Votaram contra o Brasil chamando o Pacote do Veneno de “projeto de lei do alimento mais seguro”
As festas de fim de ano envolvem alimentação em grupo e apontam renovação de energias e entusiasmo em relação ao futuro. E isso é bom. E muito oportuno. Afinal, com o fim daquele governo criminoso e irresponsável, que trabalhou pela expansão da ignorância, negando a ciência e o bom senso, acelerando o envenenamento dos corpos, dos espíritos, das águas e dos alimentos, precisamos e podemos ser otimistas. Pelo menos um pouco. Afinal, e com toda certeza, o que há para reconstruir não se fará com facilidade. E este ano, no Natal de milhões, um frango será uma vitória. Aliás, isso as propagandas de “comida para a ceia de 2022” não nos permitirão esquecer.
Mas depois das festas voltaremos à uma realidade onde estarão repercutindo os elementos de terror que caracterizaram o desmonte e a desmoralização bolsonariana das instituições públicas e da confiança da população, no Estado Brasileiro.
Dentre os muitos elementos neste sentido, vale lembrar da granada que o ex-ministro da Economia colocou no nosso bolso, do desvario da boiada tocada a berrante pelo ex-ministro do Meio Ambiente, enquanto o presidente debochava, milhares de brasileiros morriam, e milhões temiam morrer, de bala, fome ou covid.
Enfim, chegamos ao fim daquela festa macabra, e isso é ótimo.
Mas ainda temos que muito a sofrer com as repercussões da gula e do desvario daquele bando que não para de chupar o sangue e o miolo dos ossos da nação. Não me refiro aos malucos acampados na frente dos quartéis, ou aos criminosos que tocam fogo em ônibus, bloqueiam estradas e ameaçam morder quem lhes passar por perto. Me refiro aos ratos gordos. Aqueles silenciosos em suas tramoias, que já saíram do barco furado, mas ao mesmo tempo em que estão se achegando, continuam alterando normas legais, criando armadilhas, atiçando bobos a praticar crimes e se beneficiam de nomeações para cargos com mandados definidos, ocupando funções estratégicas das quais não poderão ser retirados pelo governo que assume na próxima semana.
Me refiro, também e especialmente, a alterações de última hora, no contrato social. Mudanças normativas que protegerão, contra nós, interesses que financiaram o golpe de 2016 e o ascenso do fascismo, pelo menos desde então e sabe-se lá até quando. Como exemplo, vejam a aprovação do Pacote do Veneno (Projeto de Lei 1459/2022) e suas implicações para a vida de todos os brasileiros.
O fato merece destaque não apenas porque seus efeitos se estenderão no tempo e reduzirão a qualidade do alimento escasso das mesas da maioria. Ele também facilitará a ocupação com soja transgênica de territórios que deveriam produzir arroz e feijão, dificultando a produção de alimentos limpos e o combate à fome. Mas, e isso é o mais grave: a aprovação do Pacote do Veneno anula a PNARA (PL6670/2016) e afasta do horizonte próximo um mecanismo em consenso entre todas as organizações verdadeiramente preocupadas com a soberania e segurança alimentar deste pais.
Em síntese, é possível afirmar que a aprovação do Pacote do Veneno evidenciou uma vez mais a ignorância, o negacionismo científico, a irresponsabilidade e a captura de representantes do povo, na Câmara e no Senado desta República, por interesses de corporações que nos desprezam. Se trata de decisão que garantirá a continuidade de um sistema de exploração reservado a territórios colonizados, onde aos vassalos não são concedidos sequer os direitos humanos. Somos, para eles, menos do que animais de abate, aqueles que valem porque podem ser exportados gerando divisas para este país de joelhos, onde o agro é tudo.
Lembro aqui de Sobral Pinto, advogado católico e anticomunista que usou a lei de proteção aos animais para defender os comunistas Luiz Carlos Prestes e Harry Berger, do tratamento abjeto a que estavam sendo submetidos pelo Estado. Nos faltou, para o caso do Projeto de Lei 1459/2022, na família daqueles parlamentares, consciência assemelhada à de Sobral Pinto, para enfrentamento daqueles que nos impõem a tragédia desumana, que se revelará na dor de famílias que serão levadas à vivenciar pais, filhos e netos mortos, natimortos e/ou condenados à anormalidades provocadas pelos venenos que, com aquela decisão, serão jogados sobre todos nós.
Venenos, dos quais no futuro ninguém estará livre. Nem eles. E as implicações devem ser atribuídas à ignorância, maldade e irresponsabilidade que se instalaram entre nós e foram acolhidas por aqueles negacionistas que, com seus votos, demonstraram não entender sequer a lei da gravidade.
É simples assim: com o desmonte das cautelas e com a facilitação de uso, recairão sobre nós venenos agrícolas que, por determinarem aquelas anomalias, não têm – e aqui as razões são científicas, éticas e morais – seu uso permitido nos locais onde são fabricados. Com isso, se tornam baratos e atraem os trouxas. Como boa parte dos metabólitos relacionados àqueles agrotóxicos têm longa vida, e dado que tudo neste planeta responde à lei da gravidade, inevitavelmente os resíduos tóxicos serão encaminhados para as aguadas superficiais e aquíferos subterrâneos. Isso garantirá o envenenamento dos aquíferos Guarani e Alter do Chão – os maiores do mundo –, Cabeças, Urucuia-Areado e Furnas, comprometendo o futuro de todos.
Por esta razão, é possível afirmar que naquela decisão legislativa açodada, havida quando (possivelmente) se encerrava mais um ciclo golpista, parlamentares brasileiros asseguraram, para ampliação dos lucros de transnacionais do agronegócio, e por um universo sem fim de doenças relacionadas aos agrotóxicos, disfunções e mortes entre nós.
Neste passo aquela bancada demonstrou a um só tempo sua ligação com interesses externos e seu desprezo para a democracia e o caráter de representatividade parlamentar com que estariam comprometidos. Vale registrar seu descaso para com estudos científicos comprobatórios de associação direta entre os venenos agrícolas e a fragilizações dos sistemas imunológicos; evidências de alterações metabólicas geradoras de processos cancerígenos, danos aos sistema endócrinos e distorções em funções reprodutivas ou mesmo, à indução de malformações fetais e casos de suicídio.
Eles sabem que o desconhecimento embrutece, provoca apatia, facilita o controle das massas. E por isso, querem menos, e não mais estudos. Se orgulham da desfaçatez com que se autoelogiam e por isso merecem ser lembrados. Afinal, suas famílias também resultarão afetadas pelos venenos presentes na água. E saberão que foram eles que, para negar a realidade, votaram contra o Brasil chamando o Pacote do Veneno de “projeto de lei do alimento mais seguro”.
Infelizmente, seus argumentos, que não valem repetição, são risíveis e não se sustentam em qualquer debate minimamente sério. Resumem-se à reprodução de mantras que exalam a dólares e à negação de casos concretos evidenciados em registros que, não sobrepassando a 2% dos casos reais, apontam 14 mil pessoas intoxicadas por agrotóxicos (entre janeiro de 2019 e março de 2022) apenas no governo Bolsonaro. A estes casos, que se deram antes da aprovação do PL 1459/2022, e portanto tendem a ser potencializados com as novas bases legais, somam-se medidas destinadas a esconder o envenenamento direto de crianças, pulverizadas com agrotóxicos jogados de avião, no entorno de suas escolas rurais.
Isto não é pouco e exige ampliação de nossos esforços para que não se repita de forma invisível ou impune. Firmamos esta convicção no III Seminário Internacional “Fortalecimento da agroecologia, consequências dos agrotóxicos à saúde humana e à natureza e uma abordagem de vigilância em saúde”, ocorrido no Paraná, no início de novembro. Ali concluiu-se, entre outros pontos relevantes, pela necessidade de enfrentamento conjunto e integrado ao processo de contaminação das sociedades do terceiro mundo por interesses do agronegócio.
Se tratou de visão coerente com o último informe do Grupo ETC. Neste, análise dos setores industriais agroalimentares globais revelou que sua concentração (de poderes) impõem, como alternativa única à submissão, adoção de mecanismos inovadores para seu estudo e enfrentamento. Basicamente (Para detalhes ver aqui), os lucros do setor se ampliaram com a crise, avançando sobre processos de financeirização e digitalização, integrando fases (operações, maquinarias, insumos, sementes, processamentos, distribuição..) e superando a capacidade dos Estados que, ofuscados pela contaminação de seus mecanismos de suporte à decisão (universidades, espaços de representações políticas, e novos sistemas de comunicação e manipulação de conteúdos), a rigor não mais percebem a (ou querem crer na) dimensão dos movimentos que estão subordinadamente envolvidos.
Ou seja, em seu estágio atual o agronegócio internacionalizado além de dominar os mercados em si acabou invadindo áreas de pesquisa, ensino, comunicação e elaboração de conceitos, normas, legislações e políticas públicas. Ocupou, em outras palavras, áreas até então sob controle dos Estados Nação, passando a estabelecer diretrizes e conceitos que estão levando à homogeneização e padronização das sociedades, definindo hábitos e padrões de produção, consumo, comunicação, e, em termos mais gerais, formas e desejos de vida.
Estudo de Delgado e Leite mostra que no Brasil este processo se consolida em fase em que, com a financeirização e primarização de nossa economia, amplo pacto nacional em defesa do agronegócio exportador de comodities alcança o imaginário coletivo e se justifica através da mitificação de conceitos tipo o Agro é Tudo e onde, no interesse de todos, o Estado e a nação passam a se subordinar às suas exigências (O agro é tudo? Pacto do agronegócio e reprimarização da economia. Delgado e Leite, 2022).
Esta poderia ser uma das razões explicativas dos tristes fatos acima referidos para o Brasil ocorrerem não apenas aqui, mas também, e de forma assemelhada, em outros países da América Latina, que neste aspecto se colocaria como um território comum a ser explorado por aquelas corporações, com o auxílio de elites locais a elas subservientes. A pátria sojeira.
Com esta perspectiva, este último texto de 2022, mais do que oferecer estímulos para boas festas e um auspicioso 2023, ou ainda, mais do que tecer críticas ao período que entre nós parece se encerrar em 2022, pretende lembrar que, na dor e na miséria, não estamos isolados.
As tragédias que se passam na América Latina, tratada a um só tempo como colônia a ser explorada e lixeira universal, respondem a um mesmo fio condutor. Se somos, de fato, uma pátria sojeira campeã mundial de futebol nos pés argentinos, devemos nos preparar como bloco, para enfrentar os colonizadores que nos sangram.
A turma bolsonarista sai de cena, mas outros oportunistas virão. E precisamos entender o que vem fazendo com que eles emerjam e cresçam entre nós. O que está de fato acontecendo e o que podemos fazer de melhor, para seu enfrentamento, aproveitando o bom momento que se desenha com a posse de Lula.
Em janeiro de 2023 durante o Fórum Social Mundial (23 e 24) daremos mais um passo neste sentido, sob convite e articulação de algumas organizações do Sul do Brasil e da Argentina. Antecipamos aqui primeiro informe a possíveis interessados em participar de atividade autogestionada onde estes temas serão debatidos. O local e horário serão informados no site do FSM e nesta coluna, uma semana após a festa da posse do presidente Lula.
Observação: Nesta semana, o Pacote do Veneno foi aprovado na Comissão de Agricultura do Senado. Está aguardando posição do Plenário onde a aprovação tem maioria assegurada.
Cancion por la unidad latinoamericana - Pablo Milanés.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko