A reconstrução do Brasil precisa ter no seu eixo uma radical desconstrução da lógica colonialista
Em dezembro, quando falei das mulheres que cuidam e que limpam o mundo, eu estava falando sobre feminismo decolonial. Naquela coluna, tentei chamar a atenção para a invisibilidade das mulheres que cuidam do planeta, as catadoras de lixo reciclável, e também daquelas que abrem o mundo todas as manhãs, limpando empresas, estação de trens, aeroportos, etc.
Por isso, foi um verdadeiro presente, ver o presidente da República, depois de subir a rampa com representantes de vários segmentos sociais que sofrem de discriminação e invisibilidade, como indígenas, negros, deficientes, mulheres, e até mesmo uma cachorrinha abandonada, receber a faixa de uma mulher negra, catadora de lixo.
Entendo tal escolha como uma importante formação de compromisso com estes grupos de nossa sociedade. Importante, pois a outra parcela de nossa sociedade parece ser marcada, desde seu nascimento, por uma espécie de paixão por ser colonizada, identificando no colonizador o acesso a seu sonho (“de consumo”, como se diz hoje), de uma plena realização enquanto indivíduo, com o menor índice possível de frustração ou de privação. Bem entendido, em um tal projeto não há lugar para que o outro seja levado em conta. Menos ainda quando este outro não serve de espelho por sua radical diferença, seja de cor, de gênero, de raça e de classe.
Sabemos, entretanto, que este compromisso é apenas o começo de um processo para começarmos a sair dos escombros das destruições que o poder insano produziu em nosso país e em nossa cultura.
O processo de reconstrução do Brasil precisa ter no seu eixo uma radical desconstrução da lógica colonialista que o capitalismo neoliberal traz consigo, produzindo e fermentando uma sociedade desigual, geradora de uma cultura da crueldade e da violência.
O protagonismo das mulheres que hoje estão na linha de frente das nossas instituições é um ponto crucial para que essa desconstrução aconteça, pois elas representam uma promessa de lugar possível de palavra para todas aquelas das quais nossas sinistras estatísticas não cessam de falar: as exploradas, as violentadas, as maltratadas, as espancadas, sem contar as assassinadas, que não podem mais tomar a palavra.
Mas não podemos perder de vista que somente quando tivermos atacado o germe da colonialidade, do qual o capitalismo neoliberal é a eficiente incubadora, teremos uma efetiva mudança de lógica. Sem isso, estaremos escrevendo na água, com um feminismo apenas recuperado pelo Estado, o que Françoise Vergès chama de “feminismo civilizatório”. Este que se dá por satisfeito com a conquista de direitos, sem tocar no incansável mecanismo de reprodução dos trágicos sintomas do mal-estar social: as violências, das quais as mulheres são o alvo privilegiado, porém como resultante da espiral que as precede.
Para falar de feminismo decolonial, hoje me pareceu mais esclarecedor reproduzir para vocês uma fala proferida no Fórum Social Mundial em 29.01.23 por Laudijane Domingos da Silva, historiadora de formação, gestora do Centro de Referência Clarice Lispector, de Recife, Presidente da UMB de Pernambuco e membro da Direção Nacional da UBM Brasil:
“É preciso começar agora, porque é preciso estar atentas e fortes agora. É preciso dizer ao que viemos agora. Que possamos sair da subalternidade, que possamos estabelecer articulações, que possamos construir uma frente ampla, porque a luta contra a violência não é uma luta só das mulheres negras, mas as maiores vítimas são as mulheres negras, porque a luta contra o feminicídio não é só das mulheres negras, mas elas são maioria a serem mortas, porque o desemprego, o subemprego e a desvalorização do trabalho não estão apenas para as mulheres negras, mas nós somos as maiores vítimas deste processo. Se 90% produz a riqueza neste país e dez por cento se apropria, as mulheres são a maioria nesta base de produção de riqueza, e as mulheres negras são protagonistas dentro deste espaço [...]. Não existe apenas a desigualdade, existem as desigualdades[...] eu olho pra vocês e vejo que é possível construir um futuro novo, é possível construir um mundo novo, um mundo em que possamos ser livres, mas a liberdade só não basta. É preciso construir um novo marco civilizatório, um mundo onde homens e mulheres possam caminhar lado a lado, empoderadas, vivas e felizes. Saudações a quem tem coragem! [...]”
* Rosane Pereira é psicanalista e escritora, autora de "Mulheres Esquecidas" (editora Bestiario, 2022), é membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre - Appoa e presidente da Associação Projeto Gradiva - Atendimento clínico psicanalítico para mulheres em situação de violência.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko