A Romaria da Terra do Rio Grande do Sul reuniu cerca de 5 mil pessoas, nesta terça-feira de Carnaval (21), no Assentamento Integração Gaúcha, em Eldorado do Sul, na Região Metropolitana de Porto Alegre. “Terra e Pão: em defesa dos territórios e produção da vida” foi o tema desta que foi a primeira edição presencial após a pandemia. Romeiros e romeiras de diferentes regiões do estado e também de fora reuniram-se para celebrar a fé e a luta pela terra, pelo meio ambiente e por justiça social.
A concentração para a procissão foi ainda sob chuva, no centro de Eldorado do Sul, em frente ao Santuário Nossa Senhora Medianeira. Sobre o carro de som, fizeram falas o bispo Dom Adilson Pedro Busin, o Cacique Natalino, representando os povos indígenas de São Gabriel, o prefeito de Eldorado do Sul, Ernani de Freitas Gonçalves (PDT), e representantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Por volta das 9h, os romeiros e romeiras partiram em uma caminhada de 3 km até o assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Na chegada, foram recebidos por indígenas e assentados. Às 11h o sol já brilhava, quando foi realizada uma missa, seguida de almoço e apresentações culturais.
Nos dois dias que antecederam a Romaria, o assentamento sediou o Acampamento dos Povos da Terra em Romaria, que reuniu cerca de 300 pessoas. Também recebeu o 14º Encontro em Memória de Sepé Tiaraju e na defesa da Mãe Terra, do povo indígena Mbyá Guarani. Tanto a Romaria quanto o encontro indígena divulgaram cartas ao final da atividade em que destacaram as principais demandas e reivindicações.
"Faz parte da vida do povo que luta por reforma agrária"
Uma das romeiras presentes, Isabel Cristina é moradora de outro assentamento da reforma agrária, o Filhos de Sepé, em Viamão (RS). Para ela, é uma honra estar em um solo que é conquista garantida através da luta de muitas pessoas.
"A Romaria da Terra já faz parte da vida do povo que luta por reforma agrária. Fazia tempo que a gente não vinha, por acontecer em lugares mais distantes. Mas aqui pertinho em Eldorado a gente pode estar presente debatendo esse tema, terra e pão", conta.
Sonia Maria veio de mais longe. Vive em Bagé e chegou em Eldorado do Sul às 7h da manhã para participar da Romaria. Segundo ela, que participa dos círculos da Igreja São Judas Tadeu em sua cidade, já são 15 anos participando das romarias.
"A Romaria é muito boa, a gente vem refletindo sobre as coisas que aconteceram no ano para poder iniciar o novo ano. É uma caminhada sofrida, mas é muito bom. Aqui a gente encontra amigos e as relações das pastorais.” Ela destacou ter trazido neste ano quatro pessoas pela primeira vez. “Elas adoraram e disseram que ano que vem irão comigo de novo”, completa Sonia.
Maria Inês Riva é agricultora, assentada no Integração Gaúcha desde 1991. Como uma das anfitriãs, revela o sentimento de gratidão ao lembrar da coragem necessária para a conquista da terra. “Pra nós é difícil expressar o quão importante é estar aqui agora, recebendo toda essa comunidade aqui presente, convivendo e experienciando a nossa caminhada. Isso aqui vai nos fortalecer ainda mais, unidos somos mais fortes pela reforma agrária", afirma.
Bruno, de Tapejara, e Alana, de Santo Antônio do Planalto, ambos adolescentes, são integrantes da Pastoral da Juventude. Segundo Bruno, agradecer pela vida é um dos motivos que os leva a participar da Romaria. Alana completa que além de agradecer, acredita ser um dever de um jovem revolucionário estar presente no evento.
O Frei Francisco (Capuchinho) é natural do Haiti, estudante de Teologia. Desde que chegou ao Brasil, em 2017, participa da Romaria, exceto durante a pandemia. "A gente percebe que é sempre um momento de defesa do bem comum. Estar participando aqui com as pessoas é estar em comunhão com aqueles que estão passando ou já passaram por situações difíceis. Todos precisam de dignidade e nós temos que defender sempre", afirma.
Dom Adilson brincou com a chuva insistente durante a caminhada. "Pedimos a São Pedro que mandasse a chuva, só não pudemos escolher a hora e o local", disse, lembrando que a chuva é "uma benção de Deus que estávamos pedindo para a agricultura". Segundo o bispo, a caminhada de fé é a prova da resistência dos romeiros e romeiras e também uma forma de aceitar e atravessar as intempéries.
Articulador das pastorais sociais do CNBB/Sul 3, Padre Edinho considera uma alegria a realização da 45ª Romaria da Terra, que celebra a luta do povo por reforma agrária, agroecologia e cuidado com a Mãe Terra. Recorda que a edição anterior aconteceu com tamanho reduzido, devido ao perigo da pandemia.
"É a partir também deste tamanho que a gente celebra a memória de Sepé Tiaraju e da luta pela terra. Tivemos uma linda experiência que foi o encontro dos povos tradicionais, organizados em sintonia e diversidade, cada um respeitando suas culturas. Este ano, a Romaria teve um ar ainda mais especial para nós, pois foi o ponto de partida da Campanha da Fraternidade, que será sobre a superação da fome, tema urgente e que precisa de ações como a dos assentamentos e dos movimentos do campo e da cidade organizados”, avalia.
Presente na Romaria, o futuro presidente da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), Edegar Pretto, disse que está onde sempre esteve. "Eu desde criança acompanhava meu pai e minha mãe para encontrar os romeiros para celebrar a vida, mas também para reafirmar nossos compromissos em defesa da natureza, da Mãe Terra e da produção de alimentos saudáveis." Na sua opinião, a edição deste ano vem sintonizada com um dos principais objetivos do novo governo federal, que é acabar com a fome e com a miséria.
Seu irmão, o deputado estadual Adão Pretto Filho (PT) considera que a Romaria é um momento simbólico de "recarregar as baterias", reencontrar amigos e reafirmar os valores da luta pela terra. Para ele, também foi simbólico que o evento tenha acontecido sob chuva, no momento em que os agricultores do estado sofrem com a seca.
"Estamos vivendo uma angústia, infelizmente nosso estado sofre o terceiro ano consecutivo com a estiagem. Estamos cobrando o governo do estado e em sintonia com as ações do governo federal para amenizar a situação. Muitas vezes o problema do clima ultrapassa a questão humana, mas os governos têm que fazer a sua parte, ano passado a ministra da Agricultura esteve no estado e pediu para os agricultores rezarem", lembra.
Santiago Franco, indígena Mbyá Guarani, é cacique da comunidade Yvy Poty, localizada no município de Barra do Ribeiro. Ele considera que é muito importante a presença de seu povo no evento.
"Nossa vinda aqui retoma a memória de Sepé Tiaraju, e de sua morte em defesa de nossa terra. Nossa reunião, nossa conversa, nossa fala e espiritualidade busca fortalecer a nossa luta. Seguimos com as dificuldades para reconhecerem os nossos direitos, como ter a nossa terra demarcada para viver e plantar, assim como saúde e educação de qualidade e saneamento básico para nosso povo", afirma.
"Não basta denunciar os crimes se não falarmos dos criminosos"
Entre as atividades culturais, João Pedro Stédile, liderança do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, falou dos desafios dos agricultores em defender o meio ambiente, na luta por um modelo diferente de produção, voltado para alimentos saudáveis e sem o uso de agrotóxicos. “Não é brincadeira, todos os dias vemos fatos sobre crimes cometidos contra a natureza e contra o ser humano", ressaltou.
