Quando é que vamos começar a falar sem parar sobre as mulheres que cuidam do mundo?
Há poucas semanas, fui com a Kellen Pasqualeto, minha colega de equipe clínica, a uma formatura do curso de Educação Ambiental, do Instituto Federal-RS. Kellen é também uma das responsáveis pela Apoena Socioambiental, empresa idealizada e dirigida por mulheres, e que promoveu o curso, em parceria com o Instituto Federal-RS, campus Porto Alegre.
A turma de formandas era composta por mulheres catadoras de lixo reciclável, e que fazem parte de diferentes cooperativas. No CEA - Centro de Educação Ambiental, elas se juntam para o trabalho seletivo de materiais e posterior venda a empresas que utilizam em suas produções. Eu nunca havia entrado em um galpão de reciclagem, e fiquei impressionada com a imensa estrutura e espaço.
Fiquei sabendo também que o CEA foi construído com recursos doados por instituições estrangeiras. Além do espaço de trabalho e área de lazer, elas dispõem de refeitório, creche, praça com parque de diversões, e até mesmo um cinema. Conheci, no CEA, mulheres que fazem pesquisa experimental, já bem avançada para transformar o óleo de cozinha jogado fora em combustível para veículos. Fiquei encantada com tanta invenção e coragem concentradas nelas. Tudo isso no coração da Vila Bom Jesus, na Porto Alegre que ninguém vê, recoberta pela violência.
Quando a professora Helen Scorsatto Ortiz, Diretora de Extensão do IF-RS campus Porto Alegre abriu os trabalhos, a emoção dela era muito evidente, e assim foi com todas as que falaram, antes da entrega dos diplomas. A oradora da turma, uma mulher trans (havia duas) fez chorar a mim e a várias outras pessoas com seu depoimento, a narrativa de sua dura travessia.
Confesso que desde que cheguei ali, me dei conta que eu estava no núcleo duro da interminável revolução feminina: aquelas mulheres se insurgem contra o perverso mandamento do consumo, que o capitalismo neoliberal, colonialista, brutal e patriarcal cultiva e que consome a todes. Elas cuidam do mundo e ressignificam os “restos” do insano frenesi que escraviza cada ser humano por excesso ou por penúria. O trabalho delas é uma forte resistência contra este capitalismo que goza de massacrar indivíduos, principalmente mulheres.
Em seu livro Um feminismo decolonial, Françoise Vergès defende que não há verdadeiro feminismo sem combate ao capitalismo neoliberal, colonialista, patriarcal e racista por definição, pois é essa a origem da violência, no eixo da qual se encontra o trinômio raça, classe e sexo.
Lendo Vergès, eu vi de perto as mulheres que limpam o mundo. São as que acordam de madrugada, fazem longos trajetos cansadas e sonolentas, para limpar tudo antes que a vida “dos outros”, os bem-sucedidos e bem-sucedidas (sim, pois a revolução feminina colocou as mulheres no mundo do trabalho), comece.
Em 2019, uma greve das trabalhadoras de limpeza na estação Gare du Nord, em Paris, causou um caos sem precedentes. Depois de duas semanas paradas, elas ganharam suas reivindicações, tanto salariais quanto de condições de trabalho e preservação de suas dignidades, pois sofriam regularmente assédio sexual.
Curiosamente, a mídia não disse uma só palavra sobre essa greve. E assim como Vergès coloca em relevo o poder revolucionário das mulheres que limpam o mundo, e que abrem o mundo todos os dias, eu saí daquela formatura convencida de ter conhecido um grupo de mulheres que cuidam do mundo e que subvertem a lógica perversa do capitalismo patriarcal, “reciclando” a favor de suas vidas e da vida de nós todes.
Uma verdadeira revolução acontecia ali: cada uma delas me parecia mais grandiosa do que a “Marianne”, de A liberdade guiando o povo, de Delacroix. Entretanto, a exemplo da greve das trabalhadoras da limpeza em Paris, me impressiona o desconhecimento da “cidade”, da existência daquele lugar e daquelas mulheres.
Quando é que vamos começar a falar sem parar sobre as mulheres que cuidam do mundo e sobre as que limpam o mundo? Essa silenciosa ignorância estaria fundada em um medo, da parte da suposta maioria, de que essas “minorias” se agigantem?
Tarde demais, elas já são gigantes fortes e poderosas, e não se curvam mais à canalhice violenta e assassina do sistema opressivo que o capitalismo colonialista, racista e classista promove. E vão se multiplicar feito uma peste, de cada cidade que ninguém vê para o resto do mundo.
As “minorizadas” já estão tomando a palavra, e com palavras se fazem coisas, muitas coisas, inclusive se tornar educadora ambiental, com diploma e tudo, como essas mulheres que encontrei naquela tarde de sábado revolucionária. Que sigam em frente!
* Rosane Pereira é psicanalista e escritora, autora de "Mulheres Esquecidas" (editora Bestiario, 2022), é membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre - Appoa e presidente da Associação Projeto Gradiva - Atendimento clínico psicanalítico para mulheres em situação de violência.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko