Quase dois meses depois da vitória nas urnas de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Porto Alegre ainda convive com dezenas de eleitores do candidato derrotado clamando por um golpe de Estado diante do quartel do Exército no centro da Capital. Inconformados com o resultado democrático da eleição, com frequência eles bloqueiam o trânsito de automóveis numa quadra da rua Sete de Setembro e impedem o fluxo de ciclistas na ciclovia, enquanto fazem churrasco, colocam música alta, rezam e cantam hinos.
No dia 11 de novembro, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, determinou a desobstrução imediata das vias públicas bloqueadas por atos golpistas em todo o País. Como o ato permanece na Capital desde então, as cenas de ilegalidade transcorrem aos olhos das autoridades dos governos municipal e estadual, que pouco ou nada fazem para resolver a situação. A ordem do prefeito Sebastião Melo (MDB) para os agentes da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) tem sido de apenas “monitorar” o ato antidemocrático. Não muito diferente é a postura do governador Ranolfo Vieira Júnior (PSDB), que desde o início insiste na política do “diálogo” para tentar desfazer o impasse – com resultados pouco efetivos até aqui.
Em que pese a benevolência das autoridades com quem comete crime vestido de verde e amarelo – o governo Melo chegou a alterar a rota dos ônibus C1 e C2 com a justificativa de “melhor fluidez dos veículos e maior segurança viária” – a situação tem perturbado a rotina de moradores e trabalhadores do centro.
Socióloga e servidora pública, Maíra de Faria Neves trabalha num prédio próximo ao quartel do Exército e conta já ter sido importunada diversas vezes em suas atividades devido aos barulhos do ato. São cantorias de hinos, palavras de ordem e uso de equipamentos de som. O transporte na região também está prejudicado.
“A presença contínua e numerosa dessas pessoas está causando transtornos para quem precisa se deslocar ao centro para trabalhar. Por causa da obstrução do trânsito e concentração de pessoas no local, houve alteração de rota de transporte público, os motoristas de aplicativos muitas vezes se negam a pegar ou deixar passageiros por ali e tem sido difícil conseguir vagas para estacionamento na área azul”, diz Maíra, destacando também o clima de tensão e animosidade na região, especialmente durante a Bienal do Mercosul e a Feira do Livro de Porto Alegre.
Morador da rua dos Andradas, na mesma quadra do quartel do Exército, o escritor e documentarista Antonio Padeiro recorda ter acordado com o hino nacional “a todo volume” no dia 2 de novembro. “Eram 7 da manhã quando desci pra passear com meu cachorro e a Andradas estava fechada. Eram milhares de pessoas de verde e amarelo cantando o hino e gritando palavras de ordem.”
Foi o começo do que ele define como “um verdadeiro inferno” no centro de Porto Alegre. Padeira conta que os eleitores de Jair Bolsonaro (PL) queriam briga e encaravam as pessoas julgando quem era ou não ‘comunista’. Ele afirma ter havido atos de violência e agressões contra qualquer pessoa que estivesse usando vermelho ou ousasse criticar o ato.
“E assim foram passando os dias. Acordar diariamente com músicas militares e palavras de ordem foi me deixando doente, mas não só pelas músicas, muito pela sensação de impotência. Trabalho em casa e meu rendimento caiu muito, não conseguia me concentrar pra trabalhar. Fora isso, ainda precisava viver sempre preocupado. Tu fica tenso, não sabe se vai ser agredido ou não, se vai ser reconhecido ou não”, destaca.
Durante o período, o escritor se contaminou com a covid-19 e ficou sete dias em casa ouvindo as músicas militares e os ‘gritos de guerra’ vindos da frente do quartel. “Às vezes lembrava tortura chinesa, como se eu estivesse amarrado numa cadeira com um pingo d’água na testa.”
Servidora pública e moradora do bairro Cidade Baixa, Lisane Berlato trabalha no centro e avalia a região como um lugar historicamente democrático e de todos. Desde que os atos golpistas começaram, ela diz sentir-se ameaçada.
“Trabalho no centro, vivo sociabilidades e frequento espaços de comércio e culturais cotidianamente, já que moro no bairro contíguo. Tenho me sentido ameaçada, constrangida, com enormes dificuldades de locomoção, especialmente quando saio do trabalho de bicicleta para fazer compras no Mercado Público e aquele é o meu caminho. Os ocupantes não estão respeitando calçadas, vias de transporte automotivo e sequer ciclovias. E são agressivos com as pessoas, fui ofendida, ameaçada”, relata Lisane.
Certo dia, incomodada com a situação, ela chegou a interpelar uma viatura policial que passava no local após ter sido ofendida e ameaçada, mas os policiais nada fizeram e apenas a orientaram a procurar a delegacia. “Me parece que a ‘ordem’ da permissividade às ocupações é hierarquicamente superior”, lamenta.
O Boletim de Ocorrência (BO) denunciando difamação e constrangimento foi registrado no dia 12 de novembro, na 1ª Delegacia de Polícia, localizada na Rua Riachuelo. Na ocasião, o policial que lhe atendeu contou ter registrado muitos BOs semelhantes durante o final de semana da Feira do Livro.
Olhos de não ver
– Boa tarde. Só para avisar vocês que a ciclovia da Sete de Setembro está bloqueada por um grupo de pessoas. Não dá pra passar ali –, diz o ciclista para dois agentes da EPTC estacionados ao lado do acampamento golpista, após tentar passar, sem sucesso, por uma ciclovia bloqueada.
Um agente lhe olhou sério e nada disse. O outro, depois de alguns segundos, abre um sorriso malicioso e pergunta:
– Ah, tu tá falando dos manifestantes?
– Olha, não sei o que eles são e nem me interessa, mas são pessoas obstruindo a passagem da ciclovia.
O agente que nada havia dito, agora se manifesta.
– Nós vamos comunicar isso pra nossa chefia.
– Vocês precisam perguntar pro chefe o que fazer, mesmo diante de uma infração tão clara quanto uma obstrução de via pública? –, retruca o ciclista.
– Nós temos ordens de monitorar a situação.
– Ou seja, as ordens são pra não fazerem nada!
O agente da EPTC engrossa a voz, se desencosta do carro e rebate a acusação.
– Não foi isso que eu falei!
– Foi isso que tu disse, que têm ordens pra não fazer nada.
– Não foi o que eu falei! São ordens pra monitorar a situação!
– Sim, e não estão fazendo nada –, insiste o ciclista.
– Essa interpretação fica por tua conta –, encerra o agente da EPTC.
O diálogo acima foi reproduzido pelo tradutor Diego Lopes, indignado com o modo como o ato golpistas tem afetado seu direito de livre circulação nas vias do bairro onde mora. Acostumado a andar pela região de bicicleta, diz estar evitando, cada vez mais, passar pelos quartéis. A razão é a interrupção da ciclovia da rua Sete de Setembro durante o dia e a noite e, dependendo, também o meio da rua.
“Alguns ônibus tiveram seu trajeto alterado por conta dos bloqueios. Nas quadras adjacentes aos quartéis, há dezenas de cartazes e objetos pendurados em mobiliário urbano, como postes e placas de sinalização, o que é proibido por lei. Também há buzinas, gritos e música alta o dia todo, uma verdadeira perturbação para quem mora ou trabalha na região”, critica Lopes.
“Outro dia passei por ali de bicicleta, pelo meio da rua, pois interditaram a ciclovia, e estavam tocando hinos militares, entoando algum repetitivo cântico golpista. Impaciente com aquela cena, respondi com a frase-meme ‘Perdeu, mané. Não amola’. Fui xingado, claro, faz parte da democracia, mas um homem veio furioso pela minha frente e tentou chutar minha bicicleta para me derrubar. Desviei bruscamente e quase caí. Tudo isso aos olhos de dois brigadianos que assistiam a tudo literalmente de braços cruzados. Não quero nem imaginar o que teria acontecido se não tivesse conseguido sair dali às pressas, pois a BM não teria interferido.”
O tradutor diz ser irônico os eleitores de Bolsonaro declararem defender a “liberdade de expressão” e o “sagrado direito de ir e vir”, mas não aceitarem manifestação contrária e impedirem a livre circulação.
“São pessoas que desprezam totalmente o direito dos outros, se acham acima do bem e do mal, não estão nem aí para leis ou regras de convivência social. Representam uma ruptura do pacto social, agem pela força e pela violência, algo típico de movimentos autoritários de massa, como o fascismo. Não há inocentes nem ingênuos participando dos acampamentos. São fanáticos e sabemos que pessoas fanatizadas são perigosas, são capazes de tudo, como ficou demonstrado nas violentíssimas manifestações golpistas em Brasília no dia 12 de dezembro. Acima de tudo, é muito triste saber que tantos porto-alegrenses querem a volta da ditadura”, lamenta.
A (in)ação das autoridades
O comportamento das autoridades da Capital e das forças de segurança sob responsabilidade do governo estadual é um elemento que chama a atenção das pessoas ouvidas pela reportagem do Sul21.
Maíra Neves avalia como constrangedora a atitude das autoridades, sobretudo em razão da inação e seletividade para a não intervenção do ato golpista. “Percebo uma atuação completamente diferente dos órgãos e entidades de segurança e de regulação do trânsito nesse caso, se comparado a atos de natureza progressista ou com reivindicações legítimas e constitucionais que tenham ocorrido anteriormente na cidade, em anos recentes. Fica evidente a conivência de ambas esferas governamentais diante de uma situação que, no mínimo, está gerando transtornos na área central da cidade”, analisa.
O escritor e documentarista Antonio Padeiro considera haver descaso e leniência por parte do poder público. Para ele, o governador e o prefeito tratam os eleitores golpistas de Bolsonaro como se fossem “colegas de colégio”.
“São considerados manifestantes, quando na verdade são desordeiros, terroristas e mimados. Estão infringindo leis federais e nada acontece, mas não representam o povo como ficam gritando. O povo trabalha todo dia e não tem tempo de ficar pedindo intervenção alienígena como se estivessem numa colônia de férias. São burgueses, empresários e aposentados que brincam com a democracia. Muitos falam que eles pagam pessoas pra ficarem ali durante a madrugada regados a churrascos e beberagem. Por muito menos já vi a Brigada Militar bater e prender servidores públicos e estudantes. Essas pessoas atacam quem estiver usando roupa vermelha, quem passar com a cara fechada pela rua. Um amigo gay teve suas roupas rasgadas só por passar na frente do acampamento”, afirma.
Padeiro não registrou boletim de ocorrência na delegacia, mas conta ter ligado diversas vezes para a Brigada Militar. O atendimento, ele diz, sempre foi o mesmo.
“Teve um dia que o atendente me disse que eles estavam se manifestando democraticamente e que não poderiam fazer nada até vir uma ordem superior, o que até agora não aconteceu. O bolsonarismo é cria do fascismo e precisa ser combatido, inclusive dentro das instituições onde há conivência de pessoas com poder. Não está sendo fácil para os moradores. Perdemos nosso direito de ir e vir livremente, nos sentimos vigiados por essa gente mimada que não consegue entender que perderam a eleição.”
A servidora pública Lisane Berlato tem visão semelhante. Na sua opinião, há uma clara omissão do poder público e um tratamento desigual em relação a outras manifestações ocorridas na cidade. Como exemplo, ela cita os atos de 2013, de professores e marchas de estudantes, onde houve intervenção imediata e desobstrução de ruas com bombas de gás lacrimogênio.
“No centro, os ocupantes estão em área de segurança nacional, já que há armas no quartel e há risco à população. Bradam crimes antidemocráticos, pedem intervenção militar, interrompem o direito de ir e vir das pessoas, incitam riscos reais de violência, cometem ofensas aos passantes e a negligência das autoridades é assustadora, sob o pretexto de ‘atos pacíficos’. É um desrespeito à população, ao processo eleitoral e ao exercício da cidadania”, afirma.
Depois do diálogo travado com agentes da EPTC que nada fizeram para liberar a ciclovia, o tradutor Diego Lopes conta não esperar mais nada de uma cidade cujo poder constituído se nega a cumprir sua função. “A postura omissa e conivente das autoridades é lamentável. Pode-se dizer que a prefeitura está em verdadeiro conluio com as ações dos golpistas. A omissão por parte de funcionário público que deveria fiscalizar e coibir crimes e infrações é crime de prevaricação. Diante do que já se viu até aqui, não tenho dúvidas em afirmar que o prefeito Melo e o diretor da EPTC são prevaricadores. Infelizmente, colocaram sua ideologia acima da responsabilidade do seu cargo. A Brigada Militar também prestou um papel que só lhe trouxe desprestígio público ao ‘negociar’ a saída dos acampados quase que pedindo desculpas pela situação”, avalia.
Diálogo
No dia 8 de novembro, a prefeitura e a EPTC responderam a uma cobrança do Ministério Público (MP/RS) e do Ministério Público Federal (MPF) sobre o que estariam fazendo em relação ao ato no centro. Na ocasião, o ofício da Prefeitura destacou que a EPTC mantinha a posição de que não pode aplicar punições previstas no Código de Trânsito Brasileiro porque os bloqueios não estavam sendo feitos com a utilização de veículos e que, excetuando as “datas pontuais” de 5 e 6 de novembro, os bloqueios “não afetavam a mobilidade, circulação ou acesso aos prédios públicos e privados da região”.
Procurada pela reportagem para explicar o que está sendo feito para impedir o bloqueio da ciclovia e da rua Sete de Setembro – anunciado em rede social pela própria EPTC nesta segunda-feira (19) –, o órgão não se manifestou até o momento.
Por sua vez, o MP/RS e o MPF, ao contrário da cobrança feita no começo de novembro, nas últimas semanas adotam tom cauteloso. Em reportagem do Sul21 publicada dia 25 de novembro, o MP/RS informou acompanhar a situação, conforme a estratégia definida pelo governo estadual. Procurado novamente quase um mês depois, a posição segue a mesma. O MP/RS considera que o caso está sendo bem conduzido pelos órgãos de segurança
A postura do MPF é semelhante. No final de novembro, órgão declarou que seguia “apurando e analisando o caso”. A mesma resposta foi dada agora.
Já o governo estadual diz que a decisão sobre a retirada das pessoas ao redor do Comando Militar do Sul, não é isolada. O governador montou um gabinete de crise composto por representantes da Secretaria de Segurança Pública, Brigada Militar, Polícia Civil, Corpo de Bombeiros Militar, Prefeitura de Porto Alegre (incluindo Guarda Municipal e EPTC), Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, MP/RS, MPF e Ministério Público de Contas.
A última reunião tornada pública pelo gabinete de crise, todavia, foi realizada dia 16 de novembro. No encontro, há mais de um mês, ficou acertada a “ampliação do diálogo com os manifestantes para buscar a desobstrução da via”. Dias antes foram retirados banheiros químicos e um carro de som, além da liberação de um lado da avenida Padre Tomé.
Questionada se os fatos violentos acontecidos em Brasília na data da diplomação do presidente eleito Lula poderiam mudar a estratégia de diálogo com os golpistas, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) informou que os setores de inteligência estão monitorando qualquer movimento atípico.
“Caso seja identificada alguma ação suspeita, as forças de segurança agirão dentro da lei, preservando a manutenção da ordem, a integridade das pessoas e a preservação do patrimônio público”, diz a nota da SSP, aparentemente sem considerar os transtornos que o ato provoca nos moradores e trabalhadores do centro da Capital há quase dois meses.
Edição: Sul 21