Rio Grande do Sul

SÉRIE DESASTRES

Artigo | Reconhecer o que está por trás do desastre é o primeiro passo

"A falha na providência de redução da vulnerabilidade social é fator potencializador de injustiça socioambiental"

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Casas destruídas em deslizamentos na Barra do Sahy, em São Sebastião (SP) - Rovena Rosa/Agência Brasil

Região Serrana (2011), Petrópolis (2022), São Sebastião (2023), apenas para citar os mais recentes, são desastres que devem nos fazer refletir a respeito da complexidade existente no entrelaçamento entre o infortúnio e a injustiça nas relações humanas.

Como bem explica Judith Shklar no livro The Faces of Injustice, “a injustiça por trás do desastre não é produto apenas da imprudência, mas do fracasso no enfrentamento de um risco com previsibilidade conhecida, da mitigação da desigualdade, bem como do descaso com o sofrimento alheio”.

A proposição reflexiva desta afirmação não deve ser lembrada somente quando a ordem colapsa totalmente. Isso porque as maiores injustiças ocorrem de forma contínua, cotidianamente, no âmbito das estruturas institucionais estabelecidas pelo sistema operativo posto. Nesse contexto, não raramente, quem tem a obrigação de agir precavidamente para evitá-las é o mesmo que, no uso de suas atribuições, contribui para as maiores, e o que é pior, sem grandes protestos por parte do cidadão.

A falha na providência de redução da vulnerabilidade social é, portanto, fator potencializador de injustiça socioambiental e de desrespeito aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. Torna-se praticamente impossível falar na construção de uma sociedade livre, justa e solidária; na garantia do desenvolvimento nacional; em erradicação da pobreza, marginalização e redução de desigualdades sociais e regionais; na promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, quando mais e mais desastres potencializam a desigualdade, atrasam o desenvolvimento das regiões afetadas e aumentam os marcadores da diferença.

A promoção da identificação, avaliação das ameaças, suscetibilidades e vulnerabilidades a desastres, de modo a evitar ou reduzir sua ocorrência é um dos objetivos da Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, instituída pela Lei n.º 12.608/12 e encontra-se presente, também, entre as atribuições dos entes federados.

Desse modo, a redução do nível de vulnerabilidade integra os deveres de proteção previstos na legislação brasileira de defesa civil. Não se trata, portanto, de alternativa apresentada ao poder público e a coletividade, mas de obrigação passível de responsabilização quando descumprida, reconhecida, inclusive, pelos tribunais.

A presença do termo vulnerabilidade na legislação de proteção e defesa civil é o reconhecimento do legislador acerca da inegável relação entre desigualdade, injustiça e desastre. A desigualdade é injusta na medida em que se torna fonte de vulnerabilidade social e ambiental. Desconsiderar essa relação é a melhor receita para o desastre. As constituições, principalmente as democráticas, contemplam uma série de direitos específicos que podem ser mobilizados para reduzir vulnerabilidades. Diferentemente de reivindicações por razões morais, direitos reconhecidos pela legislação de um país possuem uma feição que sustenta e facilita sua pretensão em juízo.

Ao lado da parcela de responsabilidade pública, o processo de redução da vulnerabilidade é compartilhado. É tempo de refletir mais a respeito das implicações políticas, éticas e morais de uma sociedade que permite o crescimento “despercebido” de uma “subclasse de desastres, principalmente em uma nação comprometida, constitucionalmente, com a liberdade e a democracia.

O desastre não é natural. É construído em sociedade toda vez que se desrespeita a legislação ambiental e urbanística e permite a construção ou reocupação de área de riscos. No momento em que temos um conjunto de normas importantíssimas em matéria de proteção e defesa civil, mas a elas negamos eficácia por falta de implementação e estrutura. Quando se elabora o orçamento anual dos entes federados sem considerar o pior cenário possível de risco ou simplesmente se desconsidera a defesa civil na previsão orçamentária. Nas oportunidades em que há orçamento e o mesmo não é devidamente executado. Todas as vezes que fechamos os olhos para as necessidades do sistema nacional de proteção e defesa civil. Sempre que tratamos o desastre como meramente climático sem lembrar que esta é apenas uma espécie dentre tantas que temos no país. Quando criamos ou propomos a implementação de políticas públicas como de ordenamento territorial, desenvolvimento urbano, saúde, meio ambiente, mudanças climáticas, gestão de recursos hídricos, geologia, infraestrutura, educação, ciência e tecnologia, etc., sem considerar o gerenciamento de riscos e desastres.

Se desastres são fruto de escolhas humanas e de processos construídos socialmente, sua desconstrução evoluirá a partir de ações planejadas, que englobem um conjunto de decisões, planejamento e ações dentro de uma perspectiva de gestão e governança onde atores públicos, privados e coletividade tenham obrigações e penalidades pelo seu descumprimento claros.

Se os alertas não foram suficientes, as consequências reiteradamente veiculadas pelos desastres são argumentos mais do que fortes para que instituições e população compreendam que a maior ou menor capacidade humana de enfrentamento do desastre é, também, a medida da sua liberdade. Afinal, a redução das vulnerabilidades (ambientais, sociais, econômicas, sociais e culturais entre outras) de uma comunidade exposta a risco está diretamente relacionada com o reforço de uma série de liberdades pessoais, principalmente as ligadas aos direitos fundamentais mais básicos.

O problema é complexo e os gargalos da mesma forma porque o seu efetivo enfrentamento implica na flexibilização da enraizada perspectiva do eu e do meu. Mas a falta de consciência não é o fim. Há muito que fazer, basta querer. Estrutura, capacitação, financiamento, informação e um direito adaptado às necessidades sociais são alguns dos caminhos.

* Especialista em Direito Público com ênfase em Desastres e Direito Ambiental. Advogada, consultora e professora.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko