Nesta sociedade hétero patriarcal monogâmica, precisamos todos os dias sair dos armários
Dias atrás aconteceu em Porto Alegre uma oficina de Afetos não monogâmicos. Quando Lara me mandou o convite, eu disse sim, na hora.
Durante muitos anos a RMO - Ruptura da Monogamia Obrigatória – assim eu a chamei – ocupou um grande espaço na minha vida. Mas de uns anos para cá tenho abandonado o debate, então, mais de uma vez me descubro fazendo comentários normativos, tendo impressões que não desejo ter, seja a respeito de outras pessoas, seja a respeito de mim mesma. Nesta sociedade hétero patriarcal monogâmica, precisamos todos os dias sair dos armários.
Sempre pensei que a revolução tem que ser permanente, mais ainda, sabendo que o sistema o tempo todo está querendo nos cooptar, nos (re)educar. Acredito que estar em debate constante é afastar os tentáculos do polvo.
Por isso, quando Lara me passou o card da oficina, eu disse sim, na hora.
Durante 20 anos – com algumas interrupções − fui ativista lésbica-feminista. Em 2004 viajei ao México para participar de uns encontros e ficar trabalhando na organização do ELFLAC – Encontro lésbico feminista de América Latina e o Caribe, mais tarde chamado de Abya Yala (nome dado ao continente pelos povos originários). Nessa viagem conheci muitas companheiras e passei a integrar a corrente do Feminismo Autônomo latino-americano e caribenho. Assim foi como me integrei à ala mais radical do feminismo latino-americano. Radical no sentido etimológico, nós queríamos chegar à raiz do sistema para poder mudá-lo.
E não por acaso, junto a Ochy Curiel (companheira da corrente) decidimos propor uma oficina/espaço de debate sobre o que chamamos de “Parejas abiertas”, ou “Casais abertos”. Na época nos faltavam palavras e disso se tratava, de tentar entender, encontrarmos juntas um caminho desde o feminismo. Em alguma caixa tenho ainda guardados os papéis com as propostas. Alguns pontos que iríamos tratar seriam: as relações de poder entre relações inter-raciais, diferenças entre classes sociais, migrante e não migrante, diferenças de idade, corpas normativas e não, etc.
A partir daí, e por muitos anos, a cada encontro que fui, propus espaços de conversa para abrirmos o tema e não deixar que a moral e os mal chamados bons costumes nos atravessem.
Foi assim como, em 2008, fizemos um chamado para as lésbicas de toda América Latina e o Caribe, convidando a escrever e debater sobre o tema. O chamado foi feito por quatro amigas e companheiras de ativismo: Norma Mogrovejo, Yuderkys Espinosa, Gabriela Robledo e eu, mariam pessah. Assim foi como, em 2009, saiu “DESOBEDIENTES, Experiencias y reflexiones sobre poliamor, relaciones abiertas y sexo casual entre lesbianas latinoamericanas”. Se esgotou em pouco tempo. Isso provava como era necessário falar e trazer referências, mais do que modelos. Foi um livro tão polêmico quanto o tema. Em 2015, Norma faria outra convocatória, resultando em “Contra-amor, poliamor, relaciones abiertas y sexo casual. Reflexiones de lesbianas del Abya Yala”, 2016. A cada momento, novos termos vão aparecendo e nomeando nossas vivências.
Como é possível ver até aqui, nós trabalhamos o tema só entre lésbicas. Deixamos explícita essa postura, pois para os homens Cis estar com mais de uma pessoa não tem novidade nenhuma, foi o que aconteceu historicamente no patriarcado. Também, politicamente, situamos já desde o título, o sexo casual, com o intuito de mostrar mulheres, lésbicas e dissidências falando em prazer. Porque nós somos educadas para fazer amor, para amar, para construir um lar, para segurar com as nossas corpas e vidas um sistema hétero-patriarcal-capitalista-monogâmico que nos oprime, por isso falar em laços não monogâmicos, e mencionar o prazer, implica romper com as obrigatoriedades desse sistema violento.
Quando se pensa em laços, ou relações não monogâmicas, muitas pessoas imaginam que a gente passa o dia trepando, em surubas, ou que temos muitas namoradas. Tudo pode ser, porque neste outro sistema, somos nós que fazemos e desfazemos e refazemos as regras. Imagino sempre a anarquia amorosa, como comecei a chamar mais adiante, como uma dança. A gente vai se movendo em consonância com as outras pessoas porque somos seres relacionais.
Também está a possibilidade de se questionar que tipo de relação ter e optar por estar, mesmo que durante um período X, com uma pessoa só, o que se chama de relação exclusiva. Lembrando que estar em várias relações demanda tempo e energia.
Uma das coisas que eu gosto, e por isso me refiro à qualidade do vínculo, é acabar com os fantasmas de que outra pessoa possa existir. Nisso o sistema é muito patriarcal, nos fazendo odiar às outras mulheres, tratando-as de concorrentes. O que aconteceria se estamos nos relacionando com uma pessoa e conhecemos outra/s? E se é ela quem conhece outra/s? E se estamos em vínculos rizomáticos? Acho muito sincero começar falando que isso pode acontecer, em lugar de negá-lo e continuar o jogo imposto pelo sistema.
Uma das melhores formas de desacomodar a imposição social é conversando, estando em comunicação permanente. Repartindo novamente os baralhos e recriando o jogo constantemente. Estando em rede. Gerando laços feministas.
* mariam pessah é ARTivista feminista, escritora e poeta, autora de “Em breve tudo se desacomodará”, 2022. Organizadora do Sarau das minas/Porto Alegre.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira