Rio Grande do Sul

Coluna

Na cidade, quem não arrecada não governa (ou deixa outros governarem)

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Simulação de revitalização do Quarto Distrito, divulgada pela prefeitura de Porto Alegre, local que conta com isenções tributárias para a construção civil - Imagem: Masterplan 4D/PMPA
Depois que deixa de arrecadar, diz que é necessário privatizar porque não há dinheiro

“O que é governança em termos conceituais?

Para entender o que é governança, precisamos olhar para a origem da palavra ‘governar’, que veio de ‘governancia’ na linguagem greco-romana. Governar contém propriedades importantes. A primeira é a capacidade de dar uma direção e impor restrições de modo a garantir que ela seja seguida. Quando uma direção é escolhida, em geral há uma discussão sobre a direção em curso e seus limites. Porque existe direção, constrangimento e debate, esse é um conceito político, que não pode ser o das ‘Best Practices’” (Patrick Le Galès: Quem governa quando o Estado não governa? Uma abordagem sobre governo e governança nas cidades. NOVOS ESTUDOS CEBRAP, nº 102, julho de 2015)

 

Vejam que interessante: o título da entrevista feita com Patrick Le Galès, sociólogo e cientista político francês que pesquisa sobre as cidades, cai como uma luva sobre o que vem acontecendo em Porto Alegre nos últimos tempos.

Afinal, se um prefeito diz que a única forma de gerir bens públicos é ceder a gerência para a iniciativa privada, o que está sendo feito é uma resposta à pergunta de Patrick Le Galès: “quem governa quando o Estado não Governa?”, no caso portoalegrense, são as empresas privadas. E se governar é escolher uma direção e impor restrições e caminhos para que esta direção seja seguida, qualquer direção escolhida é sempre política, não técnica.

Logo, a decisão de não governar é essencialmente política, e assim deve ser discutida. Qual é um dos primeiros problemas que aparecem quando um mandatário abdica de governar em proveito à iniciativa privada? Ora, é bem simples: as empresas não foram eleitas. Nenhum cidadão escolheu elas para governar quando votou no dia das eleições. Aliás, quando votou, o cidadão não tinha como saber quais empresas seriam escolhidas para “governar”. Se tem empresas querendo governar, porque não se apresentam nas eleições?

Uma pergunta para os juristas: abdicar de governar não é improbidade administrativa? Aliás, os ultraliberais são engraçados: dizem odiar e ser contra o Estado, mas a primeira coisa que fazem é concorrer a cargos... no Estado. Obviamente porque esta é uma forma de colocar o Estado a serviço da pauta liberal, pretensamente “anti-estado”. Se isto não é a prova que é impossível atuar social e politicamente sem a presença estatal, não sei mais o que seria.

A pretensa justificativa para repassar estabelecimentos e serviços públicos para a iniciativa privada são basicamente dois: a) falta de dinheiro da prefeitura; b) eficiência maior da empresa privada.

Vamos começar pelo segundo argumento. Como qualquer cientista – de qualquer área – sabe, um argumento que não pode ser comprovado deve ser descartado. Qual seria a comprovação de que a iniciativa privada é sempre melhor que a empresa pública? Onde estão os dados capazes de comprovar isso? Temos os dados gerais de sobrevivência de empresas no Brasil: segundo a pesquisa mais recente do IBGE (Demografia das empresas e estatísticas de empreendedorismo: 2020), com dados anteriores à pandemia covid-19, após cinco anos de abertura de empresas, apenas 40,7% sobrevivem. Isto não me parece muito eficiente, sob qualquer critério que se queira pensar. Aliás: quantas vezes não aparecem notícias sobre obras paralisadas porque a empresa contratada pela prefeitura faliu ou desistiu do contrato? Alguém já contabilizou todo o prejuízo causado aos cofres públicos, e à própria cidade em si, das obras paralisadas pela... iniciativa privada? Reiteradamente, este modelo de obras se mostra falho e ineficiente. Porque se insiste em dizer que a empresa privada é melhor para cuidar da coisa pública? Simples falácia? Ou existem interesses econômicos que se sobrepõe aos interesses da cidade e dos cidadãos?

Voltemos, agora, ao primeiro argumento: falta de dinheiro.

O dinheiro disponível para a prefeitura vem basicamente de impostos municipais. Ou, dito de outra forma: ainda que existam transferências de impostos e verbas das esferas estaduais e federal para os municípios, a capacidade de prestar serviços públicos eficientes no município vem da capacidade de arrecadar com eficácia os impostos de caráter municipal.

A respeito disso, o que tem feito a administração atual de Porto Alegre? A promulgação de leis e decretos que diminuem a capacidade de arrecadação do município. Vamos relembrar alguns exemplos. Durante a pandemia de covid-19, com a justificativa de estimular a retomada econômica da cidade e diminuir os prejuízos com a paralização de atividades, foi promulgada a Lei Complementar 912/2021 que suspendeu a atualização da Planta Genérica de Valores (PGV) instituída em 2019. Lembremos que, apesar de todas as críticas, faziam quase 30 anos (!!) que a PGV não era sequer atualizada pela inflação ou pelas valorizações imobiliárias na cidade. Por que isto é importante? Porque a PGV é onde ficam registrados os valores dos imóveis como base para arrecadação de IPTU. E, diga-se de passagem, estes valores, mesmo quando atualizados, são abaixo dos preços de mercado.

Dois exemplos conexos: o Plano Diretor de Recuperação do Centro Histórico (LC 930/2021) e o Programa +4D, do chamado Quarto Distrito (LC 960/2022).

Sobre o Centro: Artigo 15 da LC: “No cumprimento dos objetivos deste Programa, o Município de Porto Alegre utilizará, entre outros instrumentos e incentivos, a alteração de padrões de regime urbanístico e incentivos relativos à outorga onerosa do direito de construir”. Parágrafo único do Art. 22: “No caso de adesão a este Programa, ficam isentas do pagamento do Solo Criado as edificações localizadas nos setores prioritários, conforme o Anexo VI desta Lei Complementar”.

Sobre o Quarto Distrito: Parágrafo único do Artigo1º da LC: “Para a consecução dos objetivos deste Programa, serão instituídos regimes urbanísticos especiais, incentivos urbanísticos e tributários e outras flexibilizações urbanísticas e edilícias, bem como a execução de projetos e obras públicas estruturantes”.

Como o leitor já deve ter percebido, existem muitos pontos e questões que merecem discussão e severas críticas sobre estas Leis Complementares que alteram significativamente o Plano Diretor exatamente no momento em que o mesmo está passando por uma revisão obrigatória. Mas o ponto deste artigo, agora, é mostrar que estas LCs não só alteram o PDDUA em favor de setores específicos do empresariado (a indústria imobiliária), mas que para fazer isso a prefeitura explicitamente abre mão de arrecadar o mesmo dinheiro que depois serve de justificativa para... privatizações.

Chega a ser bizarro: primeiro, deixa de arrecadar impostos e institui leis para justificar a falta de arrecadação. Depois que deixa de arrecadar, diz que é necessário privatizar porque não há dinheiro para cumprir com as obrigações de uma prefeitura!

E, vejam: todas estas abdicações de impostos não foram para aliviar os pobres, que pagam excessivos impostos de consumo. É um Robin Hood às avessas: dá dinheiro para os ricos e depois diz para os pobres que não tem dinheiro para atender as demandas da cidade.

Estado e impostos não são uma invenção “comunista”. Muito pelo contrário: o Estado moderno é uma criação do desenvolvimento do capitalismo. E impostos existem porque esta é a forma mais eficaz, dentro do próprio capitalismo, de criar as condições para que a acumulação de capital se dê de forma mais eficiente.

Aliás, impostos sobre a terra e a propriedade urbanas existem em praticamente qualquer cidade do mundo por uma razão: eles servem não só para que prefeituras tenham dinheiro para serviços, mas porque esta é uma forma de recuperar e mobilizar, em benefício da comunidade, uma parte ou a totalidade dos incrementos de valor da terra que tenham sido decorrentes de ações alheias às dos proprietários de terras. Porque um pedaço de terra altamente valorizado não se valorizou por causa do proprietário. E sim porque existe toda uma infraestrutura pública construída que aumenta o preço da terra do proprietário. É isto que deve ser taxado. Devolver ao público o que foi valorizado por obras públicas. Não o contrário. Se isto é feito em cidades como Chicago e Nova York, porque não aqui?

* Mario Leal Lahorgue, professor do Departamento de Geografia da UFRGS e pesquisador do Observatório das Metrópoles.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira