várias, não cabem em 8 dias. Em tão pouco tempo não conheci direito o funcionamento da comunidade, mas consegui sentir e ver infinidade de coisas. Muitas vezes me emocionei vendo na prática algo parecido ao que eu tinha desenhado no papel. Fiquei na casa de Adriana que foi a primeira construção das terrinhas, no início, habitada por Vivi, Carol e Mari. Um quarto amplo, com uma cozinha do lado de fora com poucas paredes, o que significa que quando chove, a gente se molha, dependendo do vento. Em Barra Grande o vento é uma presença constante. Dizem que é bem mais forte no verão. Não consigo imaginar.

O banheiro seco, ficava a uns dez ou doze passos da casa. O teto foi feito recentemente, quer dizer, até então, quando chovia a pessoa se molhava não só caminhando aqueles dez ou doze passos, mas também tomando banho ou sentada no vaso. Que aliás são dois, um para xixi e um para cocô. Este não precisa de água, cobre-se com serragem, depois é deixado ao sol até secar e virar adubo. Aí volta à terra. Isso gera uma metáfora preciosa, cada uma se responsabiliza pela própria merda.


O banheiro seco fica a uns dez ou doze passos da casa / Foto: mariam pessah

Poderia seguir escrevendo páginas e páginas sobre a minha experiência (in)finita na comunidade, sobre todas as reflexões que ainda estão dando voltas. Provavelmente existem muitas comunidades pelo Brasil afora e cada uma talvez seja um pouco o ovo da felicidade. Cada conhecimento coletivista faz seu papel contra a escravidão capitalista e, algumas, também contra a ditadura patriarcal.


A cozinha é coletiva / Foto: mariam pessah

Mas como acasos não existem porque sempre há um fio condutor, mesmo que às vezes algo invisível, gosto de pensar que temos uma estratégia, a de dar visibilidade a uma data que está chegando, mas que desejamos estender nossa luta ao ano inteiro e a todos os lugares e cantos do nosso maravilhoso pluriverso. Obrigada à coletiva Arrumas por esse belíssimo trabalho, pelo feminismo no cotidiano. Por ter me aberto tantas portas.


Espaço foi construído pela coletiva Arrumas / Foto: mariam pessah

* mariam pessah : ARTivista feminista, escritora e poeta, autora de Em breve tudo se desacomodará, 2022; organizadora do Sarau das minas/Porto Alegre desde 2017 e coordenadora da Oficina de escrita e escuta feminiSta. 

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko