Nota introdutória: A "romaria", na tradição religiosa, é uma peregrinação a um santuário ou outro local digno de devoção. No Brasil, a Comissão Pastoral da Terra começou a organizar "romarias" pela terra, na esteira do Concílio Vaticano II. Enquanto as romarias tradicionais procuram essencialmente o altar e o Santo, as romarias da terra introduziram a “Palavra”, a reflexão, incorporando ritos e símbolos de outras religiões no universo católico. Mais do que confortar o coração, buscam a transformação da sociedade.
Queridas e queridos, o título que vocês escolheram para esta romaria, Terra e Pão, é muito significativo e se torna ainda mais com a referência gráfica ao tema da agroecologia.
Juntamente com Andrei e outros amigos do grupo Agricultura e Justiça da iniciativa The Economy of Francesco, justamente rebatizada de Economia de Francisco e Clara por vários grupos latino-americanos, realizamos um caminho de reflexão partindo do tema Terra, centrando-o na questão de gênero na agricultura (terra e soberania alimentar) que nos levou a elaborar uma proposta intitulada Aliança Mulher Mãe Terra cuja mensagem foi enviada ao Papa Francisco, graças à ajuda de um padre jesuíta, Gaël Giraud.(1)
Minha mensagem para vocês hoje quer recomeçar a partir deste ponto: a luta pela terra e pelo pão, pela defesa dos territórios e da vida parte da questão de gênero, entendida como superação do patriarcado.
A agricultura, em sua expressão mais simples, é a intervenção humana em um ecossistema natural. Ele o transforma e o coloca a serviço de suas necessidades, com métodos e técnicas que evoluíram no tempo e no espaço. Se tomarmos emprestadas as reflexões de muitos pensadores, antes de todos Michel Foucault, sobre o tema do poder, podemos concordar em dizer que, ao fazê-lo, o homem estabelece uma relação de poder com o ecossistema natural.
O poder, escreveu Foucault, não pode ser estudado a partir de suas formas institucionais e jurídicas, dos conceitos de soberania e de lei, mas deve ser compreendido nos efeitos cotidianos que produz no mundo social. A partir desta introdução seguiu-se uma análise de como o poder é criado e estabelecido entre os seres humanos, classes sociais, etc. etc. Uma crítica que tem sido feita a ele nos últimos tempos é que sua análise nunca levou em conta a questão de gênero. Daí partem propostas interessantes, como as de Nancy Piedra Guillèn a que me refiro.(2) Aqui me interessa abrir ainda mais a perspectiva, inserindo a relação de poder que o homem criou com os ecossistemas naturais (a Mãe Terra).
Podemos dizer que é verdade que essa relação foi se estabelecendo aos poucos e com uma busca de equilíbrio por parte do homem (e da mulher) agricultor, busca que se tornou cada vez mais importante à medida que a terra foi sendo apropriada (com instituições, leis e políticas) em favor de poucos, para os quais a necessidade de sobreviver exigia uma relação diferente daquela originária dos povos caçadores-coletores que trabalhavam com a técnica do corte e da queima (roça e queimada).
Essa prática agrícola envolve o abate (total ou parcial) da vegetação natural que depois é queimada para limpar a terra mas sobretudo para poder aproveitar os nutrientes contidos nas cinzas da vegetação lenhosa, minerais, cálcio e magnésio. O cultivo dessas terras dura poucos anos, até que o solo tenha "esgotado" sua fertilidade. Nesse ponto, transfere-se para outra área, onde o ciclo recomeça. O terreno precedente é assim deixado a "descansar" durante anos ou décadas, até que a fertilidade inicial seja reconstituída. O momento do possível retorno é indicado pelo crescimento de algumas árvores utilizadas como indicadores da fertilidade do solo.
Muito criticada hoje pelos donos da "modernização" agrícola, a pratica de corta e queima, como é chamada no Brasil, constituiu-se por milênios a técnica mais simples de apropriação da fertilidade dos recursos naturais, visto que não há necessidade de ferramentas complicadas. No entanto, é preciso ressaltar que, apesar de sua simplicidade, a corta e queima mostra o estabelecimento de uma relação de poder entre dominante (o Homem) e dominado (a Mãe Terra). E essa relação de poder, expressa em relação aos recursos naturais, e que nunca é lembrada, anda de mãos dadas com uma estratificação social entre homens e mulheres ainda hoje presente em alguns povos indígenas: considerando apenas a fase de produção, Ernesto V. S. Gama et al., examinando uma área indígena no estado da Bahia, nos lembram o seguinte: “As mulheres se ocupam mais da cozinha, do plantio e da limpeza das roças. E têm ao longo do dia mais atividades que os homens”.(3)
Com a chegada da revolução agrária da era moderna(4) (depois da Segunda Guerra Mundial em diante), consistindo não só na mecanização motorizada, mas sobretudo no uso cada vez maior de recursos químicos (fertilizantes, inseticidas...) e novas variedades preparadas não mais através do longo trabalho das mãos camponesas, mas pelos laboratórios de pesquisa que introduziram primeiro os híbridos e depois os transgênicos, as relações de poder mudaram drasticamente.
Até então podíamos pensar numa relação Homem-Mãe Terra que, na exploração dos ecossistemas naturais para os “nossos” fins, procurava ainda formas de adaptação às diferentes realidades locais. Por isso havia muitíssimas variedades diferentes de todas as produções, desde o trigo ao arroz, passando pela batata, milho, leguminosas, etc. etc. O mesmo acontecia com as raças de animais, bovinos, ovinos... Em suma, mesmo que não se diga abertamente, era o Homem que se adaptava à Mãe Terra, ao que ela podia dar-lhe. Com a revolução moderna o paradigma muda e inverte-se: o ser humano já não tem de se adaptar, mas toma as rédeas da situação decidindo o quê, como, quanto e onde produzir o que lhe interessa. Tudo isso sempre envolto em belas palavras, de novos conceitos inventados para a ocasião (como desenvolvimento e subdesenvolvimento)(5), à necessidade de ajudar os pobres que morrem de fome (aquela fome que, como Josué De Castro(6) já vinha explicando há anos, era filha de uma estrutura agrária onde poucos tinham toda a terra e muitos não tinham nada, uma fome criada pelo homem a partir de uma relação de poder altamente assimétrica!).
A relação de equilíbrio precário entre o ser humano e a natureza se perde no caminho. Assistimos a uma aceleração da produção agrícola, mas sobretudo assistimos a uma redução das variedades cultivadas, para responder a uma visão industrial da agricultura, uma economia de escala que os novos senhores, cada vez menos agricultores e cada vez mais "homens de negócios financeiros" introduziram para seus lucros.
A desculpa que vem sendo usada há décadas é que precisamos produzir cada vez mais para erradicar a fome e alimentar a população mundial. Apesar das tentativas promovidas desde os anos 50, quase um bilhão de pessoas ainda hoje passa fome, mas, o que é mais importante, o problema não é produzir, mas redistribuir o bem-estar. Nas palavras do economista-chefe da FAO, Maximo Torero: “Há comida suficiente para alimentar todos no mundo hoje. O que falta é a capacidade de comprar os alimentos que estão disponíveis devido aos altos níveis de pobreza e desigualdade.”(7)
Contra esse mundo, surgiu uma raiva desde baixo, que gradualmente se tornou uma massa crítica organizada, e nasceram grandes associações e movimentos camponeses. A principal batalha no início era por uma divisão justa da terra, tema ainda hoje muito sensível em muitas partes do mundo, a começar pelo Brasil, como lembram as muitas romarias pela terra e pelas águas organizadas nas últimas décadas.
Mas além da luta pela terra, uma nova batalha começou a ganhar espaço na agenda de lutas. Filha dos mesmos atores camponeses (homens) das primeiras lutas pela terra, a agroecologia nasceu e tem sido estudada a partir do mundo agrícola e de muitos especialistas (homens) agrônomos.(8)
Em sua essência, a agroecologia (ou agricultura de conservação como é chamada em muitos países de língua anglo-saxônica) é o retorno a técnicas menos invasivas, mais respeitosas com o ecossistema natural e que podem ser colocadas em prática por aquele mundo camponês que o agronegócio está transformando em “trabalhadores de massa”, distanciando-os cada vez mais do conhecimento historicamente acumulado, que era seu patrimônio.
Dentro daqueles que lutam pela agroecologia, novas vozes começaram a levar uma mensagem diferente(9),que também trago aqui para vocês: a necessidade de olhar não só para as técnicas de produção, mas também para as relações de poder, que permanecem, tanto na agricultura tradicional quanto na agricultura moderna e também na agroecologia, filhas de uma cultura patriarcal que foi criada e imposta muito antes da chegada do capitalismo.
A relação entre o ser humano e a Mãe Terra, como dissemos no início, é uma relação de poder. O mesmo esquema que vinha sendo implantado nas famílias, ampliadas ou restritas, onde por muito tempo (mas não desde sempre) a dominação do “homem masculino” foi a regra. A mesma relação de busca do equilíbrio entre o dominante (Homem) e o dominado (Mãe Terra), com a necessidade não de destruir completamente o dominado, mas de submetê-lo às “necessidades” do dominante, é o esquema patriarcal que encontramos na relação homem-mulher, ainda mais quando os analisamos no seio das famílias ou, por extensão, nas suas formas organizadas, associações ou movimentos que formam.
As vozes femininas que clamam pela necessidade de uma mudança estrutural, e não apenas superficial, são cada vez mais numerosas e apesar da resistência das classes dominantes (não só ao nível do governo ou das instituições, mas também dos movimentos camponeses) começam a fazer o seu caminho.
Pensar que a agroecologia pode ser uma resposta às mazelas do mundo, se não promover uma mudança estrutural nas relações de poder entre homens e mulheres, é perda de tempo. A verdadeira mudança começa a partir daí, daquele poder assimétrico que ainda encontramos em todas as instâncias vitais, mas de forma muito evidente na distinção de tarefas entre a esfera produtiva (pública) e a esfera reprodutiva (privada), onde as mulheres estão encurraladas.
Os homens têm medo de colocar este tema no centro do debate, porque sabem, mesmo que não queiram admitir, que não é um tema "de mulheres", mas que requer uma tomada de consciência e uma mudança real da parte deles, abrindo mão de parte do poder e assumindo igual parte das tarefas da esfera privada.
Portanto, não se trata mais de slogans bonitos, mas genéricos, como direitos iguais à terra. É uma questão de olhar para dentro, principalmente de nós homens, para nos perguntarmos o quanto estamos dispostos a ceder em nossas vidas para abrir espaço, para permitir que nossas esposas, companheiras, tenham o tempo e o espaço político para também elas entrar e comandar nossas organizações, mas também simplesmente ter tempo livre para si mesmas, e o quanto estamos dispostos a dar do nosso tempo para cuidar da esfera doméstica. Todos esses temas são apresentados com mais detalhes no livro que estamos publicando, então não vou me alongar.(10)
Uma reflexão final, porém, não posso deixar de fazer sobre a segunda palavra do título da romaria: o pão. Recordem-se que, se é verdade que o pão é também uma metáfora para a comida em geral(11), não deixa de ser também um símbolo ligado em particular ao mundo ocidental e em particular à religião católica(12). Não é por acaso que o símbolo da FAO é uma espiga de trigo, com a menção "fiat panis", que no entanto no Sul do mundo, sobretudo naqueles onde não se come pão, é visto como mais um símbolo da vontade de poder do Norte. Sei que no contexto da romaria o pão é um símbolo de vida, mas só queria lembrar o quanto é importante prestar atenção aos detalhes, para não cair sempre nos mesmos erros, talvez com roupas diferentes.
Concluindo: lutamos para defender os territórios e o pão, por este convite a seguir em frente com a Aliança Mulher Mãe Terra, não só pelo direito à terra, mas para lutar contra o patriarcado desde a base. Só um mundo que aceite a diversidade e construa sobre a diversidade será um mundo melhor: um pluriverso feito de respeito onde homens e mulheres colaborarão igualmente na esfera privada como na pública. Aí sim, uma verdadeira e grande Aliança será possível.
[1] Giraud, Gaël. 2020. A Economia de Francisco e os jovens. La Civiltà Cattolica, caderno 4092, https://www.laciviltacattolica.it/articolo/leconomia-di-francesco-e-i-giovani/
[2] Piedra Guillén, Nancy. 2004. Relaciones de poder: leyendo a Foucault desde la perspectiva de género. Revista de Ciencias Sociales (Cr), vol. IV, núm. 106, Universidad de Costa Rica
[3] Gama, E. V. S., Marques, C. T. dos S., Carvalho, A. J. A. de, & Silva, F. 2007. Divisão de trabalho entre homens e mulheres na Aldeia Indígena Tupinambá de Serra do Padeiro, Buerarema – BA. Revista Brasileira De Agroecologia, 2(2). Recuperado de https://revistas.aba-agroecologia.org.br/rbagroecologia/article/view/7027
[4] Mazoyer, Marcel & Laurence Roudart. 2008. História das agriculturas no mundo: do neolítico à crise contemporânea - http://codeagro.agricultura.sp.gov.br/uploads/capacitacao/historia-das-agriculturas-no-mundo-mazoyer-e-roudart.pdf
[5] Escobar, Arturo. 2007. La invención del Tercer Mundo – Construcción y deconstrucción del desarrollo. 2007. Fundación Editorial el perro y la rana, Venezuela - https://cronicon.net/paginas/Documentos/No.10.pdf
[6] Josué De Castro. Geografia da Fome (o dilema brasileiro: pão ou aço). 1946. https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/473/o/CASTRO__Josué_de_-_Geografia_da_Fome.pdf
[7] Torero, Maximo. 2022. To Achieve Human Rights, Start With Food. 7 dicembre 2022 https://www.ipsnews.net/2022/12/achieve-human-rights-start-food/
[8] Valenzuela, Hector. 2016. "Agroecology: A Global Paradigm to Challenge Mainstream Industrial Agriculture" Horticulturae 2 - https://www.mdpi.com/2311-7524/2/1/2
[9] Soler, Marta; Rivera, Marta e García Roces, Irene. 2021. Agroecologia feminista para la soberanía alimentaria: ¿de qué estamos hablando? LEISA, edición especial
[10] Groppo, Paolo; Cangelosi, Elisabetta; Siliprandi, Emma, Groppo, Charlotte. 2023. Quando Eva bussa alla porta – Donne, terre e diritti. Ombre Corte editore
[11] Cusumano, Antonino. 2017. In nome del pane, in nome dell’uomo. Dialoghi mediterranei - http://www.istitutoeuroarabo.it/DM/in-nome-del-pane-in-nome-delluomo/
[12] Dom Robert Le Gall. Pain. S.d. Dictionnaire de Liturgie - http://archivesweb.cef.fr/prive/liturgiecatholique.fr/liturgiecatholique.fr/Pain.html
* Publicado originalmente do Andar Guaivi: blog de Paolo Groppo
** Oficial aposentado da FAO, Roma
Edição: Marcelo Ferreira