Em 2000, a Mãe Gilda de Ogum morreu vítima de um ataque cardíaco, causado por uma série de agressões físicas e verbais a ela, sua família e seu terreiro. O episódio fez com que, em 2007, fosse instituído Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, através da Lei 11.635. Para marcar a data de luta, foi realizada, neste sábado (21), em Porto Alegre, XV Marcha Estadual pela Vida e Liberdade Religiosa do Rio Grande do Sul. Devido ao mau tempo, a celebração ocorreu dentro do Mercado Público.
“A marcha é uma constante, uma continuidade das nossas lutas. Ela é um dos elementos das nossas lutas. Nós entendemos que o povo de terreiro é o povo que mais sofre com a intolerância religiosa”, afirma Baba Hendrix Silveira, integrante do Conselho dos Povos de Terreiros.
Esse ano o tema da marcha foi "Religiões em Luta pela Democracia". A escolha, explica Hendrix, se deu pelo retrocesso nos direitos humanos nos últimos quatro anos. “Existem dados estatísticos apontando que de 2020 para 2022 houve um aumento de 45% da perseguição às tradições de matriz africana, das agressões, incêndios e até mesmo assassinatos. A marcha esse ano é em busca dessa democracia que a gente acredita que não está dada”, salienta.
Para o presidente da União Nacional de Negras e Negros pela igualdade do Rio Grande, Chendler Siqueira, a edição deste ano acontece em um momento histórico. “Derrotar Bolsonaro foi apenas a primeira batalha para a derrota da extrema-direita, do fascismo, de toda essa onda de ódio, esse discurso de intolerância que nós temos vivido. É momento de enxergar a diversidade, as diferentes matizes que compõem a sociedade brasileira para, de fato, redemocratizar essa nação, construir as bases constitucionais dos direitos sociais e coletivos que nos últimos quatro anos nos foram negados", afirma.
Conforme destaca Chendler, que também é coordenador do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana, para além do aspecto religioso, os praticantes de religião de matriz africana constituíram um legado que ajudou a construir a nação. Por isso, de acordo com ele, a ideia é que seja reconhecida institucionalmente. “Estamos trabalhando com o Projeto de Lei 1279 de 2022, que vai ser o marco legal dos povos de matriz africana no Brasil. Ele vai dar legalidade e segurança para que os nossos povos sejam institucionalmente reconhecidos, a nossa forma de organização e as nossas práticas sejam salvaguardadas pelo Estado brasileiro.”
Respeito às diferenças
Na avaliação da Iya Flávia, presidenta do Coletivo Meninas de D’Oyá, do município de Rio Grande, não se pode naturalizar que está tudo normal. "Ainda tem muito que se fazer, a se conhecer, a ser avaliado. Somos esse povo que ainda não está reconhecido como deveria. Existe leis, projetos, estamos aí com a lei do Marco conceitual Makota Valdina - Lei 1.279, como outras tantas, mas ainda precisa muito mais."
"Estamos aqui unidos hoje para fazer essa caminhada, para que as pessoas nos ouvirem, enxergar e nos inserir dentro da sociedade”, enfatiza a Iyá, destacando a situação da mulher preta, que está ainda na base da pirâmide.
Professora de filosofia, coordenadora de projetos do centro cultural Ilé Asé Aloyá Ìfokànrán e integrante do Coletivo Meninas de D’Oyá, Juliane Soares destaca que o terreiro também é um espaço pedagógico e político. “A gente precisa é entender que o que fazemos, o que a gente vivencia, nossos saberes, os nossos deuses e deusas, toda a nossa questão relacionada com terra. São questões filosóficas que tem uma matriz africana”.
Falando de sua experiência como psicóloga, Charlene da Costa Bandeira, do quilombo Macanudos, de Rio Grande, e integrante centro e do Coletivo Meninas de D’Oyáe, destaca o sofrimento psíquico que acomete toda a população negra por conta do racismo. “Isso faz com que a gente tenha os maiores suicídio, maiores índices de doenças mentais. Toda doença que a gente colocar um recorte de raça a gente vai compreender que o povo negro é o que mais sofre. Isso é por conta do racismo", afirma
Segundo ela, ao pensar o quilombo e o terreiro como espaço de construção de identidade, "conseguimos entender a história desse Estado, que é racista, que tenta apagar a história, tanto dos quilombos como dos terreiros. Aí quando estamos nesses espaços de aquilombamento, nesses territórios sagrados que é o quilombo, o terreiro, conseguimos construir uma identidade positiva do nosso povo, uma identidade que nos traz saúde”. A comunidade Macanudo é única certificada da cidade de Rio Grande, berço do batuque do Rio Grande do Sul.
Ativista da causa animal, a artista perfomática Adriana Rodrigues há 15 anos vem puxando a marcha. Todo ano ela faz uma homenagem a um orixá. Neste ano homenageou Ogum, aquele que abre os caminhos. “Vem política nova, vem vento novo agora. Então acho que é bem coisa do Ogum, que é o pai da tecnologia. Temos que ter tolerância para outras pessoas. O Brasil é múltiplo, temos que respeitar essas diferenças. Se eu vou na igreja eu digo amém, se eu vou no budismo eu faço namaste.”
Presente no ato, a deputada federal Reginete Bispo (PT) enfatiza que o Brasil é um país negro, formado a partir das tradições de matriz africana e das tradições indígenas. “Todos nós brasileiros temos alguma prática que vem da religiosidade desses povos. No entanto ela é silenciada, invisibilizada ou criminalizada, como a gente verifica ao longo da história."
Para a deputada, ter um Dia Nacional das Tradições de Matriz é muito importante. "Hoje é um dia de lutas. Lutas contra a intolerância. No dia 21 de março, quando é celebrado o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé, é um dia de celebração da nossa existência, celebração da nossa fé, da nossa originalidade, enfim, e sobretudo celebração da possibilidade da gente poder viver junto em harmonia”, afirma.
Estado laico e democracia
Representante do Coletivo Abrigo, comunidade cristã de Porto Alegre, Thiago Santos comenta que a importância da marcha é justamente afirmar que o papel das religiões é de servir e de amar. "E não o papel de ser instrumento de Estado para oprimir e perseguir outras religiões minoritárias, como vimos nos últimos quatro anos de governo Bolsonaro. A religião, quando não é mediada pelo amor produz violência. É essa violência que vimos muito presente, e ainda é presente no discurso do bolsonarismo, fazendo uso da religião nome de Cristo.”
Citando o arcebispo anglicano Desmond Tutu, falecido em 2021, Thiago pontua que a fé é como uma faca que pode ser usada para repartir o pão ou para ser enfiada nas costas de alguém. “Vimos a fé sendo usada para ser enfiada nas nossas costas. Nossa proposta aqui hoje, com essa marcha, é dizer que a fé pode ser usada como uma faca para repartir o pão”, afirma.
Também presente na manifestação, Dom Humberto Maiztegui Gonçalves, bispo anglicano da Diocese Meridional em Porto Alegre explica que a marcha tem três funções: organização, visibilidade e reflexão. Organização de promover o encontro de várias matizes religiosas. A visibilidade quando os manifestantes vem com suas indumentárias. E reflexão, citando o Seminário Religiões em Luta pela Democracia e o Estado Laico, que aconteceu pela manhã.
Ele destaca que o Estado laico é a democracia religiosa. “Não é um Estado ateu, onde ser religioso é proibido. Mas um Estado onde toda forma de religião ou até a não religião sejam igualmente respeitadas e conhecidas por todas as pessoas, porque para respeitar, precisa conhecer. Por isso que a gente usa a palavra respeito no lugar de tolerância, porque para tolerar eu não preciso conhecer, mas para respeitar, eu preciso conhecer.”
Thiago complementa pontuando que o Estado Laico acolhe a espiritualidade porque entende que a espiritualidade, a fé e a não fé, são dimensões humanas e importantes. "Por isso a importância também de estabelecermos esse diálogo político com a religião. Durante muito tempo o Brasil foi um país onde religião, futebol e política não se discutia, e isso nos trouxe até aqui hoje, até o bolsonarismo, isso só fortaleceu os discursos fundamentalistas, que nunca tiveram um contraponto. Acabaram inclusive sequestrando Deus e a religião, acabaram tendo o monopólio desse discurso porque nós, da esquerda, nos isentamos de discutir e debater a espiritualidade", avalia.
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Edição: Marcelo Ferreira