Município com forte presença da imigração alemã, São Leopoldo traz o debate da educação antirracista na abertura do ano letivo, na manhã desta quarta-feira (22), no Anfiteatro Padre Werner da Unisinos. Professoras e professores lotaram o auditório para assistir a palestra "O racismo e o papel da branquitude", com a filósofa, escritora, feminista e referência na luta antirracista Djamila Ribeiro.
Com transmissão simultânea para o Teatro Municipal, a palestra foi uma realização da Prefeitura Municipal, por meio da Secretaria de Educação e Fecomércio/RS – Sesc/São Leopoldo.
Antes da solenidade, houve apresentações do grupo de danças das crianças da Comunidade Kaingang Por Fi Gá, do Coletivo Kindezi e Coletivo Afoxé das Iabás.
O prefeito Ary Vanazzi pontuou a importância de trazer a cultura negra e indígena na abertura do ano letivo e discorreu sobre temas que acredita são fundamentais para o próximo período. “A nossa educação de São Leopoldo é um modelo para o Estado do RS e região metropolitana. Tanto do ponto de vista da aprendizagem, quanto de formação e qualificação, inclusão e enfrentamento político que a gente fez quando o governo antigo federal resolve destruir a educação pública”, lembrou.
O secretário de Educação Ricardo da Luz deu as boas-vindas aos profissionais de educação e falou sobre a perspectiva de educação pública no país que traz grandes desafios. “Este é um momento que nós precisamos olhar pra educação, olhar para a chaga da evasão, olhar para reprovação, para a inclusão que precisa acontecer, olhar para discussões dos preconceitos seja de raça, gênero, religioso e encontrar soluções. Juntos seremos capazes de dar mais um passo fundamental para o futuro e presente das nossas crianças”, disse.
Em 2023, a Rede Municipal de Ensino contará com mais de 28 mil estudantes da Educação Infantil até a Educação de Jovens e Adultos (EJA). Os alunos retornam às salas de aulas na quinta-feira (23), nos turnos da manhã, tarde e noite. As professoras e os professores da rede municipal de Educação de São Leopoldo retomaram os trabalhos nas escolas na sexta-feira (17).
Estiveram presentes na solenidade de abertura do ano letivo, a diretora do Sesc São Leopoldo, Andrea Guedes, a vereadora Ana Affonso, representando a Câmara de Vereadores, a presidente do Sindicato de Professores Municipais de São Leopoldo – CEPROL, Cristiane Mainard, o presidente do Conselho Municipal de Educação, Otávio Afonso Forneck, as secretárias de Direitos Humanos, Nadir Maria de Jesus e a secretária de Políticas para Mulheres em exercício, Ana Magalhães.
A história dos vencedores e o mito da democracia racial
Durante a palestra de uma hora e meia, Djamila Ribeiro manteve o público completamente atento. Como uma voz calma, bom humor e uma linguagem bastante coloquial, discorreu sobre a história do Brasil, trazendo elementos importantes para entendermos o racismo estrutural. Também apresentou diversos pensadores e pensadoras negras que forjaram seu conhecimento, como Lelia Gonzales e Sueli Carneiro.
Iniciou dizendo que antes de começar a falar sobre diversidade é importante abordar o tema da desigualdade e educação antirracista. “A gente precisa entender como foi construído historicamente o nosso país. É fundamental um trabalho como esse de estar conversando e trocando sobre o assunto. A grande maioria de nós foi formada por uma escola que não ensinou a História completa do Brasil ou nos ensinou a história contada pelos vencedores. Eu mesma fui formada em uma escola que me ensinou que a escravidão aconteceu, que os negros eram os escravos e a Princesa Isabel foi a redentora do Brasil”, disse a filósofa, destacando a importância de conhecer a história por outra perspectiva.
Um dos elementos, segundo Djamila, é que o racismo brasileiro se constrói em cima do mito da democracia racial. “Somos racistas, num país racista, que nega a existência do racismo. E essa negação não é ingênua, é deliberada. Por muito tempo a negação do racismo atrasou que a gente tivesse políticas públicas na área da educação, da saúde, em todas as áreas da população negra”, enfatizou a ativista.
Segundo ela, o Brasil é a maior nação negra fora da África, somando 54% da população, e mesmo sendo maioria, [os negros] estão fora dos lugares de poder e experimentam em larga maioria os piores índices de desenvolvimento humano. “Foram quase quatro séculos de escravidão em pouco mais de cinco séculos de chegada dos colonos.”
Lembrou que em 1888 houve a abolição formal, mas nenhuma política de inclusão das pessoas negras, pelo contrário. “Ao passo que foi estimulada a vinda de imigrantes europeus, que receberam terras e oportunidades, pessoas negras foram marginalizadas de qualquer contato com o poder econômico e destinadas a serem base de exploração que, no caso das mulheres negras, se somam ao patriarcado.”
Demonstrou, de forma clara e inquestionável, como explicar ou mostrar que, sim, há muito racismo na sociedade. “Ao longo da história, o projeto de miscigenação foi romanceado no país, como manifestação sublime da democracia racial, pensamento do [sociólogo] Gilberto Freyre, no sentido de que no Brasil teria havido a transcendência racial com a convivência harmoniosa entre brancos, negros e indígenas. Ou seja, de acordo com esse pensamento, não existe racismo no Brasil, apenas desigualdade entre ricos e pobres. As mulheres negras brasileiras são as mulatas que sambam e estão sempre disponíveis sexualmente. Trata-se de algo entranhado no pensamento brasileiro e na organização social do país, algo que os movimentos negros ao longo de muitas décadas vêm denunciando e combatendo.”
Na opinião de Djamila, essa é uma construção supremacista histórica. “Está na escola, nas famílias, no discurso midiático, em todo lugar. Então muitas pessoas negras não sabem que são negras, não têm sequer condições materiais para formular algo nesse sentido. O que nos resta é lutar por políticas públicas, de educação, assistência social e apoiar projetos políticos nesse sentido. Isso em um sentido coletivo”, defende.
O que é racismo estrutural?
Para a filósofa, é preciso olhar a história do Brasil desde a escravização até a falta de inclusão das populações negras, entender que foram criados mecanismos legais para afastar pessoas negras de possibilidades de emancipação social. E citou vários exemplos, como a Constituição Federal de 1824 que vedava o acesso de pessoas negras à educação, a Lei de Terras de 1850 que condicionava o acesso a terras à compra e venda, e naquele contexto nenhuma pessoa escravizada estava apta a possuir uma propriedade, entre tantas leis de escravização.
Com o fim formal da escravidão, lembrou, houve um processo de criminalização de pessoas negras, sobretudo homens, alvos de leis como a vadiagem, que determinava a prisão de pessoas “sem ocupação", numa época de alto desemprego para os homens negros. “As mulheres negras foram destinadas ao trabalho doméstico, uma herança presente até hoje. Atualmente, estima-se que mais de 6 milhões de mulheres negras são empregadas [domésticas] no país, e a lei que regulamenta a profissão somente foi aprovada em 2013, sob intensos protestos do sistema que se beneficiou historicamente desse trabalho.”
Então, destacou Djamila, estamos dizendo que o racismo estrutura as relações raciais no Brasil. Uma estrutura presente antes mesmo de nós termos nascidos. “No Brasil é comum entrarmos em restaurantes e não encontrarmos nenhuma pessoa negra no local – nem como garçom ou garçonete. Quem vai a shopping terá dificuldade de encontrar uma vendedora de lojas negra. Isso, vale frisar, em um país com 54% da população negra. Ou seja, o racismo estrutura a sociedade e, assim sendo, está em todo lugar.”
"Não basta só reconhecer o privilégio, precisa ter ação antirracista de fato. Ir a manifestações é uma delas, apoiar projetos importantes que visem à melhoria de vida das populações negras é importante, ler intelectuais negros, colocar na bibliografia que trabalhamos em sala de aula."
Djamila Taís Ribeiro dos Santos é filósofa, feminista negra, escritora, acadêmica brasileira, pesquisadora e mestra em Filosofia Política pela Universidade Federal de São Paulo. É conhecida por seu ativismo na Internet, atualmente é colunista do jornal Folha de S. Paulo.
* Com informações de Monique Marcolin – Assessoria de Imprensa da Prefeitura de São Leopoldo.
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Edição: Katia Marko