No fim da rua Sarmento Leite, no bairro Cidade Baixa, está um antigo casarão que carrega em sua arquitetura as marcas do tempo: pintura degradada, rachaduras nas paredes e janelas frontais interditadas. Quem passa em frente ao imóvel não imagina que em suas dependências funciona uma das moradias da Casa Estudantil Universitária de Porto Alegre (Ceupa). Ali residem 14 estudantes vindos principalmente do interior do Rio Grande do Sul, mas também de outros estados e países.
Desde a década de 1950, o casarão é uma residência estudantil autogerida da Ceupa, que assegura moradia a estudantes de baixa renda que estejam obrigatoriamente matriculados em qualquer instituição de ensino, seja ela pública ou privada. Embora possua o título de entidade de utilidade pública municipal, a Ceupa não recebe nenhuma assistência do poder público para a manutenção da casa.
Ao longo dos anos, o espaço tem sido mantido por meio de doações espontâneas e colaboração dos próprios moradores. Toda quantia arrecadada é destinada ao pagamento de contas de água, luz e internet, não havendo recursos para qualquer tipo de reforma. Com problemas estruturais diversos, como ausência de saídas de emergência, infiltrações e rede elétrica em mau estado, a falta de políticas voltadas para a conservação de moradias estudantis autogerenciáveis tem levado o casarão da Ceupa à ruína.
Acolhedora, mas decadente
“Muitas pessoas daqui mesmo da Cidade Baixa não sabem que é uma casa de estudante, pensam que é uma ocupação”, relata o presidente da Ceupa, Gutiélis de Vargas. Morador há mais de um ano, ele veio da cidade de Paverama, região do Vale do Taquari, para cursar Administração na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Sem condições de pagar o valor médio cobrado pelo aluguel de imóveis na Capital, Gutiélis viu na Ceupa uma possibilidade de continuar os estudos.
No casarão, Gutiélis dorme em um quarto caracterizado por cupins, assoalho esburacado e forro com excesso de umidade. “A gente precisa fazer muitas reformas e isso demanda muito dinheiro, que é algo que os moradores daqui não têm. Nós já viemos pra cá porque somos de baixa renda, então é difícil a gente ter recurso”, lamenta a situação precária.
Com 13 quartos distribuídos em três andares, a casa possui uma sala principal e um único banheiro com chuveiro no primeiro andar. O terceiro andar, constituído por dois quartos, está desativado por não atender os requisitos da legislação de saídas de emergência. Nos fundos da casa, foram construídos uma cozinha, uma lavanderia, um banheiro e outros quatro quartos. Estes últimos foram desativados após terem sido atingidos por uma árvore que caiu durante temporal no dia 15 de fevereiro deste ano.
Um dos quartos desativados pertencia ao estudante Carlos Junior Jordão Wynter, mestrando em Planejamento Urbano e Regional na UFRGS e natural de Minas Gerais. Carlos mora há três anos na Ceupa e precisou se deslocar para outro quarto da casa. Ele não estava no local no momento da queda da árvore.
No instante do ocorrido, os moradores da Ceupa acionaram o Corpo de Bombeiros, que foi até o local e retirou apenas uma parte da árvore. Os moradores fizeram uma nova notificação, mas os bombeiros não voltaram. A Prefeitura Municipal também foi procurada e informou que teria o prazo de até dois dias para os técnicos realizarem uma visita. Após 12 dias, a árvore ainda não foi removida.
“Se não for feito nada agora, a casa vai entrar em colapso”. É com essas palavras que o ex-morador Rodrigo Jankoski descreve a condição do casarão. Rodrigo é graduando em Jornalismo no Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter) e, para ele, a Ceupa é símbolo de um espaço afetivo.
Seu lugar favorito na casa, o jardim, no entanto, também é uma de suas maiores preocupações. Ele conta que árvores de grande porte foram plantadas no entorno do casarão sem obedecer a um plano de arborização, o que resultou em entupimento de calhas e raízes que ameaçam a estrutura.
“Foram plantadas aleatoriamente, tem um Guapuruvu gigantesco que se cair vai atingir o prédio da frente. Quando me ligaram contando que tinha caído uma árvore e precisavam de ajuda, eu vim correndo. Eu tenho um carinho muito grande por essa casa, hoje meus grande amigos são daqui”, conta Rodrigo.
Quem mantém o casarão em pé
“Anos atrás, eu bati no portão para doar uma estante de livros, acreditando que era uma ocupação. E aí os estudantes me convidaram para entrar e conhecer a casa e me mostraram tudo. Eu saí muito mexida emocionalmente com a precariedade estrutural da casa”, relata a fotógrafa Marina Chiapinotto.
Ao conhecer mais de perto a realidade dos estudantes, Marina decidiu registrar o cotidiano dos moradores em uma série de fotografias com o objetivo de romper com o processo de invisibilização que estudantes com dificuldades socioeconômicas enfrentam. Os registros podem ser conferidos nas redes sociais da fotógrafa.
“Acredito muito na potência desse trabalho para dar visibilidade para a questão da moradia estudantil. A gente vê que, no âmbito da produção fotográfica nacional, a questão das ocupações é muito trabalhada, mas ninguém se dedicou até então a documentar as moradias estudantis”, comenta Marina, com a esperança de que se torne inspiração para que fotógrafos de outras regiões do Brasil também olhem para os estudantes.
As casas estudantis, de modo geral, representam um futuro mais possível para estudantes financeiramente vulneráveis. O jornalista e mestre em Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) Luis Henrique Silveira atribui a sua formação à Ceupa. Luis foi morador da casa nos anos de 1984 a 1988. Fugindo à regra, ele já morava em Porto Alegre e entrou na casa quando ainda frequentava um cursinho pré-vestibular.
Para ele, a casa se tornou mais fundamental nos dias de hoje. “Agora que aumentou as cotas e as bolsas nas universidades para pessoas carentes, houve um aumento na demanda. Se tem uma política pública que garante a entrada de estudantes carentes nas universidades, é preciso também que haja políticas que façam os estudantes se manterem nas universidades”, avalia.
Com a intenção de preservar a memória da Ceupa, Luis produziu o documentário “Antes que a casa caia”. Lançado em 2022, o filme reúne depoimentos e lembranças de antigos e atuais moradores da casa, abordando a importância de uma política de assistência à moradia estudantil.
“A ideia do documentário surgiu para tentar fazer com que o tema casa de estudantes seja pautado e, com a visibilidade do documentário, buscar mais apoio externo e recursos para garantir que a casa sobreviva”, conta o jornalista.
Por uma política pública de moradia estudantil
Os estudantes que residem na Ceupa propõem a elaboração de uma política nacional de moradia estudantil. De acordo com eles, as políticas existentes não são capazes de suprir as demandas.
“Em Porto Alegre, por exemplo, a Casa do Estudante Universitário (CEU) da UFRGS não tem capacidade para receber todos os seus estudantes, além da estrutura precária e da imensa burocracia para o processo de ingresso”, cita trecho de carta aberta escrita pelos moradores ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O documento foi entregue ao presidente pela deputada federal Maria do Rosário (PT/RS) durante visita de Lula à capital gaúcha, em setembro de 2022.
A Ceupa reivindica a criação de uma Secretaria Nacional de Assistência Estudantil, com setores e estrutura que visem a qualificação da vida dos moradores de casas estudantis; de uma Subsecretaria Nacional de Casas de Estudantes; de um Plano Nacional das Casas do Estudante estatais e autônomas e de um Plano Emergencial para as Casas do Estudante estatais e autônomas, tendo em vista as condições precárias das existentes.
Esperando por verba
Atualmente, a Ceupa mantém três casas localizadas na Cidade Baixa, em Porto Alegre: a Ceupa I, casarão da rua Sarmento Leite, nº 1053; a Ceupa II, na Rua José do Patrocínio, nº 648; e a Ceupa III, na Rua Luiz Afonso, nº 347. Ao total, a instituição tem capacidade para abrigar 65 moradores efetivos, possuindo inclusive espaço para acolher temporariamente cerca de vinte estudantes que estejam na cidade para participação de congressos ou seminários.
O custo total para manter minimamente as três casas fica na média de R$ 7 mil mensais. A arrecadação mensal média de R$ 8,4 mil, o que, de acordo com os moradores, impossibilita um investimento robusto nas reformas que precisam ser realizadas.
Em novembro de 2022, a deputada estadual Luciana Genro (PSOL) destinou uma Emenda Parlamentar no valor de R$ 70.200,00 para financiar reformas necessárias para manter o funcionamento da Ceupa. A emenda proposta para o orçamento de 2023 foi aprovada na Comissão de Finanças da Assembleia Legislativa e sancionada pelo então governador Ranolfo Vieira Júnior (PSDB).
Os moradores da Ceupa aguardam a liberação do recurso. Nesta segunda-feira (27), Gutiélis e Rodrigo reuniram-se com a diretora do Departamento de Igualdade Étnico e Racial, Sanny Figueiredo, para tratar da verba. Uma visita da equipe da Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos, nas três casas da Ceupa deve ser agenda para os próximos dias.
A reportagem do Brasil de Fato RS solicitou posição do governo do estado sobre o caso. Até o fechamento desta matéria, não houve retorno. O espaço segue aberto.
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Edição: Marcelo Ferreira