Afirmou que no Brasil se morre de chuva, mas também se morre pelas consequências do uso dos agrotóxicos "que causam câncer, comprovadamente pela ciência. Mas, mesmo assim, o Brasil segue sendo o pais que mais usa glifosato no mundo". Além disso, afirmou que todos os dias se podem acessar notícias sobre mortes de indígenas, seja pelas condições de vida ou mesmo em mortes violentas, citando o exemplo dos povos atingidos pelo garimpo.
"Enfim, poderíamos falar o dia inteiro dos crimes contra a natureza, que colocam em risco a vida humana no planeta. Porém, não basta denunciar os crimes se não falarmos dos criminosos. Eles são muitos, mas, na essência, é o próprio sistema capitalista, que só pensa em lucro", afirma.
Segundo Stédile, por trás desse sistema "perverso e sem futuro", estão os piores capitalistas. "Quando se denuncia o agrotóxico, tem que dizer quem os fabrica, quem lucra", afirmou, citando as maiores empresas do ramo no mundo.
"Qual o caminho a seguir? As reflexões dos movimentos sociais não deixam dúvida, mais do que tudo hoje, o papel do agricultor é proteger a natureza, nós não podemos permitir mais em parte alguma do Brasil que se derrube uma árvore sequer. Ela é a nossa proteção, onde tem árvore tem água. Para proteger a natureza e a vida, temos que proteger a água e ela precisa das árvores."
Além disso, afirmou que não basta zerar o desmatamento, mas também que os agricultores comprometidos com a defesa da natureza precisam fazer um esforço de reflorestamento, plantando mudas sempre que possível. Também defendeu que a agricultura precisa cada vez mais ser uma produtora de alimentos, ao invés de “produzir soja pra engordar vaca na Europa ou porco na China”.
Também criticou a pulverização aérea de agrotóxicos. "Produzir alimentos saudáveis é o futuro da humanidade. Ou nós assumimos isso como uma missão, ou não haverá chances para os seres humanos. Os crimes ambientais estão colocando em risco a vida no mundo".
Cartas da Romaria e dos Mbya Guarani
A carta da 45ª Romaria da Terra traz uma série de denúncias. Entre elas que “o capitalismo, o agronegócio, a ganância humana” agridem a Mãe Terra, que a “concentração da terra e de riquezas produz abismos sociais”, que o “agrotóxico mata” e que é urgente o fim das violências “contra a mulher, povos originários, trabalhadores rurais sem-terra, pessoas LGBT+ e o extermínio da juventude negra e periférica”.
Também anuncia “um novo mundo com vida plena e abundante em todas as suas fases”. Defende a “diversidade do bem viver” e temas como “superação da sociedade de classe patriarcal e racista”, “demarcação de terras”, “direito à moradia no campo e na cidade”, “organização popular para superar a fome”.
Clique aqui para conferir a carta na íntegra.
Já a carta do encontro dos Mbya Guarani ressalta que o encontro homenageou “a memória de Sepé Tiaraju, assassinado - em 7 de fevereiro de 1756 - pelos soldados dos exércitos da Espanha e Portugal, países invasores dos territórios imemoriais dos Povos Indígenas”. Destaca os “desafios impostos pelos governantes e pelas sociedades dos brancos”, que negam direitos e degradam a natureza.
Afirma esperar por um espaço de diálogo no Ministério dos Povos Indígenas e que a Funai atue em defesa dos povos indígenas. Destaca que no RS existem 25 comunidades indígenas assentadas que estão ameaçadas de despejo e reivindicam a regularização dos territórios. Também critica o marco temporal.
Clique aqui para conferir a carta na íntegra.
A Romaria da Terra é uma celebração descentralizada, cada edição é realizada em um diferente município do estado. É organizada pela CPT, MST, Via Campesina, Conselho Indigenista Missionário Sul (Cimi), Comissão das Pastorais Sociais e Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre (Cootap).
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Edição: Katia Marko