Caíque Oliveira esteve em Porto Alegre em 2022, por ocasião de uma atividade promovida pelo Sindicato dos Servidores da Justiça do Estado do RS (Sindjus/RS), dentro da programação do Novembro Antirracista Unificado.
Na roda de conversa, que teve a cobertura do Brasil de Fato RS, Caíque falou sobre sua vivência no meio da comunicação e da publicidade, abrindo caminhos para tratar sobre os desafios da construção de uma comunicação antirracista.
Naquele dia, o publicitário ressaltou que sua visita a Porto Alegre não foi motivada por lazer. Sua vinda foi parte de uma tarefa que abrange uma luta que é muito maior e mais antiga que ele próprio.
Apesar de cumprir essa tarefa, ele lembrou aos presentes que ainda "é preciso que pessoas da minha cor se machuquem diariamente para tentar mudar o mundo. Para falar de antirracismo, a gente precisa falar de racismo. Uma pessoa preta ter que falar sobre a própria dor é também se machucar".
Nesse sentido, Caíque lembrou dos compromissos que os brancos precisam ter com o combate ao racismo. Ou seja, se lembrarmos que o sistema racista que monta a nossa sociedade é uma criação dos brancos, é possível dizer que somente se afirmar antirracista é muito pouco atualmente.
Além de cobrar esse compromisso, ainda trouxe exemplos de estratégias de comunicação que mobilizam o racismo para passar suas mensagens, falou de experiências próprias e de mídias e canais construídos por pessoas negras que fazem essa comunicação antirracista.
Nesta entrevista ao Brasil de Fato RS, Caíque retoma essas temas, traz suas visões sobre a comunicação e ainda opina sobre o próximo período na comunicação. Confira:
Brasil de Fato RS - Primeiro, gostaríamos que tu te apresentasse e falasse um pouco sobre tua trajetória na comunicação e na publicidade.
Caíque Oliveira - Eu tenho 29 anos, sou apaixonado por comunicação e já cheguei na área consciente de que as portas para mim seriam mais pesadas de abrir.
Eu escolhi publicidade e propaganda por vocação e amor, porque definitivamente esse não é um curso que alguém preto, pobre e nordestino escolhe esperando qualquer garantia de sucesso profissional, mas ainda assim algo me dizia que era o que eu tinha que fazer.
Eu passei a graduação inteira vendo gente mediana conseguindo inúmeras oportunidades enquanto eu me esforçava o triplo e não aparecia nada. A cor das pessoas medianas eu não preciso nem dizer, né? Até que um dia eu decidi que o espaço que ninguém me dava eu ia abrir e entrar.
Assim que eu vi uma vaga para estágio em jornalismo no Sindicato dos Servidores do Poder Judiciário do Estado da Bahia (SINTAJ/BA) eu me candidatei. Estudante de publicidade, numa vaga de jornalismo. Era estranho, mas era a minha chance, porque eu nasci para falar com as pessoas e naquele momento eu não queria trabalhar numa agência. Eu queria lidar com pessoas e não com produtos.
Aproveitei a oportunidade, fiz a seleção com outras tantas pessoas e passei. A primeira parte do plano já tinha sido executada, agora faltava a segunda. Da contratação em diante, eu tornei a comunicação daquele sindicato diferente. A partir da minha chegada com a mente fervilhando de ideias a gente passou a ter demandas que conversavam mais com a minha área de atuação, então a demanda por uma pessoa do jornalismo naturalmente surgiu, uma jornalista foi contratada e eu fui efetivado, finalmente podendo trabalhar com o que escolhi para a vida.
Lá eu fazia as coberturas fotográficas, a parte de mídias sociais, pensava as campanhas do sindicato, etc. Coloquei em prática tudo o que eu sabia fazer de melhor e pude provar que basta uma oportunidade para que pessoas como eu brilhem, porque eu digo sem nenhuma modéstia que eu brilhei durante toda a minha passagem pela entidade, que se encerrou no último mês de novembro, após 5 anos de uma trajetória linda.
Em algum momento no meio do caminho eu fui contratado pela Federação Nacional dos Trabalhadores do Judiciário nos Estados (Fenajud) para fazer a gestão das redes sociais da entidade e seguimos juntos até hoje numa parceria que muito me orgulha.
Atualmente, além da Fenajud, eu sou social media da agência Amarelo Limão, onde estou experimentando novas possibilidades e linguagens. Nesse momento quero alcançar novos lugares e ocupar outros espaços. Reconheço as dificuldades que alguém como eu enfrenta somente pela cor da pele, mas nenhuma delas são um freio capaz de me fazer parar.
BdF RS - Na oportunidade que tu esteve em Porto Alegre, na Roda de Conversa do Novembro Antirracista Unificado, antes de falar sobre comunicação antirracista tu falou que, para construirmos uma sociedade menos racista, primeiro os brancos precisam ceder. Pode falar um pouco sobre isso?
Caique - Nós temos pessoas brancas controlando os mais diversos espaços enquanto nós, pessoas pretas, estamos lutando por oportunidades.
A gente acorda e vai para uma seleção de emprego ser entrevistado por uma pessoa branca, enquanto mentalmente imploramos para aquele indivíduo escutar o que a gente tem a dizer ao invés de olhar para a nossa pele e bloquear os ouvidos, porque parece que algumas vezes nenhuma palavra que a gente diz é ouvida, já que qualquer pessoa branca sem muito esforço acaba sendo escolhida.
Eu lembro de uma seleção de estágio que fiz com algumas pessoas e no final restaram duas disputando a vaga. Eu e um rapaz branco. Em algum momento deram um texto para a gente ler, acho que era um teste de dicção. No texto, entre outras palavras dessas que são escolhidas para esses testes, havia a palavra “registro”. Ele leu “rezistro” e foi aprovado. E eu, que não cometi erro algum, recebi um “muito obrigado e até a próxima!”.
:: Roda de conversa promovida pelo Sindjus debate os desafios da comunicação antirracista ::
Para o racismo acabar, pessoas como esse rapaz precisam ser justas e reconhecerem seus privilégios e chefes como aqueles mudarem a sua forma de enxergar o outro. Você recusaria essa vaga que conseguiu injustamente só por ser branco ou pensaria “eu também estou precisando” e ainda agradeceria a Deus pela benção de ser escolhido?
A gente só vai superar o racismo quando entenderem que não é só parar de chamar preto de macaco. É ceder, reconhecer os próprios privilégios e se colocar firmemente contra o racismo em qualquer situação, ainda que você perca alguma coisa, porque a gente já perde todos os dias sem precisar fazer nada.
A gente só vai superar o racismo quando entenderem que não é só parar de chamar preto de macaco
BdF RS - Em Porto Alegre tu fez análise de algumas estratégias de comunicação política que se utilizavam do racismo como ferramenta de mobilizar seu público-alvo.
Caíque - O exemplo mais recente que nós temos é o dos opositores ao presidente Lula chamando o Rene Silva, criador do jornal Voz das Comunidades, e os moradores do Complexo do Alemão no Rio de Janeiro, de traficantes.
Ao ver uma pessoa negra subir a favela com o candidato à Presidência da República, líder nas pesquisas, a oposição precisava de alguma forma pautar o assunto, mas para que isso gerasse algum impacto negativo para Lula e positivo para Bolsonaro, a escolha deveria ser por uma narrativa que conversasse diretamente com o Bolsonaro e os bolsonaristas, que estariam prontos para espalhar a versão escolhida.
E então, qual foi a versão disseminada sem qualquer resistência pela base de apoiadores dele? A de que as pessoas negras ali presentes eram traficantes.
Nenhuma surpresa, né? Um grupo de pessoas pretas numa favela. É só dizer que são traficantes que ninguém terá a menor dúvida. E funcionou.
Na sequência o esforço dos apoiadores de Lula se tornou o de desmentir esse absurdo e ainda ter que deixar claro que a sigla “CPX” em seu boné era uma abreviação de “complexo (do alemão)” e não qualquer nome de facção criminosa. Mas tudo isso só aconteceu, porque é fácil fazer as pessoas acreditarem que pessoas pretas são criminosas. É só dizer que elas são.
A gente não fica em segundo plano quando somos nós falando por nós
BdF RS - Ainda sobre a comunicação, quais exemplos podemos dar de veículos de comunicação que pautam o antirracismo e qual a importância deles.
Caíque - Podemos citar o Portal Geledés, Alma Preta, Notícia Preta e Blogueiras Negras. É importante consumir conteúdo pensado e produzido por pessoas pretas, porque ele é sempre agregador e nunca excludente.
A gente não fica em segundo plano quando somos nós falando por nós. Precisamos de espaços onde o nosso ponto de vista seja valorizado e não dependa sempre de um olhar branco para validar as nossas demandas.
BdF RS - Em Porto Alegre, tu também falou sobre como o antirracismo precisa ser construído desde os próprios espaços/ambientes de trabalho que envolvem a comunicação.
Caíque - É importante perceber que não basta apenas contratar pessoas negras. Elas precisam poder falar, construir, colaborar. Não adianta contratar uma pessoa negra e não dar espaço para que ela apresente o seu ponto de vista e crie novas possibilidades. Uma redação sem pessoas negras não é antirracista. Uma redação com pessoas negras que ninguém ouve não é antirracista.
Cobrar o dobro das pessoas negras por duvidar da nossa capacidade não é ser antirracista. Ignorar a nossa presença em reuniões ou evitar que estejamos presentes nas mais importantes, porque não temos “a cara da empresa”, não é ser antirracista, mas infelizmente é assim o dia a dia de diversos colegas negros da comunicação.
Acolher uma pessoa negra numa empresa não é tratar ela melhor do que todo mundo, nem usá-la como prova de que você não é racista. Acolher uma pessoa negra é proporcionar a ela um ambiente onde ela possa se expressar como todo mundo e ter as mesmas possibilidades que todos os colegas, sem ter que se esforçar o dobro para ter as mesmas oportunidades de crescimento.
BdF RS - Cada vez mais observamos pessoas negras aparecendo em papéis de protagonismo em produções publicitárias ou em espaços da mídia, como telejornais e ficções. Qual tua avaliação desse momento?
Caíque - Insuficiente. Só para citar um exemplo da ficção, a história da novela "Segundo Sol" se passava aqui em Salvador e o elenco principal não tinha pessoas negras. A cidade mais negra do mundo fora da África foi embranquecida para poder passar na Globo.
Se qualquer ator ou atriz baiano viu nessa novela a possibilidade de conseguir um espaço de destaque no horário nobre da maior emissora do país, a Globo fez questão de deixar claro que não é assim que a banda toca. E é isso. Não importa quão bom você seja se a oportunidade que você precisa depender de alguém racista.
O Brasil amanhecerá racista como sempre, independente de quem seja o presidente
Quanto ao mercado publicitário, ele segue considerando que certas coisas de preto não vende. Quanto mais caro o produto/serviço, menos pretos são o rosto escolhido para representar a marca.
Se eu te pedir para fechar os olhos, imaginar uma mulher de cabelo grande, usando um vestido vermelho e uma bolsa de grife, caminhando em direção a um carro de luxo num comercial desse carro, eu tenho certeza que essa mulher na sua mente não é negra e esse cabelo não é um black. Então, se esse protagonismo quiser dizer que a gente só serve para vender “certas coisas”, então a gente ainda não venceu.
BdF RS - Por fim, gostaria que tu comentasse o que tu espera do cenário da comunicação para o próximo período. Quais desafios precisam ser encarados para caminhar no sentido de uma comunicação que contribua para o combate ao racismo?
Caíque - Vou poder ligar a TV sem esperar ouvir uma declaração preconceituosa do presidente e achar normal, como parte da rotina.
Espero que este seja um período em que as nossas questões sejam ouvidas e acolhidas, ao que tudo indica serão. Estou otimista. Já os desafios que a gente enfrenta de forma geral seguem os mesmos.
Nós seguiremos lutando para que o racismo não faça parte da nossa rotina e para que a comunicação deixe de ser um espaço que por vezes se vende como agregador enquanto ainda é excludente. No mais, o Brasil amanhecerá racista como sempre, independente de quem seja o presidente.
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Edição: Katia Marko