Socióloga formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ativista dos Direitos Humanos no enfrentamento ao machismo e racismo e ativista do movimento de mulheres negras, Reginete Bispo, tornou-se no dia 03 de fevereiro, a terceira deputada negra gaúcha na Câmara dos Deputados, juntamente com Daiana dos Santos (PCdoB) e Denise Pessôa (PT). Natural da zona rural de Marau (RS) em janeiro de 1963, iniciou na militância social junto à Pastoral da Juventude e na luta pela reforma agrária.
Filiada ao Partido dos Trabalhadores desde 1986 e integrante do Movimento Negro Unificado desde 1990, a parlamentar nesse novo ciclo terá como foco a luta contra a fome, o racismo e o machismo, em especial pelo espaço das mulheres negras. Assim como a defesa da terra e a proteção e titularização das comunidades quilombolas. “Nós vamos, aqui no Congresso Nacional, apoiar todas as iniciativas que venham no sentido de garantir direitos para as populações historicamente invisibilizadas ou marginalizadas. Queremos trabalhar para que essas populações sejam incluídas devidamente no orçamento público”, afirma em entrevista ao Brasil de Fato RS.
Ao se tornar uma das três deputadas negras gaúchas a ocuparem, pela primeira vez na história, o legislativo federal, ela ressalta a mudança de fotografia do poder no Brasil. “Essa fotografia começa a mudar, primeiro porque a pauta racial saiu da invisibilidade, e felizmente parte da sociedade brasileira está entendendo o que é a violência e o racismo institucional”, destaca.
Abaixo a entrevista completa:
Brasil de Fato RS - Em entrevista recente, a senhora afirmou que está em curso uma mudança de fotografia do poder no Brasil. Gostaria que falasse sobre essa nova imagem do poder e que impactos ela pode trazer?
Reginete Bispo - Começamos a viver um outro ciclo histórico no nosso país, onde se começa a ter o resultado das décadas, séculos, de luta do movimento social negro para ocupação de espaços de poder e decisão. As últimas eleições, tanto as municipais quanto a federal, apontaram uma mudança significativa nesse sentido. Elegemos bancadas negras no Rio Grande do Sul. Na capital, elegemos uma bancada negra de cinco vereadores (as) e, em várias outras cidades, elegeu-se bancadas negras. No ano de 2022, nas eleições parlamentares para a Câmara e o Senado, elegemos três deputados estaduais negros, duas mulheres e um homem, e três parlamentares negras, além de uma deputada federal no Rio Grande que é um dos estados mais brancos e mais segregacionistas do Brasil.
Parte da sociedade entendeu o que é a violência e o racismo institucional
Hoje o nosso partido, o Partido dos Trabalhadores, tem 10 parlamentares negros. Então, é uma mudança significativa porque, até a última legislatura, tínhamos dois, três parlamentares. No Senado, infelizmente, não ampliamos. Permanecemos com um único senador negro, talvez dois senadores negros, mas atuante na causa antirracista, apenas o senador Paulo Paim.
Essa fotografia começa a mudar, primeiro porque a pauta racial saiu da invisibilidade, e felizmente parte da sociedade brasileira está entendendo o que é a violência e o racismo institucional. Isso ficou muito mais evidente com o assassinato da vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro, que cada vez que se mexe nas investigações, aponta-se que tem gente muito importante envolvida. Marielle trazia com muita força e urgência a denúncia contra a violência policial e institucional contra as populações das periferias no Rio. A meu ver, isso foi o fato dela ser violentamente assassinada, ser uma mulher negra, porta-voz da sua comunidade.
E também com o movimento Vidas Negras Importam, com o assassinato do George Floyd. O Estado brasileiro não consegue mais explicar o assassinato todos os anos de mais de 60 mil jovens negros, a maioria mortos, assassinados pela mão do Estado.
Não tem mais como justificar a ausência do maior grupo populacional, as pessoas negras, 60% da população que não está representada nesse espaço (do legislativo).
Começamos a reverter esse quadro primeiro por parte da sociedade reconhecer a necessidade de nós, negros e negras, estarmos nesse espaço para que a democracia no Brasil seja efetiva, seja real e concreta. Outro elemento importante por estar contribuindo para fazer a mudança desse retrato do poder é o financiamento público das campanhas. O financiamento público possibilitou que pessoas negras e indígenas pudessem ter recursos para financiar as suas campanhas. Penso que foi importantíssimo, inclusive para as mulheres em geral, acessar esse recurso, especialmente com a garantia em lei de que, no mínimo, 30% desses recursos vá para as mulheres e as pessoas negras.
Sabemos que a pobreza no país tem cara, tem cor. É o povo negro
BdFRS - Com a posse, a senhora se torna a terceira deputada federal negra do Rio Grande do Sul a ocupar a Câmara dos Deputados juntamente com Daiana Santos e Denise Pessoa. O que isso representa e quais são as suas expectativas?
Reginete - A luta antirracista no nosso país criou uma onda negra. Estamos conseguindo eleger pessoas negras, LGBTQI+, mulheres, especialmente mulheres negras, porque isso é o resultado de muito trabalho, de muita luta para sair da invisibilidade. Por outro lado, penso que elevou o grau de consciência racial, do entendimento do que vem a ser a democracia efetivamente, de parcelas da população não negra, e que vem se somando na luta pela eleição de pessoas negras, especialmente as mulheres. No Rio Grande do Sul, isso foi muito presente.
Agora, com o governo popular e democrático, a democracia reestabelecida, podemos trabalhar para que a democracia se estenda a todos os níveis da política, especialmente no orçamento. Como o presidente Lula vem dizendo, precisamos incluir os pobres no orçamento.
E eu digo, nós precisamos incluir os negros, as mulheres no orçamento. Sabemos que a pobreza no país tem cara, tem cor. É o povo negro. Isso é fundamental e as bancadas negras, quer nos municípios, quer nas assembleias legislativas, ou no congresso nacional, vão ser fundamentais para legislar em favor dessa política de incluir a população negra, pobre, as mulheres, os indígenas no orçamento público.
Infelizmente no Brasil ainda vivemos muito sobre os resquícios da escravização de homens, mulheres e crianças negras. Ainda temos uma elite econômica que acredita que a maioria dos trabalhadores, das trabalhadoras, na sua maioria negros, não merecem receber um salário digno ou ter direitos trabalhistas. É por isso que temos uma desigualdade absurda no nosso país, onde uma parcela muito pequena da população concentra a maioria da riqueza. É por isso que se estabeleceu o teto de gastos.
Essa elite econômica estabeleceu um teto de gastos para as políticas sociais mas não estabeleceu um teto de gastos no orçamento da união que privilegia os que tem muito dinheiro. Ou seja, através das isenções fiscais, dos incentivos, são bilhões e bilhões de reais que nós, brasileiros, pagamos para a elite econômica dizer que gera emprego. Como se nós brasileiros tivéssemos que pagar pro empresário gerar emprego...
A bancada negra e as bancadas progressistas vão trabalhar para romper esse ciclo de violência, especialmente da violência econômica, a violência fiscal, porque quem paga imposto no país é o consumidor. É injusto que quem tenha muito dinheiro não pague impostos.
Vamos trabalhar com muito vigor no sentido de enfrentar o racismo religioso
BdFRS - A senhora tem uma forte atuação na questão da religiosidade africana. No início deste ano, o presidente Lula sancionou a lei 14.519 de 2023, que institui o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e das Nações de Candomblé. Como analisa a situação dessas tradições no país?
Reginete - As tradições de matriz africana são inúmeras. No Rio Grande do Sul, temos o batuque, que cultua os orixás, parecido com candomblé, mas tem a peculiaridade regional. Sabemos que, em cada região, tem uma manifestação distinta. Infelizmente o racismo institucional, estrutural e sobretudo o racismo religioso, tem penalizado essas expressões culturais e religiosas, sobretudo no último período. Os governos de cunho fundamentalista, intolerantes, e cunho fascista e racista, colocaram as religiões de matriz africana ou as tradições de matriz africana, na centralidade dessa perseguição.
Sabemos que as nossas tradições são de acolhimento, de cuidado. Não só com as pessoas mas com todos os seres vivos, com o meio ambiente. Isso incomoda demais os herdeiros da escravatura, aqueles que ainda pregam a supremacia racial.
As religiões de matriz africana representam a história de luta e resistência do povo brasileiro. Aqui no Congresso temos a Frente Parlamentar Mista de Defesa das Tradições de Matriz Africana. Eu já componho essa Frente e vamos trabalhar com muito vigor no sentido de enfrentar o racismo religioso, assim como o racismo estrutural.
BdFRS - O Rio Grande do Sul é o estado com maior número de praticantes de religiões de matriz africana, e com o maior número de terreiros. O que explica essa presença?
Reginete - Diferentemente do que a tradição eurocêntrica gaúcha coloca, o Rio Grande do Sul é um estado que tem a presença muito forte da cultura e da população negra. Representamos 20% da população gaúcha. O racismo sempre foi muito forte e as tradições de matriz africana foram muito presentes nessa história de luta e resistência. Para mim, isso representa que as tradições de matriz africana adotaram uma conotação forte, do tamanho da resistência que temos que fazer aí. Por outro lado, uma parcela significativa de brancos aderiu às tradições de matriz africana. O censo do IBGE de 2010 coloca, dos que se autodeclararam adeptos das tradições de matriz africana, aproximadamente 70% desses se autodeclaram brancos.
A prefeitura se aliou ao bolsonarismo, e entregou a cidade à especulação
BdFRS - Apesar do aumento de mulheres na Câmara - passou a ser de 91 representantes, aumento de 18% - ainda é menor do que o ideal, assim como a representatividade de raças e etnias. Como aumentar essa participação? Eu acho que na verdade a senhora respondeu na primeira pergunta, então com fomento de iniciativas, com financiamento...
Reginete - Para aumentar a participação tem que aumentar a presença de mulheres, de negros no Congresso. Durante a campanha, discuti muito isso e quero trabalhar pela paridade de gênero e raça na ocupação das vagas.
BdFRS - Qual era o slogan da sua campanha?
Reginete - Por um Brasil sem fome, sem racismo e sem machismo.
BdFRS - No ano passado, o Brasil de Fato RS fez um especial sobre quilombos urbanos em Porto Alegre. O que se observou é que, além da demora pela titularização, há uma forte presença da especulação imobiliária. Como a senhora descreveria a atual situação dos quilombos no Rio Grande do Sul e o que fazer para melhorar essa situação?
Reginete - A situação das comunidades quilombolas no país é crítica, sobretudo devido à política adotada nos últimos anos, de perseguição, de negação da certificação, de negação da titularização. Os processos estão parados. Recentemente estive reunida por duas vezes com a Fundação Cultural Palmares solicitando a celeridade na certificação e entrega de documentos das comunidades. Temos mais de 100 comunidades com processos abertos e estão todos parados. A matéria do Brasil de Fato acho que evidenciou muito isso, especialmente em Porto Alegre, onde temos 11 comunidades quilombolas. Mas temos uma prefeitura que se aliou ao bolsonarismo, e entregou a cidade à especulação imobiliária. E o principal alvo da especulação imobiliária são as comunidades remanescentes de quilombos que não estão com seus territórios regularizados. Então, é fácil expulsar e retirar uma comunidade, mesmo que ela esteja ali há 100 ou mais anos em cima do território.
Temos trabalhado no sentido de dar suporte para essas comunidades. Tenho acompanhado, em Porto Alegre, a situação do quilombo da Vila Kedi. Estão ali cercados. A prefeitura junto com os empreendimentos, dividindo, investindo pesado na comunidade para removê-los dali. As instituições públicas que deveriam estar na defesa dos interesses coletivos dessas comunidades, desenvolvem um papel que, a meu ver, não fica nítido a quem estão devidamente defendendo. É uma situação delicada, mas estamos mobilizados.
O país nunca reconheceu o direito à terra da população negra
BdFRS - A senhora tem a trajetória marcada também pela luta pela reforma agrária em um trabalho junto com os imigrantes e no combate ao racismo. Gostaria que nos falasse sobre essas pautas.
Reginete - Tenho origem no campo embora a minha vida adulta toda tenho vivido no meio urbano. Iniciei lá nos anos 80 lutando pela reforma agrária. Nesse processo fui incorporando a luta pela regularização dos territórios quilombolas e dos territórios indígenas. Que, na minha opinião, é onde está o grande problema agrário. O país nunca reconheceu o direito à terra da população negra, embora essa população tenha contribuído com mais de 500 anos de mão-de-obra, cultivou as terras, roçou, plantou, mas nunca teve acesso.
Então isso é um compromisso que eu tenho, de justiça social. Fazer a ruptura desse processo tão desigual. No nosso país com a desigualdade racial, a desigualdade de gênero passa por isso. Fazer a ruptura também desse monopólio dos meios de produção - e a terra é um meio de produção. As comunidades remanescentes de quilombo são produtoras rurais que se inserem dentro da agricultura familiar, produzem para a sua existência, mas também para a sua comunidade.
BdFRS - Fale um pouco sobre o seu trabalho junto aos imigrantes.
Reginete - Faço parte de uma organização de mulheres negras, o Instituto Akanni, que vem desde 2010 trabalhando com a população imigrante refugiada. Nosso trabalho é de enfrentamento ao racismo. Com a chegada de imigrantes caribenhos, na sua maioria negros, africanos, afro-latinos, nossa instituição passou a ser procurada porque esses imigrantes sentiram o impacto de uma estrutura racializada que tem no Brasil. Começamos a trabalhar no sentido da garantia de direitos, adaptação, integração dos imigrantes em geral, mas fundamentalmente dos africanos, caribenhos e afro-latinos que sofrem com mais veemência o impacto de um país tão desigual, mas sobretudo de um país cujo racismo estrutural define quem acessa determinados bens, quem acessa determinados serviços.
Aqui, no Congresso, vamos levar adiante essa pauta. Já vou ingressar na comissão parlamentar mista de migração do refúgio para tratar desse tema. Queremos estreitar as relações com as populações que migram, sobretudo os afro-latinos, africanos e caribenhos nos seus países, tanto na América Latina, quanto no continente africano e, para isso, é necessária uma articulação política importante. Porque nós somos imigrantes, e nós negros somos frutos, nós negros brasileiros somos uma imigração forçada, que foram os quase quatro séculos de escravização.
Estamos em diáspora e, por isso, é uma pauta tão importante para nós, para mim, mas penso que deva ser também para o governo brasileiro. Queremos uma vida digna para os imigrantes. Mais do que conseguir refúgio, conseguir entrar no território brasileiro é ter políticas públicas de integração, inserção, que potencializem a contribuição política, econômica, e sobretudo cultural que esses imigrantes trazem.
Ninguém enfrenta o racismo e o machismo se não estiver inserido no mundo do trabalho
BdFRS- Queria que falasse um pouco sobre os seus projetos.
Reginete - Vamos trabalhar pela paridade de gênero e raça nos espaços públicos, sobretudo nos processos seletivos. Ter uma política séria de enfrentamento ao racismo e as desigualdades raciais e de gênero. Vamos fazer jus ao slogan da nossa campanha, por um Brasil sem fome, sem racismo e sem machismo. E para que haja um Brasil sem fome, sem racismo e sem machismo nós precisamos de ter uma política séria de geração de trabalho e renda. Porque ninguém enfrenta o racismo e o machismo se não estiver inserido no mundo do trabalho, se não tiver uma remuneração, especialmente para as mulheres, mulheres negras.
Vamos apoiar todas as iniciativas no sentido de garantir direitos para as populações invisibilizadas ou marginalizadas. Que sejam incluídas no orçamento público. E que esse orçamento dê conta da assistência social, da educação, da saúde, da moradia e da cultura. Vamos estar comprometidos com o processo de integração do Brasil com a América Latina, o continente africano, o Caribe. Mas sobretudo vamos ter uma política séria de enfrentamento da violência de gênero e de raça. Não é admissível que cresçam no Brasil os feminicídios, que se dão a sua maioria sobre corpos de mulheres negras. Não é possível que se aceite com naturalidade a cultura do estupro, que se dão sobretudo sobre crianças e meninas negras.
E também não podemos mais aceitar que a mão armada do Estado brasileiro, que as polícias, todo o ano matem tantos jovens e sobretudo jovens negros. Então nós vamos fazer um debate onde a gente possa constituir uma polícia cidadã, comprometida com a vida, com a prevenção, e sobretudo nas comunidades que hoje estão assoladas pela violência, pelo crime organizado, e que nós sabemos que são as comunidades da periferia onde o estado não entra. Queremos os nossos jovens vivos e desenvolvendo seus projetos na sua plenitude. O povo brasileiro merece ter essa esperança.
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Edição: Ayrton Centeno