Nas últimas semanas, o Brasil viu estarrecido imagens de crianças e adultos do povo yanomami em situação de grave desnutrição e os relatos a respeito da mortalidade infantil em seus territórios. Cenas geradas, sobretudo, pelo abandono do governo federal, na gestão de Jair Bolsonaro, às políticas para territórios indígenas do Brasil. Contudo, as consequências desta ausência do poder público não teve reflexos apenas no norte do País. No outro extremo do Brasil, kaingangs da Terra Indígena Guarita, localizada entre os municípios gaúchos de Tenente Portela, Redentora e Herval Seco, denunciam que vêm passando por uma grave crise sanitária, de falta de água e de insegurança alimentar.
A TI Guarita abriga atualmente cerca de 8 mil pessoas. Há nove postos de saúde na região, mas apenas um médico para atender todas as aldeias indígenas. De acordo com as lideranças da região, a TI tem visto um aumento da mortalidade infantil decorrente da falta de acompanhamento pré-natal. Para piorar, em razão da estiagem que atinge o Rio Grande do Sul há três anos, os mananciais do território estão secando e a água disponível está sendo contaminada, o que cria mais problemas de saúde e acende o alerta para a situação de insegurança alimentar.
Na dia 26 de janeiro, as secretarias da Saúde (SES), de Assistência Social (SAS) e de Desenvolvimento Rural (SDR) promoveram uma reunião com prefeitos, lideranças indígenas, gestores de saúde e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, para tratar de ações emergenciais a serem adotadas para minimizar os problemas.
No encontro, representantes da Sesai no novo governo federal destacaram que o número necessário de médicos para atender a TI seria de nove. Durante o encontro, o órgão assumiu o compromisso de que, até março, quatro médicos estejam atuando no território.
Deoclides de Paula, coordenador kaingang do Conselho Estadual de Povos Indígenas (CEPI), avalia que os problemas vivenciados pelos indígenas da Guarita não são incomuns aos de outros territórios no Estado e que eles passam pela desestruturação da Sesai. “O problema dos médicos é que eles ganham muito pouco pela Sesai, então ninguém quer ser médico em terra indígena. E muitos também acreditam que não tem futuro ser médico em terra indígena”, diz.
Sobre a falta d’água, Deoclides avalia que a Sesai demorou demais para agir e tomar medidas de enfrentamento à estiagem, que já está em seu terceiro ano no RS. “As consequências vêm vindo, cada vez mais vão se acumulando, porque não teve um planejamento da saúde indígena de que a seca iria bater forte no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Eles não tiveram planejamento. Mas não é só na TI Guarita que falta água, é na maioria das aldeias indígenas”, afirma.
Rodrigo Medeiros, membro da Rede Nacional de Advogados Populares (RENAP), que atende povos indígenas, participou da reunião emergencial do dia 26 e destaca que os problemas de saúde e de falta de assistência social estão conectados. “Por causa desse problema da água, da falta de cesta básica e da falta de recursos que o governo federal anterior cortou, tem crianças subnutridas. Por exemplo, várias pessoas sem ter acesso a água potável, o que estava gerando crianças contaminadas por vermes, segundo relataram. Soma-se a isso a questão das cestas básicas que não estavam sendo entregues”, afirma.
Com relação à falta d’água, ele destaca que havia a previsão de construção de 70 caixas d’água na TI, o que não ocorreu. Contudo, diz que a demanda seria muito superior a este número. “Se vai o carro-pipa levar água potável lá, não tem onde colocar”, diz.
Rodrigo avalia que as demandas sociais e de saúde dos indígenas se agravaram com o que considera ser uma política deliberada de descaso do governo passado. “O problema maior é a falta do estado brasileiro em todas as esferas, municipal, estadual e federal, levando políticas públicas para as áreas indígenas. A gente espera que a reconstrução da política pública agora seja retomada”, diz.
No encontro do dia 26, ficou acertado que os municípios de Tenente Portela e Redentora iriam apresentar um plano emergencial para a entrega de cestas básicas no território e planos municipais de segurança alimentar e nutricional. Paralelamente, a SES se comprometeu a destinar recursos emergenciais ao Hospital Santo Antônio, de Tenente Portela, que está atendendo em caráter emergencial as aldeias indígenas que sofrem com a falta de médicos.
Nesta terça-feira (31), equipes da SES visitaram os municípios de Redentora e Tenente Portela para realizar um levantamento da situação de saúde indígena, com atenção especial para crianças e gestantes. A pasta destaca que apenas em Redentora, onde vivem 6 mil indígenas, 84 mulheres estão grávidas no momento.
“A gente veio para olhar para essa população indígena que está no território, na reserva do Guarita. Redentora tem a maior população indígena dentro da reserva e a gente veio ver as questões de vulnerabilidade que a comunidade tem falado, tanto com relação às questões sociais, como desnutrição, fornecimento de água, que vão impactar na saúde, como também as questões relacionadas aos serviços de saúde, da atenção primária, que são de responsabilidade da Sesai, mas também tem responsabilidades dos municípios e do Estado, então a gente veio fazer uma força-tarefa para alinhar condutas visando qualificar o atendimento”, explica a diretora adjunta do Departamento de Atenção Primária e Políticas de Saúde da SES, Marilise Fraga de Souza.
Marilise diz que o foco principal das ações da força-tarefa no momento são gestantes e crianças menores de 2 anos e que a situação mais crítica verificada foi a de falta de água potável. Em caráter emergencial, o governo do Estado autorizou a compra de caixas d’água com recursos do Programa Estadual de Incentivos para Atenção Primária à Saúde (Piaps).
Ficou definido que, dos atuais R$ 308 mil em caixa no Piaps para Redentora, R$ 158 mil devem ser utilizados para a compra das caixas d’água. Parte do recurso também deverá ser destinado para a compra de recipientes nos quais as famílias possam armazenar água. Além disso, também foi autorizada a compra de equipamentos e materiais de consumo das unidades de saúde da TI.
Já a médio prazo, Marilise diz que a expectativa é de que a Sesai possa normalizar o abastecimento de água, o que passaria pela distribuição de caixas d’água de maior porte para as aldeias.
Quanto à falta de médicos, a diretora da SES diz que foi verificada a escassez dos serviços de saúde que a Sesai têm na região. “Tem postos de saúde sem medicamento, com muito pouco material, com estruturas sucateadas. Falta profissionais médicos nesses locais. Então, essa é outra frente que a gente trabalhou também. A gente tentou alinhar alguns fluxos com os enfermeiros que atendem hoje lá. Hoje está com um médico do município que atende uma vez por semana lá, mas isso não é suficiente, são várias unidades de saúde que estão com atendimento de enfermeiros”, afirma.
Ela pontua ainda que, durante a visita, não percebeu casos de desnutrição grave comparáveis ao que se viu nas reportagens sobre os povos yanomami, em Roraima, mas diz que há, sim, uma situação de insegurança alimentar que precisa ser observada.
Em conversa com o Sul21, o secretário estadual de Assistência Social, Beto Fantinel, diz que vê a situação dos indígenas com apreensão. “Nós temos uma situação nesse território, especialmente de falta de médicos. Isso desencadeou uma série de outros problemas. Há alguns meses que não existem mais médicos nas áreas indígenas de Tenente Portela e Redentora. Somando a seca e mais outras situações, nós temos uma questão agravada de insegurança alimentar”, diz.
Ele avalia que a falta de médicos é um fator que vem agravando os demais problemas, uma vez que leva à falta de tratamento, de medicamentos e a novos problemas de saúde. Para o secretário, ainda que não seja possível comparar a situação da TI Guarita com a dos yanomamis de Roraima, a falta de ação neste momento poderia levar a problemas semelhantes.
“A questão da saúde preocupa muito. A mortalidade infantil aumentou justamente porque não se tem ali um acompanhamento médico de pré-natal. Se nós não tratarmos a situação, pode chegar a ocorrer o que está ocorrendo em Roraima. Nós estamos aqui no início de um processo, aumentou a mortalidade infantil, nós estamos percebendo que os indicadores apontam para um agravamento. Então, se nós não cuidarmos da alimentação deles, da questão da água potável e não tiver médicos, nada afasta que nós teremos ali na frente uma situação semelhante. Mas a gente não quer viver um caos nas áreas indígenas gaúchas, por isso estamos nesse trabalho de chamar a atenção para não deixar agravar”, afirma.
A força-tarefa criada para atender as demandas dos indígenas do norte do Estado estabeleceu um período emergencial de 60 dias para a elaboração de ações e de monitoramento da situação. “A gente vai tentar em 60 dias ter resposta a todas as demandas que foram levantadas, ou ao menos a maioria delas, para que a gente possa diminuir a situação de vulnerabilidade das famílias”, diz Marilise de Souza.
Representantes de diversas secretarias do governo do Estado devem se reunir na próxima semana com autoridades federais do Ministério dos Povos Indígenas, da Sesai e da Funai para tratar da situação da TI Guarita.
Edição: Sul 21