Onde não faltassem abraços, ou não haveria fome, ou, em havendo, ela seria resultado de impedimento
Confesso. Perdi os acontecimentos desta semana. Por isso, não estou em condições de comentar a surpreendente liberação nacional de uso de 42 “novos” agrotóxicos, no dia 13 de fevereiro. Mais da metade destes venenos (24 agrotóxicos, incluindo o fipronil e o imidacloprido, responsáveis pelo extermínio de abelhas, e o diquat, causador de danos no sistema nervoso central humano) são lixo tóxico, coisa que não poderia ser jogada nos campos da União Europeia.
Preocupante. Até porque os agrotóxicos não servem apenas para envenenar a água, matar a flora e a fauna. Eles também se prestam para destroçar a vida das pessoas.
Isto significa, para não sair longe daquela palavra que indica morte lenta de gente de todas as idades, que o câncer vem aí. E vem em suas várias formas e para todas as faixas etárias.
Até porque, para agilizar processos e por orientação do desgoverno anterior, a Anvisa decidiu sobrevalorizar, nas avaliações de agrotóxicos, aqueles casos de intoxicação aguda. Relaxou com isso na preocupação para com casos de contaminação crônica, de baixa intensidade, como costumam ser aquelas de natureza cancerígena. Vale lembrar que logo ali ao lado, na Argentina, pesquisa do Instituto de Saúde Socioambiental, da Faculdade de Medicina da Universidade Nacional de Rosário identificou, para homens e mulheres (de 15 a 44 anos) que vivem em cidades cercadas por lavouras, quase o triplo de chance de “pegar um câncer” (em relação à media nacional). Chegaram a isso avaliando 27.644 pessoas (68% da população) de oito municípios rurais daquele país.
O alerta dos hermanos valeria para nossa gente? Provavelmente sim. Mas este não é o ponto. Aliás, aqui a situação tende a ser bem pior. Vejam que no Brasil, apesar de há anos não aparecer um problema agro sanitário inédito, os capangas das transnacionais já haviam conseguido aprovar (apenas nos últimos quatro anos) mais de 2.000 “novos” agrotóxicos. Então, como entender (no segundo mês do governo Lula), esta nova onda de oportunidades para o envenenamento geral? Teria a ver com os “resíduos” daquele desgoverno que se atrevia a recomendar vermífugo para controle de virose, e que ainda mantém “seus” agentes em postos de decisão que, segundo escolha democrática popular, deveriam estar garantindo avanços mais protetivos aos direitos humanos e respeitosos à ciência? Sem resposta, mudo de assunto.
E não vou comentar a notícia de que alguém ligado ao governo Pinochet poderia ter providenciado, por envenenamento, a morte de Pablo Neruda. Me ocorreu, mas não vou especular sobre possibilidades semelhantes, em relação ao silenciamento de pessoas inconvenientes ao bolsonarismo, como o Bibiano, o Adriano, além de outros que ainda respiram. Mas espero ler sobre isso, em outros jornais.
Ainda assim, pretendo tratar da vida em oposição à morte em vida. Com este foco, o tema desta semana se liga à falas do cacique Moises da Silva Kaingangue (Lomba do Pinheiro, divisa entre Viamão e Porto Alegre) e da Cacique Talcira Gomes Guarani (Rio Grande). A partir do que entendi, e talvez misturando ideias de outros participantes do III Encontro Internacional dos Povos do Campo, promovido pela Unipampa/Campus Dom Pedrito (falas importantes que espero ler em documento a ser publicado pela equipe coordenadora), vamos em frente.
Vejam que estou me referindo a povos que lutam para não serem apagados da existência. Povos que mesmo se sabendo perseguidos, desumanizados e permanentemente ameaçados (Invasões de terras indígenas tiveram novo aumento em 2021, em contexto de violência e ofensiva contra direitos | Cimi), mantém o sorriso e oferecem atenção a todos que deles se aproximam. Em suas falas e gestos de amor e acolhida, não discriminam algozes atuais e muito menos a nós, descendentes dos monstros que ocuparam suas terras à força e caçaram seus avós como animais.
Também não estou tratando de algo geograficamente distante, como o inferno na terra dos yanomamis acossados pelo garimpo, onde interesses apoiados pelo ex-governo mataram de fome pelo menos 570 crianças. Me refiro, sim, a povos originários do Sul do Brasil. Aqui, onde hoje vemos adultos tentando frear, com greve de fome, o avanço da especulação fundiária sobre seus territórios sagrados e vemos bebês kaingangues e guaranis morrerem por desnutrição.
Claramente, as lutas e as causas destes povos não se alteraram desde que suas terras viraram mercadoria alheia. Desde que lhes foi imposto um medir do tempo baseado em calendários dependentes das safras de verão. Desde que se tornou difícil olhar a vida como sucessão de estações de abundância e carência, o mundo deles não cessou de mudar. E sempre para pior. E no entanto, eles resistiram, resistem, resistirão.
Agora, quando a escassez se tornou permanente e se estende, pouco a pouco, a todos os povos, quando a saúde do planeta está ameaçada, parece que lhes surge oportunidade de nova aliança. Simples assim: professores brancos, de várias universidades, se reúnem e passam a convidar lideranças indígenas e de outros povos ancestrais a explicar como entendem o que se passa e o que sugerem, para melhor enfrentamento das dificuldades comuns.
Pois foi então que, nesta semana, em uma destas oportunidades raras, frequentadores da Unipampa/Campus Dom Pedrito tiveram oportunidade de escutar, e tento repassar a seguir com palavras inexatas, mas - a meu sentimento - tão fiéis ao conteúdo como me seria possível fazer - conceitos ali expostos que continuo tentando entender.
A palavra e o abraço
Eles disseram que para manter a fé precisamos manter a fala. Porque seria a língua de um povo que alimentaria a ligação das almas que o compõe e permitiria suas conexões com os outros seres. Ela ajudaria a perceber quem “pensa/sente como nós” e daria alicerce a tudo que cresce com estas identificações. A fala não poderia ser desperdiçada, e o que é dito exigiria cuidado/respeito com o momento em que é exposto. Isso seria fundamental para que os espíritos iluminassem as palavras, levando-as ao coração dos que escutam. Sem isso, as palavras seriam vazias, não tocariam as almas, não sedimentariam compromissos.
Por isso, as palavras certas, no momento certo, seriam como alimentos fortalecedores da cultura e dos indivíduos que a compartilham. Sem estes alimentos, ou com os alimentos errados, o futuro se desviaria, a ligação com os antepassados se perderia e iniciaria um tempo de doenças. Quando estas quebras ocorressem, as crianças se dispersariam e a vida seguiria outros caminhos. Por isso, seria importante lutar pelos costumes, pelo território que lhes dá base e pela preservação das formas de ser que ali habitam.
Neste sentido, a luta dos povos ancestrais, desde os primeiros confrontos com os brancos, seriam em defesa de meios para prosseguir vivendo. Por isso demandam, entre tantas outras coisas, nossa compreensão em relação a elementos básicos, sugestivos de que os direitos humanos, que lhes são devidos, devem ser contextualizados à soberania de seus povos, ou estarão sendo incompletos, tutelados por verdades alheias. Por exemplo: eles precisariam de escolas e universidades ajustadas à realidade dos indígenas, com professores, calendários, rotinas e até merendas escolares construídos a partir de suas leituras do mundo. E quem poderia oferecer isso, senão eles mesmos?
Da mesma forma, e assim como no caso da alimentação sadia, as escolas deveriam fortalecer mais do que o corpo e as mentes, para integração sadia ao mundo dos brancos. Seria de esperar que elas permitissem não só criticar, mas também fortalecer os costumes, os territórios e o enfrentamento de tentativas de corte nos meios fundamentais para que seus povos continuem a ser o que são, e possam assim permanecer no mundo.
Seria esta uma das razões que induziria os povos indígenas a se preparar para ocupar espaços na política nacional. Nisso, estariam irmanados com seus aliados antigos e quase naturais, os povos de matriz africana. E para isso convidariam todos aqueles outros que, percebendo com eles algum sinal de ligação de almas, manifestassem disposição de caminhar no mesmo rumo.
Como os povos de origem africana, nossos povos indígenas do Sul se reconheceriam como partes de um mesmo todo. E isso seria independente de nascerem no Rio Grande do Sul, Paraguai, Argentina ou Bolívia. Haveria aí uma sabedoria instintiva que os brancos não alcançariam, como prova o fato de se desconhecerem, por anos a fio, vizinhos de um mesmo prédio.
O isolamento que disso resulta enfraqueceria o povo, alimentaria carrancas, apagaria sorrisos. E a risada seria o barco que levaria as palavras até o coração, que aproximaria as almas. Por isso, mesmo conscientes do que lhes toca enfrentar, num mundo dominado pelo racismo, pela exclusão e pela ausência de espiritualidade, os indígenas sorririam sempre.
O desconhecimento do outro também mataria os abraços, no nascedouro. E os abraços seriam alimentos espirituais. Os abraços, e sua falta, garantiriam, ou não, a divisão e a partilha, explicando tanto a caridade na miséria como a usura, na abundância.
Onde não faltassem abraços, ou não haveria fome, ou, em havendo, ela seria resultado de impedimentos, de cortes nos meios de ser, tão a fundo e a tal ponto que, em havendo fome, de alguns, também faltaria de tudo, para todos.
Enfim, a luta desses povos seria permanente e incluiria enfrentamento individual ao ódio e à raiva, sentimentos agravadores da miséria porque são criadores de doenças.
Em lado oposto, a partilha, a divisão e a comunhão matariam a inveja e alimentariam espíritos do dia, que os defenderiam das maldades da escuridão. A estes espíritos, os povos deveriam oferecer tão somente o respeito aos momentos e aos rituais que lhes competiriam.
Na noite outros espíritos brincariam com as pessoas, provocariam acidentes. E estes também exigiriam respeito e também atenderiam a seus próprios rituais de apaziguamento.
Os rituais de agradecimento seriam especialmente poderosos e necessários em vista de uma noção de continuidade. Agradecer no plantio, na colheita e quando de come o que foi colhido fortaleceria ciclos de plantio/colheita e consumo.
Já que em tudo haveriam semeaduras e conexões, as trocas também não deveriam envolver pagamentos ou intencionalidades que alterassem relações de amorosidade. Por exemplo, as rezas e as curas, como os abraços, perderiam valor quando envolvessem compensações. Não poderiam ser pagas. Seriam expressões de curas espirituais que, sob pagamento, perderiam o fundamento que liga os momentos em que se exercem, às almas de tudo que vive e já viveu. E mesmo o agente da cura não seria o Pajé, não seria o Xamã. Eles seriam veículos capacitados a ajudar no fluir do amor. Seria o amor que, passando por eles, curaria. Seria o amor que salvaria vidas. Seria o amor que uniria aqueles que falam, entre si, palavras do coração.
Por isso, os povos indígenas sorririam, por isso abraçariam aqueles que os escutam ou poderiam, em algum momento, os escutando, perceber que é assim que eles cultuam os espíritos de seus antepassados, e agradecem pelo cuidado com os que virão.
De aprendizado, fixei que somos sementes, e que tudo é semeadura.
Espero não ter distorcido em demasia os conteúdos, e que aqueles caciques e os espíritos que os acompanham perdoem a audácia e a arrogância de tentar fazer, a partir de suas falas, este texto.
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* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira