Necessitamos, como comunidade humana, é dar sentido histórico à nossa indignação e revolta
O grito levantado pela multidão no Festival do Futuro em Brasília, em 1º de janeiro de 2023, foi histórico: carregava o peso da ausência de todas as pessoas presas, torturadas, desaparecidas e não reconhecidas pelo Estado brasileiro durante a ditadura cívico-militar. Somavam-se também as centenas de milhares de mortos pela pandemia de covid-19, assassinadas pelo negacionismo e pela negligência do então presidente e seus ministros. E, porque jamais poderemos esquecer, os milhares de indígenas mortos durante os infernais quatro anos que durou o governo Bolsonaro, que instalou um cenário de guerra em plena floresta tropical.
A barbárie se reafirmaria uma semana depois, com a invasão e vandalização do patrimônio histórico e simbólico dos três poderes pela organização terrorista de bolsonaristas de diversas cidades do país. Uma radiografia exposta daquilo que precisaremos enfrentar, enquanto sociedade, para que a democracia brasileira possa se consolidar como fato e não como simulacro. É muito diferente do que acontece agora no Peru, onde o povo está lutando para que novas eleições sejam realizadas, denunciando o autoritarismo de Dina Boluarte e pedindo a dissolução do Congresso, representante das oligarquias daquele país.
Restaurada a institucionalidade necessária para a recuperação de um projeto de nação, emergiram então as imagens. E a indignação coletiva. Nós já sabíamos dessa situação, já havia sido noticiada e denunciada internacionalmente, mas o sequestro da máquina pública pela milícia bolsonarista nos fez reféns de um projeto de colonização que precisa ser interrompido. O genocídio indígena foi denunciado, como já escrevemos aqui, até mesmo com a morte ritualizada de Jaider Esbell: era preciso fazer-se entender, em quantas linguagens possíveis, o que está acontecendo no Brasil.
Em 40 anos de vida, eu só havia visto pessoas naquele grau de desnutrição, contemporaneamente, quando da guerra civil da Somália, e a comoção internacional foi flagrante. Aquelas imagens marcaram a minha juventude. Nas redes sociais, a imagem da anciã indígena, que veio a falecer dias depois (e que não reproduziremos em respeito ao ritual yanomami de não circular fotos e objetos de seus mortos), comparando os fatos ao holocausto nazista, é mais do que apropriado. As cenas do holocausto Yanomami só confirmam o que também já esteve estampado em charges e capas de revista: a similitude de Bolsonaro a Hitler.
E este é outro sinal que tampouco deve ser ignorado: a saudação nazista feita por seus seguidores, quando dos ataques em Brasília, evidencia o que também já sabemos. A multiplicação das células neonazistas em território sul-americano se fez notar no atentado contra a vice-presidenta argentina, Cristina Kirchner que, como Lula, também tem sido vítima de lawfare. O movimento feminista argentino, ágil em analisar as violências do patriarcalismo capitalista neoliberal, nomeou o fato: magnicídio. É exatamente este termo que devemos empregar ao questionarmos a fotomontagem realizada pela linha editorial do jornal Folha de São Paulo e publicada na capa, sugerindo o alvejamento de Lula.
Alvejar, tornar branco, hegemônico, colonial: este é o projeto da extrema direita no mundo e, particularmente, em nossos territórios de Abya Yala. América Latina carrega um histórico extenso de resistências plurais protagonizadas por comunidades originárias e afrodescendentes, as quais precisamos cada vez mais reconhecer e multiplicar. É realmente emocionante ver, como ministras, figuras como Sonia Guajajara e Anielle Franco, que encarnam em suas trajetórias pessoais aquilo que hoje organizamos, textualmente, como as experiências de feminismo comunitário.
Hoje o que necessitamos, como comunidade humana, é dar sentido histórico à nossa indignação e revolta. Não como os bolsonaristas, pois são eles também parte deste problema complexo que herdamos. Mas como povo, que ocupa tanto a institucionalidade como seus territórios de vida de maneira legítima. Já observamos os primeiros passos com a chamada de profissionais para compor a Força Nacional do SUS que, como bem reconheceu o presidente Lula, é sem sombra de dúvidas a nossa maior experiência democrática e que precisa, cada vez mais, se aperfeiçoar e fortalecer. E justamente em nome da democracia e dos direitos humanos, temos que exigir a condenação de Bolsonaro em Haia, e a cassação e punição de Damares Alves que, como senadora, tenta gozar da imunidade parlamentar para não responder por seus muitos crimes cometidos enquanto era ministra.
O futuro é ancestral, e isso não acontecerá sem justiça.
* Lara Werner é sanitarista com formação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira