Rio Grande do Sul

PAPO DE SÁBADO

“Ocupar as ruas com um bloco de carnaval é um ato político”

É o que diz Julia Rodrigues, que integra e agita o Bloco da Laje, de Porto Alegre, desde sua origem, em 2011

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Julia é uma das brincantes que integra o "coletivo teatral carnavalesco" desde o começo - Foto: Maciel Goelzer

Hoje presença sempre esperada no Carnaval de Porto Alegre, os blocos de rua são um fenômeno recente na capital gaúcha. Não que já não tivessem existido no passado, mas seu forte ressurgimento tem menos de duas décadas. Entre os precursores dessa retomada das ruas pela folia está o Bloco da Laje, autointitulado “um coletivo teatral carnavalesco”.

O Bloco da Laje surgiu em 2011, quando um grupo de teatreiros resolveu entrar no carnaval da cidade. Consagrado como o evento que abre a temporada de blocos de rua da capital gaúcha, neste ano fez seu cortejo no dia 29 de janeiro, reunindo cerca de 30 mil pessoas.

Julia Rodrigues é uma das brincantes – como são chamados os integrantes do bloco. Faz estandarte e canta em algumas músicas e, desde o início, atua tanto na questão artística, quanto na produção e na direção.


Grupo nasceu da vontade de teatreiros ocuparem as ruas / Foto: Maciel Goelzer

Nesta conversa com o Brasil de Fato RS, ela fala sobre os objetivos do bloco, que surgiu em um contexto político de ocupações no mundo, com reflexos em Porto Alegre. “A gente nasce dessa alegria, mas também da indignação e, conscientemente, do desejo de ocupar o espaço público que nos é de direito”, revela.

Conta também da relação com o poder público e de questões envolvendo o aumento da violência contra a mulher durante os festejos carnavalescos. “Carnaval e política estão super associados, como tudo é política na nossa vida”, repara.


Cortejo do Bloco da Laje reuniu cerca de 30 mil pessoas em 2023 / Foto: Maciel Goelzer

Confira:

Brasil de Fato RS - O Bloco da Laje completou 10 saídas em 2023. Como tudo começou e qual foi a motivação desse grupo?

Julia Rodrigues - A gente fez a nossa décima saída agora em 2023, mas ficamos dois anos suspensos por conta da pandemia. Então a origem a gente considera 2012, nossa primeira saída. É complexo falar sobre a história do bloco porque cada pessoa vai ter um ponto de vista diferente. Do meu lugar, então, foi esse grupo de amigos, todos teatreiros, que tiveram o desejo de fazer um bloco de carnaval. Isso foi crescendo e se desenvolvendo. Logo na primeira saída já foi bem surpreendente. Tínhamos toda uma construção estética desde o primeiro momento: as cores, o brasão, a bandeira, o estandarte, as figuras que portavam evoluções. O Zé da Terreira estava com a gente desde a primeira saída. Então o resultado de toda aquela brincadeira que a gente foi ensaiando na Redenção - também desde o início ensaiamos na Redenção - foi muito surpreendente para todos nós.

Também pelo público que colou, ainda quando era possível sair na Cidade Baixa. A gente imaginava talvez 200 pessoas e deu duas mil. Moradores, pessoas fantasiadas, com crianças, desceram dos prédios, gente mais velha. Então ali já teve todas as sementes do que veio a se desenvolver, e de uma forma muito bonita.

Logo nesse primeiro ano vencemos um edital do Fundo de Apoio à Cultura, o FAC, e fizemos dois cortejos ao longo do ano, antes do segundo carnaval, quando a gente retomou a trajetória com um pouco da negritude em Porto Alegre. Foi no Areal da Baronesa e na antiga Colônia Africana. Retomamos essa questão histórica da cidade com espacialidades que tinham esse histórico de festa popular, especialmente de uma festa de origem africana.

Onde a gente escolhe sair nunca é à toa. Sempre é a cidade como um palco

No segundo ano, então, a gente já tinha toda uma metodologia, um trabalho também com a bateria, com o musical. Fizemos um barracão para construir as fantasias, os acessórios, sempre com a questão teatral muito presente, e de ter cada espaço da cidade. Onde a gente escolhe sair nunca é à toa. Sempre é a cidade como um palco revelando questões históricas ou sociais ou geográficas relevantes, ressignificando espaços. Então tudo isso já estava bem amadurecido no segundo ano, e foi crescendo.


Ensaio em 2013 / Foto: Arquivo Bloco da Laje

Mais pra frente a gente começou a ter estratégias de contenção, para atrair menos gente. Teve um ano em que nosso carro de som não dava conta de todo mundo ouvir. Começamos a sair de manhã, a anunciar o local da saída só bem próximo da data. São estratégias para que cole no evento quem realmente está sintonizado. A gente faz toda uma preparação para que as pessoas estejam o mais envolvidas possível com a proposta e os valores do bloco.

BdF RS - O Bloco da Laje sempre teve um quê de contestação política e cultural. Na história de Porto Alegre, nos anos 70, houve os blocos humorísticos que traziam um pouco dessa questão de crítica política, o que acabou se perdendo. Vocês retomam isso de uma forma bem forte. Carnaval e política se misturam?

Julia - Contamos, nesse ano do projeto do FAC, com o Mestre Pernambuco, da Banda DK, é um desses blocos humorísticos. De certa forma ele nos apadrinhou naquele momento. Então a gente, de alguma forma, se relacionou um pouco com essa história da cidade, com esses blocos.

Quando o bloco nasceu também era um momento de muitas ocupações no mundo. Porto Alegre tinha várias: ocupação da Redenção à noite, ocupação do largo Glênio Peres, ocupações diversas, acampamentos. Era um momento que as ruas estavam fervilhantes e tinha muita espontaneidade também. O Diego Machado, um dos fundadores do bloco, sempre ressalta bastante a questão da indignação. Que a gente nasce dessa alegria, mas também da indignação e, conscientemente, do desejo de ocupar o espaço público que nos é de direito.


"Podemos ocupar o espaço público de forma popular, criativa, saudável" / Foto: Maciel Goelzer

Não precisa ir para um lugar privado para consumir, ou para ser, para estar, para exercitar nossa criatividade. Podemos ocupar o espaço público de forma popular, criativa, saudável. Isso é um direito e nada melhor do que exigir esse direito fazendo ele acontecer de fato. Então, essa é um pouco a nossa proposta. Inclusive, agora neste ano, tinha a proposta de cercamento da Redenção, de privatização da Redenção, e estávamos lá ensaiando. Claro que a gente levantou essa bandeira, mas a nossa maior bandeira é estar lá ensaiando, é estar lá de fato ocupando e mostrando o que é a proposta.  

Tudo que a gente faz tem um caráter político e o carnaval não foge disso

Carnaval e política estão super associados. Como tudo é política na nossa vida: o que a gente escolhe comer, o que a gente escolhe vestir, ou o que a gente não tem escolha. Tudo que a gente faz vai ter um caráter político, a gente tendo consciência ou não, e o carnaval não foge disso. Mesmo que a gente não falasse de nenhuma questão política nas nossas letras, no nosso discurso, o fato de se estar fazendo o carnaval e exercitando esse direito, ainda mais em espaço público, já é um discurso, essa já é a nossa bandeira. É o direito que muitas vezes nos é cerceado, ou se tenta cercear, de não viver essa que é a maior festa do nosso país, da forma como a população quer, não como é imposto.

Claro que tem que ter todo um diálogo, não é uma coisa que cada um faz o que quer, tem que ter muita responsabilidade pra fazer uma festa desse tamanho. É por aí nossa relação com a política, o fato só da gente fazer os ensaios abertos na Redenção, da gente fazer a saída na cidade de forma pública, de forma gratuita e num espaço aberto a todos.


"Carnaval e política estão super associados" / Foto: Maciel Goelzer

BdF RS - Essa questão dos ensaios parece uma coisa bem importante para o bloco. Ao mesmo tempo, você falando da questão das letras, recordo de uma música, Recanto Africano, que faz uma ressignificação inclusive do nome do espaço em que vocês ensaiam. Como é esse ensaio, como vocês lidam com essa parte do ano de levar o pessoal para aquele lugar e construir todos juntos?

Julia - Essa música é uma composição da Camila Falcão e do Thiago Lázeri e rebatiza o espaço que era o Recanto Europeu, como Recanto Africano, lembrando da história da Redenção, que era uma roça, um espaço também de acolhimento de escravizados. É um discurso que a Camila também sempre fala antes de cantar.


Camila Falcão cantando no trio elétrico durante intervenção cênica / Foto: Maciel Goelzer

Essa etapa do ensaio é tão importante quanto a saída porque a gente começa ali na primavera. A gente mantém uma atividade o ano inteiro, só que é de um grupo show, que chama Laje in Concert. Quando chega a primavera começam os ensaios pra saída no verão.

Nosso financiamento coletivo, por exemplo, que esse ano a gente botou de R$ 54 mil, só cobriu os custos do dia da saída. Não chega a cobrir, por exemplo, os ensaios. A gente começou a colocar estrutura, banheiro químico, montagem e desmontagem de equipamento, equipe de limpeza que depois faz o trabalho de reciclagem junto com a Copertuca. É uma série de serviços e uma economia que gira nos ensaios, ambulantes, pessoal que faz alimentação.

Falando da parte mais artística, durante a pandemia fizemos uma série de outras atividades, mas entendendo que a nossa premissa é o encontro presencial. Entendemos esse espaço como construção de conhecimento. Ali as pessoas aprendem desde as coisas mais técnicas como tocar, fazer maquiagem ou alguma questão mais técnica e artística para o evento. Mas também nas relações humanas, a questão de toda a diversidade que vai se encontrar e que vai ter que se entender, e que vai ter que dialogar dentro de todas as questões que vem à tona, as diferenças se encontrando.

BdF RS - Quantos integrantes tem ao todo? Tem esse grupo que faz eventos fora, depois tem o pessoal que cola junto nos ensaios, como que vocês contabilizam isso?

Julia - Olha, a gente tem um núcleo mais duro, que é dessa banda que toca o ano inteiro, que são 24 pessoas. No carnaval, o bloco todo deve ter até umas 200 pessoas.


Ao todo, bloco chega a ter 200 integrantes / Foto: Maciel Goelzer

BdF RS - O carnaval de rua teve seu renascimento em Porto Alegre um pouco antes de vocês, com o pessoal do Maria do Bairro, depois veio o Bloco da Laje e hoje são vários blocos. A prefeitura eventualmente apoia, eventualmente não apoia. Na tua avaliação, qual a importância desse apoio institucional, o que que isso pode ter de benéfico e o que pode trazer também de problemas?

Julia - Sempre tivemos um diálogo com a prefeitura, desde o primeiro ano: liberação da EPTC para trancar a via, o apoio do DMLU para a limpeza, apoio da Guarda Municipal, de todos os órgãos. É muito importante esse diálogo porque o poder público tem as ferramentas para auxiliar esses eventos acontecerem de forma segura.

O que acontece, às vezes, é essa questão de a gente querer ocupar alguns lugares específicos da cidade porque ali tem uma história ou porque quer mostrar algo relevante. E muitas vezes querem fazer um lugar para os blocos, todo mundo vai para tal lugar, que fica mais fácil, que não tem trânsito, que não sei o quê. Não, o bloco vai impactar a cidade, essa é inclusive uma das questões. Os blocos já estão num lugar, apesar de ser recente, está no calendário cultural da cidade...

Também falta uma política pública de carnaval de rua a longo prazo. Muda a gestão e mudam todos os protocolos, e é sempre essa correria.  Há uma falta de interesse político.

São as batalhas que a gente vai travando para ir escrevendo essa história

BdF RS - Nesse ano está tendo esse movimento de levar eventos para o Quarto Distrito, nesse processo de revitalização daquele espaço. São movimentos também ligados a interesses econômicos.

Julia - Tem isso, tem de querer levar para o Quarto Distrito. Daí já tem toda uma questão imobiliária ali. Ou de levar para a Orla, que não tem que fechar nada. É claro que é trabalhoso fechar uma rua. Mas é importante, é uma característica dos blocos. Enfim, são as batalhas que a gente vai travando para ir escrevendo essa história da forma mais condizente possível com nosso discurso. A gente também não está à parte da questão do capital, também necessitamos de dinheiro para mover o que a gente move, é um custo super alto. Então precisa desses diálogos. Mas o serviço público tem que estar a serviço da festa.

Cada um tem que trabalhar as questões de machismo, racismo, misoginia e conflito de classes

BdF RS - Falando ainda em problemas do carnaval, uma pauta que sempre vem à tona é a da violência contra a mulher, que infelizmente aumenta bastante nesse período. Você, enquanto mulher, que faz parte do bloco, como que você vê essa questão? Há uma preocupação com isso na saída do bloco? E como que lidam quando eventualmente ocorre alguma coisa, nesse sentido, entre vocês?

Julia - Isso é uma educação constante que a gente tem que ter. Para além de situações, a gente procura ter uma educação permanente nesse tema e em outros porque, às vezes, temos uma ideia utópica de que o espaço do bloco está isento de qualquer tipo de problema social. Vivemos num contexto cheio de dificuldades vindo à tona em que cada um de nós tem que trabalhar nas questões de machismo, de racismo, de misoginia, de conflito de classes. Tentamos trabalhar essas questões de forma constante e responsável, sabendo que todo mundo tem parte nos problemas que irrompem, falando de violência contra a mulher de forma específica.


Julia em apresentação do Bloco em palcos / Foto: Elizabeth Thiel

Esse ano, por exemplo, a gente teve um apoio institucional da Themis, presente com a campanha “Respeita as gurias na folia”. A Themis é uma instituição que atua há 30 anos na cidade, sendo referência no trabalho de proteção dos direitos das mulheres de forma jurídica. O encaminhamento que a gente procurou dar é de uma proteção jurídica e institucional para que qualquer pessoa que se sentisse violada em algum direito pudesse ter acesso e um respaldo para que isso seja, através da lei, também administrado. Estavam presentes também as promotoras populares, a Defensoria Pública. Construímos uma rede de apoio.

A gente também tem um trabalho com a Helena Bol, que a gente vem fazendo das camadas mais internas do grupo pra fora, ela é uma membro do grupo que toca caixa, é uma advogada que trabalha com justiça restaurativa. A gente começou a fazer esse trabalho internamente, promover diálogos entre nós, buscando uma educação permanente, de uma responsabilização, todo mundo faz parte do problema e todo mundo faz parte da solução.


"Seguimos com os shows e com muita fé nesse novo Ministério da Cultura" / Foto: Maciel Goelzer

BdF RS - Alguma novidade do Bloco da Laje ainda para esse ano?

Julia - A gente segue do ponto em que parou na pandemia com um show novo que se chama Quatro Estações e que está aí nas plataformas. Foi um projeto do Natura Musical e a gente vai seguir até a próxima primavera pelos palcos. Temos show agora em Xangri-Lá, no dia 18, dia 19 em Porto Alegre. Seguimos com os shows e com muita fé nesse novo Ministério da Cultura, para fazer uma renovação mesmo musical, para que saiam projetos e editais para a gente botar um novo show na roda.


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Edição: Ayrton Centeno