Falando em transformar, penso no povo Yanomani e sinto uma dor sem precedentes
Cada vez que me toca o momento de escrever a coluna penso, do que gostaria de falar que ainda não escrevi? Essa pergunta transforma tudo em um respiro. Sempre a gente sabe sobre os DEVE. Deve isto ou aquilo para alguém, ou deve fazer, ou escrever, ou traduzir, ou inferir.
A belezura, aqui, é poder parar a pensar sobre o que eu (ainda) não escrevi, ou não falei. Ou, simplesmente, deter tudo e ir tomar um café comigo, sentada do lado de uma janela – como fazia na minha outra vida, em Buenos Aires, com minha mãe − e quero me contar que, ou refletir acerca de..., sem ter que chegar a conclusões.
Na literatura, nós-outras, muitas vezes comentamos sobre como fomos apagadas, e o seguimos sendo nas histórias que eles contam, ou, nas narrativas que elas escrevem, mas sem notar que continuam falando deles. Qual seria a diferença de uma escrita por mulheres, na qual, os homens continuam sendo protagonistas? Por que não aproveitar esse momento de poder, e visibilidade, e pôr nosso pequeno grão de areia para transformar o mundo?
Falando em transformar, penso no povo Yanomani e sinto uma dor sem precedentes.
Uns 30 anos atrás, eu morava em Israel, lá aprendi a língua hebraica e, curiosa como sou, fui estudar Cabala e tentar ler a Bíblia na sua língua original. Qual não foi a minha surpresa ao ler a famosa frase: que diz que não há nada novo debaixo do sol. A gente imagina que é uma ideia muito pós-moderna, mas não. Tem seus aninhos.
Fica nítido como 5.000 anos atrás o patriarcado já estava vivo e incomodando. Em quantas leituras nós nos enxergamos?
(E o povo Yanomani, se enxergará? Estará, hoje, sendo enxergado pela humanidade?)
Dias atrás, na manifestação de abertura do Fórum Social Mundial, encontrei com Bibi, também conhecida como a escritora Irka Barrios. No final fomos ao Justo tomar uma cerveja. Ela me contava sobre o que estava escrevendo, eu também lhe contava de mim. No meio da conversa, faziam-se presentes meus calorões e começamos a falar da menopausa. Tema que sempre vem à tona porque sempre estou com calor. Sensação rara, nova para mim. Ele me irrompe a qualquer momento e em qualquer lugar. É algo tão invasivo como veloz. Invade, mas não fica muito. Eu me digo, já passa, já passa. E passa mesmo, embora eu fique me acabando.
Uns anos atrás, estávamos num bar com uma amiga. Ela, bem risonha, falava das aventuras da irmã que estava no climatério. Entre gargalhadas, contava de um dia que estavam pela rua, num bairro de casas baixas, lá havia um homem molhando o jardim. De repente, ela avançou sobre ele e tirou a mangueira das mãos e começou a se molhar a cabeça.
Hoje, eu poderia ser ela.
Aproveito em dizer que o climatério (processo até chegar à menopausa que pode demorar uns quantos anos, minha gineco falou de oito) não só é com os calorões, também podemos padecer hemorragia. Eu já tive duas e levei cada susto! É muito doido ver sair essa quantidade de sangue que não para. Ir para a rua e ficar mais tempo dentro dos banheiros, trocando absorventes, do que numa conversa.
Comigo aconteceu por vários dias, ao ponto de continuar com o cheiro de sangue – nas narinas − por mais um tempo. Tive que acudir à minha ginecologista para deter o sangramento. Ela me receitou um medicamento que, de não dar certo, teria que ir na emergência.
Depois, foram dias comento açaí e beterraba para me repor de uma anemia fortíssima, com dor nas coxas.
Voltando ao Justo, Bibi me contava da vampira da sua história e eu comecei a imaginar a Vampira se apaixonando por uma mulher com hemorragia, as duas demos aquelas gargalhadas, nós duas já passamos por isso e é algo do que ainda se fala muito pouco. Como fazer (muito) feliz a uma vampira que vê tanto sangue ser desperdiçado. O ponto é que a hemorragia uma hora acaba. Ainda bem! E do que vai se alimentar essa Vampira depois? Essa pergunta fica a modo de conflito para os contos de Irka Barrios.
Também gostaria de falar das mudanças nos estados de ânimo, as tristezas repentinas que o climatério traz junto. As mulheres Yanomani, tão desnutridas, nem devem de estar menstruando, penso. O genocídio com o povo indígena me interrompe o tempo todo. Fico tão consternada que não dá para não falar disso. Mas ainda nem sei como.
* mariam pessah é ARTivista feminista, escritora e poeta, autora de “Em breve tudo se desacomodará”, editora Bestiário 2022. Organizadora do Sarau das minas/Porto Alegre.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira