Parece que estamos observando um filme já visto, com a evidente sensação de cansaço que isso causa
O domingo, 8 de janeiro de 2023, foi um ponto de virada na história política brasileira do século XXI. Mais de cem ônibus levaram reforços para o mega-acampamento até então situado na frente do Quartel-general do Exército, em Brasília. O dispositivo de policiais militares do Distrito Federal meramente escoltou os “manifestantes” até a Praça dos Três Poderes, com a consequente invasão e quebra-quebra operados pela vanguarda da turba. Passados doze dias, muito já se sabe a respeito de quem estava nos edifícios históricos, das omissões e cumplicidades por parte de militares profissionais – alguns de alta patente – e outras evidências da deslealdade diante do resultado eleitoral. O mal-estar é óbvio e a distensão se consolidou em uma ilustre reunião com intuito de “virar a página”.
Na sexta-feira, 20 de janeiro do ano corrente, ocorreu uma importante agenda, a qual este analista imaginou ver apenas em livros de história contemporânea. O ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, e o Alto Comando das Forças Armadas tiveram um longo encontro, com mais de duas horas e meia de duração. Múcio, insisto, é mais um porta-voz ou intermediário do que titular da pasta no governo civil. Sobre sua atuação, paira uma controvérsia. Um setor da política nacional lhe atribui o papel de articulador de quase golpe, quando intermediou a proposta de decreto de Garantia de Lei e Ordem (GLO), em pleno domingo, 8 de janeiro. Outra parcela, vê sua habilidade em contornar discrepâncias uma das garantias da posse de Lula em 1º de janeiro, sem maiores problemas – ao menos, no dia.
Além do presidente e o “ministro” supracitado, estavam presentes o empresário Josué Gomes com outros cinco colegas industriais do capitalismo ainda nacional, além do topo da pirâmide militar brasileira do momento: o general Júlio Cesar de Arruda (Exército), o almirante Marcos Sampaio Olsen (Marinha) e o brigadeiro Marcelo Kanitz Damasceno (Aeronáutica). Estavam também o vice-presidente e titular do Ministério da Indústria e Comércio, Geraldo Alckmin, e o ministro da Casa Civil, Rui Costa. Ao final do encontro, Múcio afirmou para os veículos de comunicação que não “observa envolvimento direto das Forças Armadas”, mas ao mesmo tempo, assegurou que não haverá impedimento das punições por parte da Justiça, com o devido processo legal. Essa posição – de punir a quem estiver envolvido – foi ratificada pelos comandantes em chefe castrenses.
Supostamente, a reunião aponta a uma “agenda positiva”. Através do comando de Josué Gomes, haveria uma manifesta intenção de retomar a inflexão nacionalista do empresariado brasileiro, através de políticas industriais que vão ao encontro das necessidades mais urgentes das Forças Armadas. Em tese, essa primeira conversa cessa o problema de fundo, ou seja, a deslealdade e a desestabilização permanente através da posição do Alto Comando das três forças, em especial o emprego de operação psicossocial contra a população por parte do Exército Brasileiro.
Parece que estamos observando um filme já visto, com a evidente sensação de cansaço que isso causa. Tal e qual observamos no primeiro governo Lula – com o estúpido aceite da Missão das Nações Unidas no Haiti –, em seu segundo mandato de Luiz Inácio – com a pouco crível posição nacionalista e anti-imperialista das Forças Armadas – e no primeiro governo de Dilma Rousseff – com o avanço em todos os níveis da política industrial, incluindo o setor de defesa. Nestes três importantes momentos históricos do século XXI, o Brasil teve um vislumbre do pântano que é ser uma força de ocupação e, ao mesmo tempo, as reais possibilidades da projeção de poder no Sistema Internacional. Para tal, é necessário contar com Forças Armadas profissionais, leais e capazes de enfrentar os desafios subsequentes de uma política externa voltada ao Sul Global. Isto é estar à altura do desafio de confrontar o norte hegemônico sem cometer o fiasco dos oficiais argentinos (com raras exceções) na Guerra das Malvinas.
Sincera e honestamente, após oito anos de guerra psicológica interna – iniciada com a escolha dos generais então na ativa para participar da vida política sem qualquer mandato – fico com enorme desconfiança das reais intenções do estamento militar brasileiro. Vejamos algumas evidências.
O terremoto político e a contaminação do Estado
O general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, comandante militar do Sudeste (São Paulo), afirmou em discurso na quarta-feira, 18 de janeiro de 2023, que o Brasil atravessa um terremoto político e este turbilhão pode quebrar a coesão das Forças Armadas. A fala do general que tem assento no Alto Comando clama pelo respeito ao resultado da urna – “mesmo que a gente não goste, não sendo quem a gente queria”. Seu discurso foi celebrado como a mais incisiva fala contra a desobediência e “a incoerência e o desrespeito”.
Simultaneamente, o agora onipresente ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, para “evitar parecer que há uma tentativa de intromissão na gestão das Forças Armadas” não vai mexer no organograma deixado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. São mais de 800 militares na pasta, um evidente exagero para atender demandas setoriais e cartoriais. A limpeza ou “desbolsonarização” é uma necessidade vital para descontaminar da presença fascista ou do “trumpismo tropical” o aparelho de Estado brasileiro, com especial proximidade com o Poder Executivo.
No caso do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), órgão diretamente ligado ao Alto Comando e especialmente ao Exército, a contaminação é enorme. Temos casos de militares profissionais que cumpriam expediente no Palácio do Planalto e, após encerrar seu horário, avançavam a conspirar de fronte ao QG do Exército. Para evitar esse conflito de interesses e poder seguir aplicando a “limpa”, o ministro chefe do GSI, general Gonçalves Dias, não foi convidado para a reunião com o Alto Comando das três forças.
Se e caso todos os militares profissionais que participaram de atos golpistas venham de fato a ser punidos dentro dos rigores da lei, é quase impossível não atingir generais de quatro estrelas e oficiais de alta patente. O cerco a Bolsonaro avança consideravelmente e seu ex-ajudante de ordens, o tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, seria elemento central das operações financeiras ilegais do ex-presidente. É bastante improvável que essas atividades, pouco ou nada republicanas, não fossem de alguma forma conhecidas da inteligência da caserna.
O tamanho da contaminação é gigantesco. O pai de Cid é general da reserva e amigo íntimo de Bolsonaro. O ex-ajudante de ordens foi lotado para comandar o 1º Batalhão de Ações e Comandos, dentro do Comando de Operações Especiais, baseado em Goiânia (GO). Ou seja, caso a lei atinja o estafeta de Jair Messias, a crise institucional já está dada.
Ao que tudo indica, a capacidade de governar de Lula, do partido de governo e de sua base amplíssima está diretamente ligada às necessárias punições de militares profissionais envolvidos em atividades ilícitas e de conspiração golpista. Disciplinar a caserna nem de longe é mais relevante do que distribuir riquezas e garantir políticas públicas para a diminuição da desigualdade. Mas é simplesmente impossível o exercício do Poder Executivo sem uma devida rede de proteção contra novos intentos de golpe. O futuro próximo do país, da América Latina e de parte do Sul Global dependem diretamente das investigações da conduta de militares de alta patente. É isso ou quase nada a fazer.
Observação: 24 horas após a reunião com os comandantes das três forças, o presidente Lula demitiu o comandante geral do Exército e pôs em seu lugar o general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, comandante militar do Sudeste e autor do discurso legalista e em defesa das regras democráticas. Parece que existe um candidato a marechal Lott para o século XXI.
* Este artigo foi originalmente publicado no portal Monitor do Oriente Médio
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** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira