Urge politizar a discussão sobre o aborto como um direito humano e, portanto, inegociável
A escrita deste texto vem carregada de corpo, de nossos corpos que suportaram a tortura institucionalizada e sobreviveram ao genocídio que caracterizaram o governo Bolsonaro. Se, para Lula, esta foi a eleição mais difícil de concorrer, seja pela ascensão do fascismo na sociedade brasileira nos últimos anos (não esquecendo que este é um fenômeno arquitetado mundialmente), seja pelos crimes que atravessaram todo o processo eleitoral, para nós que compomos este cenário desde o outro lado, foi da dimensão do insuportável.
Ainda estamos nos sentindo, acolhendo-nos na sensação de alívio por conseguirmos, enfim, sacar do cargo um sociopata através do poder do voto, da legitimidade institucional, algo que os poderes Legislativo e Judiciário poderiam ter feito, mas se abstiveram, contrastando com a ilegalidade do impeachment misógino que deu início a toda essa onda de ódio. Retirar Bolsonaro da presidência gerou a sensação análoga de livrar-nos do peso do corpo de um estuprador sobre nós. Sem eufemismos, o que vivemos foi o estupro coletivo da democracia brasileira desde a usurpação do cargo em que Dilma foi colocada.
Agora respiramos e festejamos, recuperando as ruas, o bem comum, a autoestima e a nossa identidade enquanto nação, soberana e promissora, mas com um largo inventário de dívidas históricas, materiais e simbólicas, tão bem representadas na cerimônia de entrega da faixa presidencial e na icônica subida da rampa do Palácio do Planalto. Todavia, não estamos todas: sempre irão faltar aquelas que morreram pela falta de acesso ao aborto seguro no Brasil.
Em nossa delicada democracia, o tema do aborto tem sido utilizado como um argumento arrebatador e desestabilizador de afetos capaz de decidir os rumos de uma eleição. Foi assim em 1989, quando Collor e a mídia oligárquica usaram da história pessoal de Lula, que supostamente teria sugerido o aborto à mãe de sua filha mais velha. Foi assim em 2016, quando Donald Trump mudou seu posicionamento referente ao tema, prometendo retirar cerca de 7 bilhões de dólares dos fundos de cooperação internacional por se destinarem a programas de saúde sexual e reprodutiva. A anulação do direito constitucional ao aborto nos Estados Unidos em 2022 é um analisador de por onde a erosão das liberdades democráticas se inicia. A ofensiva, ao final do governo Bolsonaro, para a aprovação às pressas do Estatuto do Nascituro é prova disso, e nos depararemos com sua bancada de defesa no Senado por longos 8 anos.
É impressionante como, à direita e à esquerda, o aborto é utilizado no jogo político. Via de regra, mal-usado. No último debate anterior às eleições, ao ser questionado por Lula sobre seu posicionamento, nos anos 1990, sobre a distribuição de pílulas abortivas sob argumento de que “uma multidão de subnutridos não serve ao país”, o ex-presidente respondeu, chamando-o de “abortista”. O presidente eleito posicionou-se, então, contra o aborto, “como todas as suas mulheres”, incluindo a atual esposa, Janja.
Sabendo de tudo o que está em risco ainda assim, nós, “os grelos duros”, fomos às urnas com convicção. A nossa exaustão é evidente: para além de ser uma questão de saúde pública, urge politizar a discussão sobre o aborto como um direito humano e, portanto, inegociável. Insistir em discursos que colocam a reprodução em um lugar compulsório e finalidade de todo o exercício da sexualidade é investir na propagação de um ideário conservador profundamente aliado com os valores do bolsonarismo, que muito mais nos custará combater.
Em seu esperado discurso na avenida Paulista, e mais recentemente em sua posse em Brasília, o presidente Lula declarou um “governo para todos”, com o resgate do “direito de ser alegre, o direito de estudar, o direito de comer, o direito de continuar sonhando”. Nós, “abortistas”, estamos incluídas e incluídes nesse todo? Ser alegre, estudar, comer e continuar sonhando estão, também, entre os desejos e o direito das pessoas que abortam. Não raro, é o que nos move: o desejo de viver, o desejo de dignidade.
Diversos países da América Latina têm demonstrado a compreensão da pauta para o amadurecimento e fortalecimento do próprio sistema político e consolidação da justiça social. Argentina, Colômbia e México expressam que a descriminalização do aborto e sua garantia pelo Estado são passos importantes que governos democráticos precisam dar, para que se possa avançar em outros campos. Retirar o poder de barganha dos setores conservadores - pois esse é o uso dado aos nossos direitos - é fundamental, uma vez que a democracia também é feita dos nossos corpos, tanto quanto das posições pessoais daqueles que se colocam na disputa representativa.
* Benke Yelene é ativista por direitos humanos.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko