Necessitamos medidas iguais a plantar sementes e arrancar inços que atrapalham seu desenvolvimento
No desafio de escrever algo sobre o período que se encerra e os horizontes que se desenham a partir disso, lembrei do Milton Nascimento. Ele não nos deixará esquecer, com aquela música linda que dá titulo a este texto: os medos, e como reagimos a eles, definem as trajetórias de vida. Na coerência de comportamentos em face ao que nos acolhe, espicaça e intimida, pouco a pouco se moldará, se revelará, o que conseguiremos vir a ser e que, no fim, se resumirá ao que restar de nós, na lembrança dos outros.
E fazemos por isso, de forma consciente ou não, ao longo de uma vida de investimentos emocionais desenhados através de esforços de adaptação, compromissos, sentimentos de afeto e atitudes de afirmação. Dali emergirão os cacoetes, os impulsos, as características que, em se repetindo, acabarão definindo aquelas molduras que nos aprisionam ao mesmo tempo em que nos revelam ao mundo.
Nestes processos, Bolsonaro e Lula, pivôs dos tempos que se encerram e dos horizontes que se abrem ao Brasil, se fizeram opostos. Por questões de caráter, diria minha mãe, resultaram atraídos e acabam se revelando expressões vivas de cargas emocionais opostas presentes em nossa sociedade. Na maneira como suas trajetórias de vida passaram a ser expostas, associando-os aos sentimentos, às emoções de outras pessoas e à forma como estas pretendem ou costumam reagir a seus medos tornaram-se o que hoje são.
Com a maquina da comunicação de massas operando a serviço de interesses contrários à civilidade, o racismo estruturante de nossa sociedade foi jogado sobre Lula. Um nordestino, baixinho, cabeça chata, sem diploma, que fala “menas” e gosta duma cachacinha.… um operário, semi analfabeto que encanta a quem o escuta, e que sempre preferiu discutir a puxar saco de patrões. Alguém com tantos defeitos de origem que só poderia se dar bem no sul maravilha enganando, roubando ou vendendo sua alma aos demônios comunistas, não poderia jamais subir aquela rampa. A apreciação do Papa, dos bispos da CNBB, de lideranças internacionais de todas as áreas, de indígenas, quilombolas, sem terra, sem teto e excluídos de todos os matizes, nada disso importa.
E assim, com negação de uma história de vida, o preconceito e a discriminação construídos a partir de interesses maldosos, dispensam fundamentação real e usam de todos os artifícios para criar, no “nine”, objeto da execração daqueles ignorantes que, por qualquer motivo, se percebem infelizes a ponto de aceitar o direcionamento e a metamorfose de sua frustrações em ódio a alguém que se revela mais bem sucedido do que, na opinião deles, deveria ou poderia vir a ser. Lula é ladrão, tem milhões guardados na Venezuela, foi condenado e deveria estar preso, seu filho tem uma Ferrari de ouro e é dono da Friboi. As provas? Estão no Google! “Dá um Google, tá tudo lá”.
Presos numa espécie de cercadinho digital alimentado pela Jovem Pan e outras fontes de desinformação, milhões de pessoas introjetaram e repetem a ideia de que ali estaria o demônio, o inimigo a ser combatido, impedido de dar seguimento à sua trajetória, eliminado, anulado da história.
O mesmo processo fez de seu oposto, o branco de olhos verdes, que trocou o coturno por sapatos de bico fino, um paladino. O tenente execrável, o capitão desligado do Exército por indigno da farda, passou a encarnar a coragem, a fibra e todos valores morais que nem de longe lhe caberiam. Ele teria, na mitologia que o envolve, enfrentado legiões de demônios, vencido uma guerra, uma pandemia, colocado nos trilhos um pais arrasado pela corrupção e agora, quando viria o período de colheita e das vacas gordas, estaria sendo perseguido pela ditadura do STF, em conluio com o cachaceiro ladrão.
Os mortos da covid, as mentiras, os elogios à tortura e à loucura, os sigilos de cem anos, os 51 imóveis pagos com dinheiro vivo, as substituições de delegados federais, as rachadinhas, os ministros corruptos, as mortes misteriosas de seus ex-amigos o orçamento secreto, a vontade de comer índio cozido e o clima que pintou com as menininhas, tudo seria falso ou se justificaria. Provas? “Dá um Google, tá tudo lá”.
E assim, para ficar apenas nos exemplos documentados, brasileiros se acreditando patriotas compram armas, ofendem vizinhos, empregados, desconhecidos e parentes, manifestam simpatia a terroristas que queimam ônibus, que preparam explosões em caminhão de combustível em aeroporto e sabe-se lá mais o que. Pedem golpe militar e volta da ditadura, em nome da liberdade de serem iludidos. Querem a morte de Lula e o apagamento de tudo aquilo que sua vida de superações, representa e estimula a buscar.
Ali se resume o de onde viemos. Viemos do desmonte do Estado, da queima dos biomas, do avanço da miséria, da fome, do desemprego, da impunidade nas mortes por doença e bala, do enxovalhamento de valores éticos e morais, e do enaltecimento de um mito desqualificado em todas as dimensões humanas. Chegamos à beira do fascismo, com as queimas de livros, a perseguição de crianças, idosos, quilombolas, indígenas, LGBTQI+, negros, nordestinos, pessoas sem terra, sem teto, sem escola e cientistas, bispos da CNBB, além de todos os tipos de agentes de organizações sociais comprometidas com a defesa dos direitos humanos, em qualquer das suas dimensões. Enfim, felizmente, e graças a Lula, chegamos ao fim de 2022 com o alivio de quem escapa do genocídio, e vendo o inominável choramingar, fugindo de tudo e abandonando seus seguidores à própria desgraça.
A renovação da concessão da Globo, e a guinada que isso significa em termos da coerência de suas falas e das convicções de seus seguidores, é apenas um dos indicadores de que o mito desmorona e a neblina se dissipa.
Com o líder da matilha posto a nu, todas as máscaras perdem sentido, restando os perigos associados aos compromissos e investimentos emocionais acumulados pelos seguidores frustrados. O líder, que conclamava a todos a ir para frente, morrer em guerra, é um covarde. Um cagão que não consegue manter a pose, repetir seus chavões, gritar palavrões ou mesmo formular uma frase agressiva, sem chorar. Prepara a fuga porque se conhece, sabe que soluçará em público quando chamado para depor em juízo. Sabe que não consegue ficar só e por isso não sobreviverá à prisão. Sua tortura está em ser o que é. Seu amor ao torturador era tão falso quanto a suposta confiança na qualidade daqueles seus ministros corruptos, que entram em férias, fogem, desaparecem. Enfim, no que diz respeito ao período que acaba, percebe-se que este governo entrará na história como aquele tempo em que o esgoto, transbordante de todo tipo de podridão, pariu um rato. O rato, infelizmente, espalhou sua peste e deixará rastros de miséria. E isto dá base para os horizontes que se desenham.
A desmoralização da família Bolsonaro, seus capangas e alguns de seus titereiros não resolverá o problema dos compromissos emocionais estabelecidos por seus associados, em especial daqueles “lobos solitários” mais abrutalhados e distantes das possibilidades de acolhimento humano. E são muitos os que, entre eles, se orgulham de rosnar e ameaçar morder o que lhes passa à frente. Eles se enxergam como candidatos a heróis do fascismo jabuticaba. Mesmo se percebendo sem líder, seguem endoidecidos, misturando-se a profissionais de um terrorismo militarizado, que os induz à queima de ônibus e à colocação de dinamites, botijões de gás e bombas destinadas a provocar o caos. Compraram armas e querem utilizá-las em alvos maiores do que cartazes e bonecos do Lula.
E assim, e em confronto a isso, no futuro próximo, teremos Lula, vivendo seu ultimo período de ator político.
Ele sabe de sua história e do que significa dar impulso à um conceito de validade universal. Ele está no patamar de alguns poucos homens que, no decorrer da história, encarnaram, deram corpo à possibilidade de evolução humana, para milhões. Colocar os pobres no orçamento e os ricos no imposto de renda significa dar continuidade a uma trajetória que busca mudar o mundo. Uma ideia de progresso humano, que saiu do Nordeste com fome, em pau de arara, foi operário, foi liderança, foi injustiçado, foi traído, foi preso, foi tentado por todo tipo de sedução e resistiu a elas. Ficou firme. Foi coerente, foi apoiado em vigílias permanentes, foi resgatado, foi inocentado. Convocou ampla união contra o fascismo, contra a corrupção do Estado, contra o mito e as religiões de Mamon. E venceu com o apoio de um povo que quer dele, mais do que respeito. Quer a construção de um exemplo a ser estendido como modelo de vida capaz de dar bases para um projeto de nação.
Com isso será possível? Terão que ser enfrentadas redes, conexões, núcleos de um fascismo endinheirado e infiltrado em todas as instituições. Como negar a possibilidade de ligações entre os aboletados nas portas dos quartéis e seus parentes ou simpatizantes, lá dentro? Como julgar e criminalizar a alguns sem reprimir aos outros?
Como recuperar a credibilidade e as funções do Estado e das instituições civis e militares, colocando-as a serviço do bem estar da maioria, sem retirar de suas entranhas os que lá promovem o câncer?
Como desmontar armadilhas e realizar reformas estruturais num pais dominado por interesses de transnacionais, onde o legislativo lhes serve e abriga o que há de pior? Senadores e deputados bolsonaristas deverão ser cooptados ou poderão ser enquadrados pela vontade popular expressa nas ruas?
Aparentemente, de inicio não devem ser esperadas grandes mudanças, em termos de avanços em relação ao que havia no governo Dilma, para o novo governo Lula. Coloca-se, antes, a necessidade imperiosa de retornar, de Bolsonaro à Dilma, passando por um período a la Temer. Por isso, este deverá ser um governo de transição, focado numa luta, que será penosa, pela democratização do acesso a condições básicas de vida. Condições que exigirão paciência e, necessariamente, enfrentamentos pela desconcentração de rendas e acesso a meios de produção e comunicação hoje controlados pelas unhas e dentes do mercado. A retomada da credibilidade do Estado e das instituições republicanas, que também se faz urgente, exigirá o desmascaramento de criminosos ali instalados e o desbaratamento de suas redes. Para isso, a Justiça deve ser chamada a assegurar a desmoralização, a execração pública e prisões de associados a ilustres parlamentares quando não a muitos dos que entre eles se escondem.
E aqui transbordam meus desejos, que seguramente contaminam uma apreciação independente do que esperar. Desejos e expectativas que confesso estimuladas pela relação dos ministros anunciados e dos compromissos ali sinalizados.
As mudanças mais expressivas, que o Brasil espera, serão lentas porque exigirão enfrentamentos em espaços legislativos de onde Lula deve esperar mais antagonismo que solidariedade. Me refiro a gabinetes capturados por interesses internacionais, ali representados, entre outros, por empresários da grana, da bala, do boi, do veneno e da bíblia.
Felizmente as urgências maiores, de enfrentamento da fome, da geração de ocupações produtivas e de proteção ambiental, podem ser iniciadas de pronto. Com pouco, e a curto prazo, será possível saltar adiante aproveitando o enorme potencial nacional de atender suas necessidades relacionadas à segurança energética, ambiental e alimentar. Nestes segmentos não haverão colapsos e mais, no caso do combate à fome e da recuperação de áreas degradadas, será possível mobilizar vastas redes de ajuda mútua, em escalas local, nacional e internacional.
Quanto aos horizontes, portanto, serão necessárias medidas que se equivalem a plantar sementes e arrancar inços que atrapalham seu desenvolvimento. Como? Com a mobilização e o sacrifício dos ministros já anunciados, que, sendo quem são, estimulam confiabilidade e atrairão apoio para ações decisivas em áreas chave. Quadros de respeito, que têm suas histórias a zelar e que sabem da importância dos papéis que estão sendo chamados a cumprir, talvez se vejam obrigados a seguir o conselho de Maquiavel e botar pra quebrar, fazendo todas as reformas e ajustes que chamarão reações indignadas dos que têm gordura acumulada, a dividir, já nos primeiros meses dos primeiros anos deste governo. Será difícil, mas necessário para o estabelecimento de novas bases que levem à avanços no processo de recuperação nacional.
Talvez precisemos de duas décadas para recuperar os estragos ocorridos desde o golpe de 2016. Período largo que envolverá transições graduais e negociações delicadas, com visão de longo prazo extensiva para além da sucessão de Lula e de quem vier depois.
Se trata de um projeto de nação que pretendemos se faça livre do fascismo e estimule seu oposto, mantendo/estimulando compromissos/investimentos emocionais capazes de estender no tempo a ideia viva que Lula encarna.
Como cantou Milton Nascimento, assim como nós Lula também tem, ou pode ter medo. Mas isso não importa, não faz mal. A gente ainda pensa e isso é melhor do que nada. Disso depende tudo que conseguiremos vir a ser, na estrada.
Concluo, repassando a mais tocante mensagem de Natal que me chegou este ano, e que tem tudo a ver com o sonho e a ideia, antítese de Bolsonaro, que Lula carrega e que deve nos levar às ruas em defesa de tudo que podemos vir a ser.
Abaixo, a música Todo o que você podia ser, de Milton Nascimento:
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira