Rio Grande do Sul

Coluna

Uma reflexão sobre nossa responsabilidade, enquanto sociedade, frente ao aumento do feminicídio

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"Que possamos sair de uma postura passiva frente aos absurdos que temos acompanhado e existir de forma antimachista, na busca por garantias de uma sociedade mais justa" - Fernando Frazão/ Agência Brasil
O mundo precisa de igualdade, o mundo precisa que sejamos todos feministas

Não é de hoje que temos acompanhado o aumento de casos de feminicídios de forma global. Lembrando que para que o assassinato de uma mulher seja enquadrado como feminicídio, o autor deve ter praticado o ato em razão do gênero, ou seja, a vítima é morta por ser mulher, seja ela cisgênero ou transgênero – decisão unânime da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de que a Lei Maria da Penha também é aplicável à violência contra mulheres trans.

No Brasil, de acordo com o Fórum de Segurança Pública, foram 699 mulheres vítimas de feminicídio apenas no primeiro semestre de 2022. No mesmo ano, a Polícia Civil gaúcha lançou um Mapa dos Feminicídios. Só no Rio Grande do Sul foram 106 mortes violentas, o que equivale a uma morte a cada 3, 4 dias. Um aumento de 10,4% em relação ao ano anterior. Em 92,4% dos casos o autor foi o companheiro ou o ex-companheiro da vítima. E em 72,6% dos casos, a residência foi o local do crime. Não existe local seguro. Também é essencial citar que sete em cada dez mulheres que sofrem feminicídio são negras. O feminicídio também apresenta um recorte racial na sociedade racista em que vivemos.  

Talvez algumas questões disparadoras nos direcionem a pensar sobre o que têm acontecido e qual a nossa responsabilidade, enquanto sociedade, para a mudança no terrível quadro atual: o que autoriza cada vez mais homens a cometerem crimes brutais contra as mulheres? De onde vem o sentido de propriedade dos mesmos acerca do gênero feminino? Quais disfunções estruturais são condicionantes para que os homens vejam as mulheres como propriedade numa relação? O que faz com que homens se sintam no direito de assediar mulheres? Por que a maioria dos homens e algumas mulheres reforçam o jargão de que um estupro merece justificativa pelo comprimento da roupa ou comportamento da vítima? Como desalienar o laço social da lógica patriarcal? De que forma nós, homens e mulheres, podemos combater o machismo que atravessa todas as relações?

São tantas questões que eu poderia escrever uma crônica apenas com interrogações. Mas parece que a resposta passa pelo tão conhecido machismo estrutural. Crescemos sobre o estereótipo de que homens são fortes, poderosos, detentores do falo e do saber, “homem de palavra”, imponentes, não-monogâmicos, de natureza caçadora e guerreira. Mitos que atravessam o social e que autorizam a submissão das supostamente mais frágeis integrantes do jogo: as mulheres. Um jogo heteronormativo, binário. Uma estrutura que foi construída num binarismo que supostamente se complementaria: homens e mulheres.  Embora sabemos que muitas vezes essa relação se hierarquiza. Um jogo perigoso, um jogo que apaga possibilidades e tem como efeito as brutalidades que nós homens temos cometido em nome desse imaginário significado do que é masculinidade.

Do outro lado da moeda encontram-se as mulheres. E a metáfora da moeda é pra manter uma divisão e oposição bem clara! Ditas como frágeis, sensíveis, emotivas, maternais, detentoras de um amor incondicional por seus filhos, sempre disponíveis, sempre servis, ser mulher é carregar esses estereótipos. E nessa dança dos dragões entre o masculino e feminino um encontro de almas. A legitimação de que ela pertence a ele, afinal, o casamento a tornou propriedade. O sobrenome incorporado, o pertencimento à família do suposto macho alfa e viril.

Em meio aos desencontros, a separação. Se ela é minha, como estará com outro? Claro, neste jogo perverso, eu homem, jamais teria defeitos. Sou macho, logo potente. Cabe a ela tudo que há de ruim na relação. Ela agora está com outro, mesmo que na minha imaginação. Meu frágil narcisismo berra. Se ela é minha, como ousa atacar minha honra? O que meus amigos dirão? Vou lutar pelo que é “meu”. A sociedade diz que homem deve resolver tudo na força. Conversar é coisa de mulher ou viado. Sou um ser em “essência” bruto. O fim da história está no início da crônica: violência e morte. 

E nós, sociedade, o que faremos? Como educaremos nossas crianças em outro registro? Como ressignificaremos a forma tão neandertal de nos relacionarmos? Como inscrever outra forma lógica de ser e existir que não passe por uma hierarquia entre os gêneros? Somos efeitos de linguagem, a construção se inicia nas palavras. São nas frases ditas, na desconstrução dos estereótipos, na abertura de novos significados para as palavras masculino e feminino que existe potência simbólica de transformação. Como ser homem e mulher para além dessa história que tanto se repete? O mundo precisa de igualdade, o mundo precisa que sejamos todos feministas. Que possamos sair de uma postura passiva frente aos absurdos que temos acompanhado e existir de forma antimachista, na busca por garantias de uma sociedade mais justa.

A educação é uma ferramenta potente nesse processo. Existem diversos projetos ligados ao conservadorismo e ideologias que reforçam, através dos seus discursos, o crime de feminicídio. Na medida que tentam proibir a escola de abordar as questões de gênero e sexualidade com projetos como “Escola sem partido” e “Educação domiciliar” fecham possibilidades de transformação da realidade que vivemos. Há de se apostar na palavra.

*Artigo escrito com a contribuição de Antonio Jeferson Barreto Xavie, mestre e doutor em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS na linha de Pesquisa Educação, Sexualidade e Relações de Gênero.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira