Depois de três estiagens seguidas (em algumas regiões foram quatro) os agricultores familiares e camponeses do Rio Grande do Sul convivem novamente com a devastação da falta de chuva. Lavouras perdidas, animais morrendo, famílias sem água potável para seu próprio consumo, endividamento. A realidade é desesperadora.
Um recorte deste cenário foi exposto para o Brasil nesta quinta-feira (23) com a visita do grupo interministerial que deslocou-se de Brasília até o assentamento Meia Água, em Hulha Negra (RS), nas proximidades da fronteira com o Uruguai. O período de estresse hídrico vem desde outubro, com precipitações abaixo da média, insuficiente para a manutenção da produção e já afetando severamente a própria subsistência para a população de mais de 300 municípios que declararam situação de emergência.
Um alento vem de Brasília com a presença de três ministros: Paulo Pimenta, da Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República, Paulo Teixeira, do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Wellington Dias, do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. Além de dois secretários executivos enviados pelo presidente Lula para um dos locais mais afetados pela seca reincidente. Mas “alento” não é sinônimo de “solução” e os agricultores e agricultoras que representam a classe que coloca mais de 70% dos alimentos na mesa do povo brasileiro alertam que é preciso ir além das medidas anunciadas para minimamente devolver à agricultura camponesa familiar sua capacidade de produção e às pessoas que dela tiram o seu sustento a capacidade de resistir e permanecer no campo produzindo.
Medidas anunciadas
São cerca de R$ 430 milhões liberados pelo governo federal, valor que deve ser usado em ações emergenciais na agricultura, desenvolvimento social e Defesa Civil. O repasse foi autorizado após reunião, no Palácio da Alvorada, entre o presidente Lula e ministros de sete pastas relacionadas ao tema, ainda na quarta-feira (22), para avaliar as demandas que têm chegado através de lideranças políticas, movimentos sociais e entidades representativas.
As ações alinhadas até o momento e anunciadas de forma oficial no ato de Hulha Negra preveem:
- Destinação de R$ 24 milhões, do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, para famílias de baixa renda, através de pagamento de até R$ 2.400 para famílias de pequenos agricultores cadastradas no programa Fomento Rural. O pagamento será realizado em duas parcelas de valores a serem definidos caso a caso no cadastramento do beneficiário.
- R$ 100 milhões, do Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional, serão utilizados no apoio às prefeituras na contratação de carros pipas para a distribuição de águas, também na aquisição e doação de cestas básicas, combustível, entre outras ações;
- Também há a previsão de incremento de R$ 300 milhões, a partir do Ministério do Desenvolvimento Agrário, em crédito para pequenos agricultores em duas linhas distintas.
Já da parte do governo estadual, cujo governador, Eduardo Leite, participou dos atos de Hulha Negra acompanhado de uma comitiva de secretários, não foram anunciadas novas medidas, apenas relembradas algumas ações pontuais que vêm sendo discutidas desde a seca passada e reafirmadas as ações emergenciais prometidas há uma semana: a anistia de 100% da dívida do programa Troca-Troca de Sementes para agricultores familiares dos municípios em situação de emergência, abertura de um edital adicional para o programa de Sementes Forrageiras, que permite o financiamento da aquisição de sementes para a formação de pastagens.
Ministros ouvem apelos e prometem continuidade das ações
Compõem o grupo interministerial que veio até o município de Hulha Negra verificar a realidade dos danos e perdas da agricultura familiar e camponesa, os ministros do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira; do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, Wellington Dias; e da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, Paulo Pimenta, além do futuro presidente da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), Edegar Pretto, e do secretário-executivo do Ministério da Agricultura e Pecuária, Irajá Lacerda.
Edegar Pretto, indicado pelo presidente Lula e pelo ministro Paulo Teixeira para assumir a presidência da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), garantiu que para além de atender as necessidades das pessoas que estão sendo atingidas pela escassez hídrica, a relação entre o governo federal e a agricultura Camponesa familiar se dará em um patamar muito mais avançado.
“O tempo da desesperança está passando. O tempo do abandono está passando. Quero dizer a todos que fizerem a opção de produzir alimento, comida, que o governo Lula, através da Conab, será o maior cliente da agricultura familiar. Podem produzir comida que nós vamos comprar.” Disse ainda que foi o próprio presidente Lula quem pediu o deslocamento do grupo de ministros até o RS e que fosse providenciada a liberação imediata dos R$ 430 milhões representativos das ações anunciadas “visando garantir alimentação, abastecimento com água, compra de ração e, claro, dialogar com os produtores, com as lideranças para que se possa ter também alternativas estruturantes para médio e longo prazos”.
O ministro Paulo Teixeira levou ao palco do evento a sensibilidade desperta na visita aos assentados Sirinei e Roselaine, demonstrando atenção com as pessoas, para além dos números. “Esses recursos já estão disponíveis, os agricultores podem acessá-los, como as prefeituras”, afirmou Teixeira, na entrevista coletiva após o ato. Explicou que a distribuição será feita a todas as cidades que decretaram estado de emergência e que o objetivo principal é garantir, com urgência, água e cestas básicas. “A partir disso as medidas de curto e médio prazo serão construídas”, declarou.
Durante a conversa com os representantes da imprensa, acenou que o governo federal poderá trazer ao estado tecnologias de armazenamento de água, como já feito com sucesso no Nordeste. Teixeira elogiou a resistência ativa das organizações e movimentos sociais na busca por soluções e citou como exemplo a ser seguido a cooperativa local dos assentados, a Cooptil, que vem atuando junto aos seus cooperados e fazendo da organização e cooperação um elemento decisivo para que se possa seguir produzindo. “Caminharemos juntos, para construir soluções”, afirmou.
Com a mão na terra, na unidade produtiva que o grupo interministerial visitou no assentamento Meia Água, o ministro Wellington Dias, do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, lembrou que quem vive do campo está acostumado a esperar pela chuva, principalmente aqueles agricultores que dependem unicamente dela para molhar o chão de onde tiram seu sustento.
“Olhamos de perto a realidade dura de brasileiros que viram essa espera se prolongar demais, e ainda hoje sofrem com a estiagem que atinge fortemente o estado. Enquanto a chuva não vem, fizemos um compromisso, por determinação do presidente Lula, de não medir esforços para ajudar esses agricultores.” Dias afirmou ainda que os agricultores familiares que, mesmo neste cenário, conseguiram produzir, serão auxiliados através do Programa de Aquisição de Alimentos, “contaremos com o apoio da rede do SUAS neste processo e estou esperançoso de que, em breve, serão colhidas boas notícias neste chão”. Acerca do futuro, foi incisivo: “Segurança hídrica não se faz no curto prazo, leva tempo, mas temos de começar de algum lugar”.
O ministro da Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República, Paulo Pimenta, afirmou que “estamos dialogando com o povo e mostrando que o governo federal tem compromisso com a união e a reconstrução do país”. Em contraponto ao governo anterior, onde uma ex-ministra chegou a afirmar que para solucionar o problema era preciso que os agricultores “rezassem pedindo chuva”, Pimenta garantiu que o presidente Lula sabe o quanto a situação da seca no estado é grave, e que “desta vez o RS poderá contar com todo o apoio para conseguir enfrentar este momento”.
Pimenta afirmou ainda que “queremos voltar a ter um governo que esteja presente no dia a dia das pessoas, especialmente nos momentos de mais dificuldade”. “Queremos viver um novo momento na vida política do Brasil, um momento de união e reconstrução, para que este país possa virar a página do ódio, da intolerância e do desprezo pelo povo”, acrescentou.
Movimentos e organizações alertam que é preciso fazer mais
O dirigente do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Adilson Schuch, afirmou que “não é o primeiro ano que a gente sofre com a estiagem, ela atinge com mais força os mais humildes, nas comunidades quilombolas, nos assentados, nos camponeses, nos indígenas. Esse público precisa receber uma atenção especial”. Outros pontos tocados por Schuch foram a retomada da possibilidade das entidades emitir a DAP (Declaração de Aptidão ao Pronaf), criticou a seletividade do Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), pediu para que o governo ajude a resolver a questão do endividamento, aperfeiçoar os canais de acesso às políticas públicas, ter atenção com uma grande parcela da população do Interior que nem aparece mais nas estatísticas.
O representante do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra, Adelar Pretto, lamentou que a oportunidade de acolher o grupo interministerial do governo federal e a delegação do governo do estado não fosse em um momento de festa, de celebrar a colheita, mas de muita tristeza e preocupação pelos efeitos severos que as famílias assentadas ali estão sujeitas por conta da estiagem prolongada. “Precisamos de programas que deem um mínimo de dignidade para as pessoas que estão no campo hoje e ficam expostas à seca.” Cobrou o aumento da participação do governador Leite nos programas emergenciais de mitigação dos efeitos da seca e a efetivação dos presidentes do Incra e da Conab por parte do governo federal.
Cleonice Back, da Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar (Fetraf), relembrou que o combate à fome passa pelas mãos dos agricultores e agricultoras familiares. “Junto com o governo Lula nós podemos acabar com a fome produzindo alimentos de qualidade, mas para isso precisamos ser amparados com medidas emergenciais hoje, mas sobretudo precisamos acessar medidas estruturantes.” Back citou como pontos de pauta imediatos a necessidade de crédito emergencial, de milho para alimentação dos animais e a resolução do problema do endividamento dos agricultores e agricultoras que só veio se agravando com os períodos de seca que se repetiram nos últimos 3 anos.
O representante dos Povos e Comunidades Tradicionais e Quilombolas do RS, Nilo Dias, entregou cartas de reivindicações aos ministros e ao governador, destacando que embora os Quilombos também estejam sujeitos aos problemas decorrentes da seca na produção, a maioria das famílias integrantes das comunidades tem poucas opções de acesso a água para consumo humano. “Pedimos aos ministros e ao governador que tenham a sensibilidade de olhar com carinho para todas essas demandas que estão sendo apresentadas pela agricultura familiar, mas que de modo especial tenham a sensibilidade de construir políticas específicas para as comunidades quilombolas, que hoje são as que mais estão sentindo na sua própria mesa os efeitos da seca”, afirmou.
“O tema da produção de alimentos precisa ser prioridade para os nossos governos, porque nós temos 33 milhões de pessoas que passam fome e temos milhares de agricultores e agricultoras familiares que dependem da atividade produtiva de alimentos para garantir o seu sustento, que precisam ser apoiados, fortalecidos e ter a sua organização especialmente em forma de cooperativas sendo incentivadas”, afirmou Gervásio Plucinski, em nome da União Nacional das Cooperativas da Agricultura Familiar e da Economia Solidária (Unicafes).
“As eleições acabaram, agora é hora de união”, apontou o presidente da Federação dos Trabalhadores da Agricultura (Fetag), Carlos Joel, conclamando aos representantes dos governos federal e estadual, juntamente com os municípios, a trabalhar juntos para atender as demandas dos agricultores e agricultoras. “A situação agora é emergencial, levar água, recursos e cestas básicas para quem precisa, mas também precisamos alinhar as ações para logo ali na frente sentarmos para debater o próximo plano safra federal e estadual, resolver as questões do endividamento dos agricultores que já não conseguem acessar crédito, inserir todos aqueles e aquelas que já não conseguem ser segurados”, afirmou.
Agricultores camponeses e familiares estão na iminência de passar fome
O agricultor João Sirinei dos Santos, assentado da reforma agrária e associado da Cooperativa camponesa Cooptil, produtor de leite e gado de corte, mostrou aos ministros os danos na sua unidade produtiva e exemplificou as perdas. “Os animais não têm mais água nem alimento, não é só a produção que a gente está perdendo, estamos vendo os bichos morrer, isso é muito triste”, afirmou Sirinei, cujo testemunho frente ao rebanho que mascava o chão seco, sem pasto verde, foi parar nos principais meios de comunicação presentes nos atos. Assim como pelo menos mais 100 mil famílias em praticamente todas as regiões do estado, caso as medidas anunciadas e novas ações não as alcancem com brevidade, Santos, sua esposa e filhos correm o risco de passar fome no campo.
Um dos momentos mais simbólicos da visita do grupo interministerial a Hulha Negra foi o plantio de mudas de árvores na unidade produtiva da família de Sirinei. Emocionada, a dirigente nacional do MST, Salete Carollo afirmou: “Plantar árvores é plantar água”.
"Depois de 4 anos de abandono total por parte do governo federal anterior e de iniciativas muito tímidas do governo do estado, a situação da agricultura familiar e camponesa é desesperadora no RS", aponta o dirigente da Via Campesina Frei Sérgio Görgen, após o ato. Para ele a resposta do governo Lula veio de forma rápida e traz uma sinalização de boa vontade do presidente para com a classe camponesa, mas é preciso ir além.
“Apresentamos reivindicações dos movimentos ao governo federal, estamos em constante diálogo e acreditamos que em breve novas medidas estruturantes também vão ser efetivadas”, afirmou. Frei Sérgio elogiou a postura do governador Eduardo Leite, em finalmente vir a campo para conhecer um pouco da realidade difícil que os camponeses e camponesas estão enfrentando e cobrou postura concreta para além das medidas tímidas, de alcance curto e pouca repercussão junto à classe trabalhadora rural que foram anunciadas pelo estado até o momento.
No mesmo sentido, o presidente da Cooperativa Coptil, formada por assentados da reforma agrária em Hulha Negra, Aceguá, Candiota e Bagé, Emerson Capelesso destacou que o fato de o presidente Lula enviar presencialmente o grupo de ministros é uma sinalização de novos tempos na relação entre os trabalhadores rurais e o governo federal. A expectativa é de que novas medidas sejam acrescentadas a estas primeiras ações. Em Hulha Negra, por exemplo, a perda na produção de grãos já é gravíssima e a queda do volume do leite varia de 50% a 90% entre os produtores que entregam o produto para a cooperativa. A própria Coptil tem demonstrado esforço para levar alimentação para os animais dos seus cooperados, assim como água potável através de caminhões pipa para as famílias.
Governador Eduardo Leite não fez novos anúncios
Eduardo Leite informou que nos próximos dias solicitará audiência com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva para discutir o tema da estiagem e mais medidas que possam ser adotadas em conjunto pelos governos federal e estadual. Pretende apresentar a Lula um plano permanente e transversal de mitigação dos efeitos da estiagem no Rio Grande do Sul, prevendo ações de curto, médio e longo prazo organizadas em uma estratégia que inclui medidas emergenciais de apoio e assistência aos produtores, ações estruturantes e um sistema de monitoramento.
“Recebo com muita alegria, não apenas a visita, mas os anúncios que o governo federal está fazendo”, afirmou. “Na semana passada, encaminhamos o expediente com demandas que nós tínhamos, nossos secretários estão aqui e agora começamos a ver os resultados”, acrescentou. Para Leite, o problema da estiagem deve ser enfrentado com ações a serem desenvolvidas de forma conjunta entre municípios, estado e União: “Apesar de nossas diferenças, estamos aqui juntos e devemos saudar esse ambiente de diálogo”.
Também participaram do ato desta quinta-feira o chefe da Casa Civil, Artur Lemos, o chefe da Casa Militar e coordenador estadual de Proteção e Defesa Civil, coronel Luciano Boeira, e os secretários Giovani Feltes, da Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação, Ronaldo Santini, de Desenvolvimento Rural, Tânia Moreira, de Comunicação, Marjorie Kauffmann, do Meio Ambiente e Infraestrutura, e o chefe de Gabinete do Governador, Euclides Neto.
Embora Leite e sua comitiva tenham sido bem recebidos pelos assentados da reforma agrária e demais segmentos de agricultores e agricultoras camponeses/familiares, lideranças presentes apontaram frustração pela ausência de novos anúncios da parte do chefe do Executivo estadual. Leite ouviu ainda manifestações contrárias à privatização da Corsan, que vem sendo questionada por entidades representativas de classe e parlamentares das bancadas de oposição.
:: Clique aqui para receber notícias do Brasil de Fato RS no seu Whatsapp ::
Edição: Katia Marko