Rio Grande do Sul

POVOS ORIGINÁRIOS

Artigo | Sepé Tiaraju, suas causas são as mesmas causas de hoje

Há quase três séculos, num dia 7 de fevereiro, Sepé Tiaraju foi assassinado por liderar a resistência de seu povo

Brasil de Fato | Porto Alegre |
10º Encontro Sepé Tiaraju, realizado em São Gabriel (RS) em 2016, marcou os 260 do assassinato de Sepé - Foto: Ruy Sposati/Cimi

Em 7 de fevereiro, celebra-se o dia de Sepé Tiaraju, líder Guarani assassinado pelos invasores espanhóis e portugueses, no ano de 1756.

Sepé vivia e liderava seu povo no período em que os Sete Povos das Missões se tornavam centros de referência alternativos ao modelo de colonização que se impunha pelas potências mundiais de Espanha, Portugal, França e Inglaterra.

Os Sete Povos das Missões tinham estruturas econômicas, políticas e formas organizativas que se distinguiam daquelas dos conquistadores, pois primavam pelas relações comunitárias e não pela ganância e covardia.

Embora se tenham inúmeras críticas quanto aos jesuítas, por seus métodos de atração, convencimento e imposições religiosas aos povos indígenas, existem registros históricos de que nos Sete Povos das Missões primava-se pelo uso comum da Mãe Terra, bem como pelos bons modos de cultivá-la e protegê-la.

A cobiça e as disputas pela Mãe Terra, por seus bens e domínios, fizeram com que os colonizadores a invadissem, destruíssem e matassem seus filhos sem piedade, sem nenhum escrúpulo, pois o que lhes interessavam eram o aniquilamento dos povos originários e de seus modos de ser e viver.

Foi nesse ambiente de lutas contra os invasores que Sepé Tiaraju se destacou como líder, comandante, guerreiro. Ele e milhares de homens e mulheres, colocaram seus corpos e espíritos integralmente em defesa da Mãe Terra, de seus filhos, filhas e de toda a natureza.
As batalhas contra os exércitos de Espanha e Portugal foram dramáticas e, o que nunca se viveu antes, tornaram-se cotidianas, ou seja, feriam e derramavam os sangues dos corpos indígenas, matando-os, promovendo desespero e dor através dos aprisionamentos, escravização, tortura e disseminação de doenças contagiosas.

Décadas e décadas se passaram e a paz nunca chegou. Os assassinos não deram trégua, apesar de toda a disposição, organização e resistência dos povos e das tentativas dos líderes indígenas de negociar com os governos estrangeiros que os agrediam.

Até que, num dos acordos de trégua, houve a traição e a emboscada, na Sanga da Bica, onde se consumou o intento e Sepé Tiaraju foi assassinado. Na sequência, chacinaram os seus guerreiros na Coxilha do Caiboaté, localizada, hoje, no município de São Gabriel, Rio Grande do Sul.

Depois do covarde massacre, o corpo de Sepé Tiaraju desapareceu, mas os Mbya Guarani afirmam que ele fora elevado ao alto dos Céus, onde se tornou um Facho de Luz a irradiar os caminhos dos sobreviventes de seu povo, que caminham constantemente na busca da Terra Sem Mal.

Sepé Tiaraju de ontem torna-se presença nas lutas de hoje. Assim afirmam os líderes espirituais Mbya Guarani, quando, todos os anos, lembram e celebram a sua memória e de suas e seus guerreiros e guerreiras.

O passado sangrento de séculos se assemelha ao genocídio de hoje, quando terras são invadidas e devastadas por milicianos, garimpeiros, fazendeiros, grileiros e empresários especuladores de riquezas. Esses sujeitos da morte estão sendo protegidos e acobertados por políticos e governantes inescrupulosos.

Sepé Tiaraju, hoje, se faz presente no sofrimento e martírio do povo Yanomami, que tem suas mulheres violentadas, seus maridos assassinados ou escravizados, que tem seus bebês, crianças e jovens desnutridos, morrendo de fome ou contaminados pelo mercúrio e pelas doenças introduzidas e disseminadas dentro do território.

Sepé está presente nas retomadas de terras, nas lutas por demarcações, nos acampamentos de beira de estradas – margens de rodovias – sem habitação, sem terra, sem comida, sem água, sem assistência e sem esperança, a não ser aquela transmitida pelas religiosidades e ancestralidades.

Sepé Tiaraju está lá em Rondônia, onde garimpo é incessante, onde fazendeiros insanos incendeiam e destroem as florestas; ele está no Pará, onde os Munduruku  são violentados; está no Amazonas e no Acre, onde os Kanamari e Madija são brutalizados; está em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, onde os Xokleng, Kaingang, Charrua e Mbya foram desterritorializados; está no Paraná, onde os Avá Guarani são tratados com desprezo e racismo; está em Pernambuco, na Bahia, no Ceará, em Minas Gerais, onde a violência contra jovens não cessa; está em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul entre os Terena, Kaiowá, Myky, Xavante, Nambikwara que perdem territórios dia após dia; está em São Paulo, Rio de Janeiro, Tocantins onde a devastação das florestas compromete o futuro dos povos.

Sepé Tiaraju está nas cosmosvisões, está nos mártires Galdino Pataxó, Xicão Xukuru, Maninha Xukuru-Kariri, Marçal de Souza Tupã'i, Ângelo Kretã, Paulino Paulinho Guajajara, Oziel Terena e tantas e tantos líderes que perderam a vida em defesa de seus direitos fundamentais.

Sepé está nas lutas pela demarcação e garantia das terras e contra o marco temporal, na busca pela consolidação de políticas de saúde e educação diferenciadas. Está no combate ao racismo, à fome, à violência sistêmica contra indígenas, quilombolas, moradores, moradoras de ruas e dos pobres pequenos agricultores.

Sepé Tiaraju está nos indígenas em contextos urbanos, nas mobilizações e movimentos por justiça, liberdade, igualdade e paz. Ele está nas lutas das mulheres que se articulam em pautas comuns de resistência ao machismo, homofobia, aos abusos e todas as formas de preconceito e discriminação.

Sepé vive nas religiosidades indígenas, nos Encantados de Luz, nas Forças da Natureza e ilumina, com as outras guerreiras e guerreiros que tombaram em defesa da Mãe Terra e da Vida os caminhos de resistência ao abuso sistêmico, ao desrespeito e ao genocídio imposto, que parece incessante.

Sepé Tiaraju, Presente!

* Coordenador do Conselho Indigenista Missionário - CIMI - da Região Sul do Brasil

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira