O MPI anuncia, entre suas ações imediatas, que em breve serão regulamentadas 14 terras indígenas
Neste dia 2/2 a quinquagésima oitava edição do programa Arte, Ciência e Ética num Brasil de Fato trouxe importante depoimento de Joziléia Daniza Jagso Kaingang, mulher indígena, antropóloga, chefe de gabinete da ministra Sonia Guajajara, no recém-criado Ministério dos Povos Indígenas (MPI). Este será o tema desta coluna.
Porém, antes, e para não perder o momento histórico que nos coloca, aos olhos do mundo, como uma republiqueta de patetas ainda sob a ameaça daquela “gente do porão”, vamos a um brevíssimo resumo, com links de acesso para quem quiser saber mais.
Há dois dias, na madrugada de quarta (1º) para quinta-feira (2), o senador bolsonarista Marcos do Val (Podemos-ES) informou sua participação em roteiro que ainda renderá filme de espionagem tabajara. Em uma madrugada de 2022, após trânsito suspeito e troca de carros em locais que ele não lembra nem sabe precisar, o senador se viu sentado em frente ao presidente da República, dentro do Palácio da Alvorada (ou do Jaburu, segundo outros depoimentos). Ali, teria escutado proposta de vir a ser peça chave, heroica, em novo golpe de Estado. Para tanto, carregando modernos equipamentos de espionagem e com o apoio de um caminhão especial, ele gravaria depoimentos auto incriminatórios do ministro Alexandre de Moraes, que de forma tola, frajola e inocente, deveria declarar seu interesse em perseguir Bolsonaro, fraudar eleições etc. Com isso, os golpistas prenderiam o ministro Alexandre de Moraes, a eleição seria anulada e aquele decreto encontrado na casa do Anderson Torres, que o ex-ministro da Justiça de Bolsonaro guardou sem saber de onde veio nem por quem foi escrito, seria ativado. A comoção nacional seria estimulada pelos bolsominions e, uma vez potencializada pela ação daqueles malucos que depredaram Câmara, STF e o Palácio do Planalto, possivelmente acompanhada de quedas em torres de energia, ocupações de refinarias e explosões que poderiam ocorrer aqui e ali, trariam – com homens armados nas ruas –, a manutenção da era Bolsonaro.
Pois bem, Marcos do Val teria se recusado a participar deste plano tão genial para manter Bolsonaro no poder, que até lembra as tramoias do Cebolinha e Cascão, para surrupiar o coelhinho da Mônica.
Na prática, e segundo as primeiras declarações do senador, ele teria saído do Alvorada dizendo que ia pensar. O intermediário, ex-deputado Daniel Silveira teria, na reunião, destacado a importância daquela ação para “salvar o Brasil”, enquanto o presidente teria afirmado que ficaria aguardando uma resposta do senador. Meses depois, nesta madrugada de quarta para quinta-feira, o senador do Val trouxe isso a público, declarando sua disposição de, por isso, renunciar à cadeira que ocupa no Senado Federal.
Dormiu em paz, com isso? Talvez não. Ao acordar na quinta-feira, o senador alterou suas declarações. Agora, segundo ele, Bolsonaro não o teria coagido. Aliás, teria se limitado a escutar e balançar a cabeça. Teme-se que nesta sexta, quando segredos contidos nos telefones dos envolvidos começarem a ser revelados, o senador Marcos do Val possa, inclusive, deixar de respirar. Afinal, até agora ele não revelou o nome de outras duas das cinco pessoas que disse estarem a par daquela trama.
De outro lado, resta ao gênio por trás do plano, o agora também candidato ao sacrifício, Daniel Silveira se explicar. Fará isso possivelmente de olho em vantagens de delações premiadas já que foi preso (com R$ 270 mil em dinheiro, em casa). Merece atenção o fato de que foi preso, ontem (2), por descumprir – há meses – obrigação de usar a tornozeleira eletrônica, e que terá seu celular examinado.
Enfim, agora há um vasto conjunto de celulares que, em não sendo examinados, nos colocam como uma nação de patetas. Entre eles, temos o celular do Bibiano, os treze (mais 7 chips) do miliciano Adriano da Nóbrega, os dos contatos daqueles bois de piranha que frequentavam os acampamentos na frente dos quartéis e, agora, mais (pelo menos) os de Marcos do Val, Daniel Silveira e Anderson Torres.
Não foi tão curto, este preâmbulo. Mas vale o registro, e agora vamos ao que interessa. A fala poderosa de Joziléia Daniza Jagso Kaingang.
Há que assistir todo o programa, e aqui vou colocar apenas alguns momentos que me tocaram de forma especial.
Imaginem o desafio de representar e lidar com demandas urgentes de 256 povos indígenas, cujas culturas e visões de mundo vêm sendo apagadas, invisibilizadas, discriminadas, ao longo de meio milênio. Esta é a situação enfrentada pelo MPI e seus gestores. Ali se envolve o reconhecimento, o abrir de portas e a necessidade de fazer o Brasil entender que entre aqueles povos indígenas opera uma noção de casa coletiva e família expandida que ignoramos, e que abarcam o território e todos os seres que neles habitam. Não se trata apenas de enfrentar absurdos como a tragédia dos Yanomamis, a que se somam a dos Pataxós no Sul da Bahia e outros tantos crimes bem documentados e agravados nos anos recentes. Há também que estender compromissos de respeito à diferentes modos de viver, aos executivos que circulam em ministérios e agências dominadas pela cultura do imediatismo, da discriminação e do desprezo à tudo a que lhes é estranho.
Isto implica em desmontar práticas de um racismo internalizado, de forma a superar compromissos/intencionalidades que – em outras pastas – possam se opor à proposições do MPI, já expressas pela Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade - ANMIGA. Joziléia resume este desafio na decisão/conceito de avançar “reflorestando mentes para a cura da terra”. Trata-se de estender – para a institucionalidade – a noção de cuidado da família para o contexto de responsabilidades humanas, que levem a sociedade a perceber o significado da destruição das matas, do envenenamento dos rios, do avanço da fome e das desgraças que se desenham, sob aqueles estímulos, ao aquecimento global. O genocídio dos Yanomamis seria apenas uma amostra do que deve ser esperado se não houver aliança para superação destes dramas, que no curto prazo se desdobrarão em crises cada vez maiores.
O MPI anuncia, entre suas ações imediatas, que em breve serão regulamentadas 14 terras indígenas. Com isso aqueles ambientes passarão a ser cuidados e protegidos por seus povos ancestrais, orientados por aquela perspectiva de corpo-território que integra e abarca dimensões físicas e espirituais.
Estas áreas, que não se limitam às florestas do Norte, incluirão o Morro dos Cavalos, em Palhoça, SC, e Rio dos Índios, em Vicente Dutra, RS, abrindo novas perspectivas para articulação e solidariedade da sociedade urbanizada. Como exemplo, destaca-se o caso do Morro Santana, em Porto Alegre. Território Kaingang ancestral, aquele morro precisa ser reconhecido na importância simbólica que carrega, e no papel que pode desempenhar para a “cura da terra”. Se faz evidente que aquela área quase estéril e ameaçada pela especulação imobiliária, pode ser recuperada no interesse de todos.
A luta da cacica Iracema pela recuperação e cura do Morro Santana passa a receber apoio de um governo que tem, em seus quadros, agentes capazes de ajudar o país a compreender a importância da defesa de conexões até aqui invisibilizadas. Cultuadas por sabedorias ancestrais, estas conexões não apenas se revelam essenciais para a superação da crise climática, como atuam – ao mesmo tempo – em favor da “cura da terra” e da recuperação de valores e direitos humanos fundamentais. O Morro Santana e a luta da cacica Iracema se incluem entre os desafios que se colocam ao MPI, neste entendimento de que áreas sagradas, em franca destruição, precisam ser repovoadas com todas as formas de vida, envolvendo espíritos ancestrais e comunidades orgânicas, humanos e não humanos que compõem a mesma totalidade.
Joziléia examina o caso do Morro Santana destacando que precisamos tomar partido em histórias que envolvem disputas entre grupos que se organizam em torno do conceito relacionado ao “nós”, ao “nosso”, em caráter plurigeracional e em oposição ao imediatismo do “meu”.
O problema evidente da disputa pela titularidade e controle dos territórios indígenas, seja no caso dos Yanomamis em Roraima ou dos Kaingang no Morro Santana, em Porto Alegre, exige cuidados. A desestrusão dos ocupantes não indígenas, em locais onde haverá que deslocar milhares de pessoas, como na questão dos garimpeiros, é claramente mais complexa do que casos simples onde uma empresa quer fazer edifícios no morro. O MPI entende estas dimensões e Joziléia explica, com a mesma visão amorosa orientada para os povos indígenas, que os invasores precisam ser vistos como seres merecedores de afeto. Sem negar os crimes ali praticados, que devem ser apurados e punidos, no caso dos 20 mil garimpeiros que aterrorizam e inviabilizam a vida dos Yanomamis, a simples expulsão forçada seria desumana. Afinal, para onde aquelas pessoas iriam? Ocupariam as pequenas cidades das regiões do entorno, com os vícios e dramas que carregam desde uma vida similar à escravidão? A noção de Reflorestar Mente - Humanizar, exige que isso seja evitado, impondo práticas de atendimento e acolhimento também para aquele grupo, que precisaria ser encaminhado às regiões de origem e à alternativas que reenquadrassem em processos de vida digna aquelas pessoas.
Esta é parte dos desafios que se colocam ao MPI, e que se agravam no universo de confusões causados pelos bolsonaristas, conforme comentado na primeira parte deste texto.
Uma música, para ajudar a compreender tudo isso e não desistir?
De Raul Seixas, tente outra vez.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko