Rio Grande do Sul

Coluna

Os sete erros na concessão do Parque da Redenção

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Coleta de assinaturas em defesa da Redenção - Foto: Jorge Leão
A Redenção é um espaço público democrático, que recebe as mais variadas classes sociais

Acompanhando o processo de descaracterização e desdemocratização da Política Urbana ocorrido nacionalmente após o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, muitas cidades brasileiras vem sofrendo perversos impactos locais desse movimento. Governos municipais implementam projetos que revelam a forma como a inflexão ultraliberal se manifesta nas cidades, com a proliferação de alterações nos planos diretores em plena pandemia e com a banalização do autoritarismo como modo de governo.

Porto Alegre sofreu diversos ataques à ordem urbanística que havia sido construída de forma democrática ao longo da década de 1990 e consolidada no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental - PDDUA. Alterações pontuais foram introduzidas no regime urbanístico de regiões ambientalmente frágeis, como o extremo sul da cidade na zona da antiga Fazenda do Arado. Ambiências urbanas consolidadas, como o centro histórico, foram vítimas da fragmentação do planejamento urbano em projetos que visam a densificação da área. Bairros com grande presença de população de baixa renda, como é o caso da zona do 4º Distrito, passaram a ser atrativos à indústria da construção civil graças a um projeto de “revitalização” que promove antes o interesse do mercado imobiliário do que as necessidades de seus moradores.

A tendência do momento, ou, “a bola da vez” a ilustrar a saga de entregar à cidade ao mercado, é a concessão de espaços públicos à iniciativa privada. Depois de uma experiência piloto com o Parque da Harmonia, o governo de Sebastião Melo pretende, agora, promover a concessão do Parque da Redenção, do Parque Marinha do Brasil, e de dois trechos da orla do Guaíba, um no bairro Lami, no Extremo Sul, e o outro na região central da cidade.

O caso da Redenção é emblemático da insensibilidade de um governo comprometido com o interesse privado e distante dos anseios da coletividade e, por isto, é analisado aqui com maior atenção. Em uma análise preliminar, identificamos muitos motivos pelos quais somos contra a concessão do Parque mais antigo, amado e frequentado da cidade de Porto Alegre. E, tal como nos jogos infantis, listamos aqui os sete erros da concessão do Parque da Redenção:  

1 – A Redenção é um bem de uso comum do povo e a natureza jurídica desses bens públicos repugna a qualquer tipo de cercamento, concessão à iniciativa privada ou qualquer forma de limitação de acesso. Os bens de uso comum do povo são, por sua natureza jurídica, de titularidade difusa: o poder público faz a gestão do bem, mas ele pertence à coletividade. São de acesso universal, gratuito e livre de qualquer formalidade. Tais bens tem como característica a indisponibilidade, pois são do domínio público do estado, não tendo, portanto, função econômica, mas, isto sim, uma afetação que lhes confere uma função social e uma destinação pública.  Nesse sentido, é um absurdo jurídico falar em “parque deficitário”, pois os parques não visam lucro.

2 – O Estatuto da Cidade prevê a gestão democrática das cidades brasileiras, por meio da participação da população e de entidades representativas de diferentes segmentos sociais nos processos de tomada de decisão sobre planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano. No caso da concessão da Redenção, no entanto, o projeto foi debatido antes com empresas interessadas no negócio do que com os usuários e as usuárias do parque, ofendendo um princípio da política urbana brasileira e revelando a forte presença de interesses privados na transformação do parque em mercadoria capaz de gerar lucro a entidades empresariais. Nas audiências públicas realizadas a respeito do caso a esmagadora maioria das manifestações de cidadãos e cidadãs é contrária à concessão, mas, em uma traição à ideia subjacente na palavra e no rito “audiência”, pouco foi escutado pelo governo municipal, determinado a realizar a concessão de qualquer forma. A audiência pública foi uma etapa cumprida por ser obrigatória, quase como se fosse um “entulho democrático”.  O autoritarismo na condução do processo é incompatível com a ordem urbanística brasileira.

3 – A Redenção é um bem tombado, que desde 2012, por força do Decreto 18.103 recebeu, por parte do município, o reconhecimento de que se trata de Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental a ser preservado, bem como seus mobiliários e suas paisagens urbanas. O tombamento, como se sabe, é um instituto que visa a preservação de um bem para as presentes e futuras gerações. O instrumento do tombamento tem como um de seus objetivos justamente evitar a alteração das características de um bem que se notabiliza pela beleza, pela importância cultural de que se reveste em função de características próprias ou das atividades que nele se realizam. Em uma concessão à iniciativa privada é evidente que o espaço sofreria alterações que o descaracterizariam, inclusive visando à compensação financeira dos concessionários, que terão de buscar alternativas que gerem retorno econômico para viabilizar a gestão do parque. É evidente que a concessão ameaça a paisagem do parque da Redenção e suas belas características paisagísticas.

4 – A Redenção é um espaço público democrático, que recebe as mais variadas classes sociais, os mais diversos grupos humanos, de todas as idades, raças, gêneros, origens, crenças e maneiras de fruir do espaço, revelando a vocação do espaço para o acolhimento da população de Porto Alegre e da região metropolitana. É um parque desfrutado em todas as estações do ano, em todos os dias da semana, em todas as horas do dia, sendo um exemplo de ambiência capaz de garantir o direito ao lazer da população. As limitações decorrentes da concessão podem romper com essa amplitude de possibilidades de uso, dando ao concessionário um controle sobre o bem que hoje é desfrutado livremente.

5 – As vivências culturais, artísticas, políticas, recreativas e pedagógicas vivenciadas na Redenção compõem um conjunto de práticas que traduzem a ideia de direito à cidade, que é o direito de todos, todas e todes de acessar aos bens materiais e simbólicos que a cidade oferece.  O direito à cidade se efetiva quando cidadãos e cidadãs têm garantido o acesso aos serviços públicos, aos espaços públicos, à infraestrutura e aos processos de tomada de decisão, sem qualquer discriminação. Conceder à iniciativa privada um espaço público é delegar a empresas privadas o controle sobre o exercício de um direito fundamental como é o direito à cidade, o que não é compatível com a ordem constitucional brasileira.

6 – A concessão da Redenção trai o espírito da Nova Agenda Urbana firmada pelo Brasil em Quito, na Conferência HABITAT III, em 2016. Neste documento, que estabelece uma agenda para as cidades nos próximos vinte anos, se pactuou uma “visão de cidade”. Dentre outros acordos, se pactuou que os países signatários da Nova Agenda Urbana buscam cidades que “sejam participativas; promovam a participação cívica; estimulem sentimentos de pertencimento e apropriação entre todos seus habitantes; priorizem espaços públicos seguros, inclusivos, acessíveis, verdes e de qualidade, adequados para famílias; fortaleçam interações sociais e intergeracionais, expressões culturais e participação política, conforme o caso; e propiciem a coesão social, a inclusão e a segurança em sociedades pacíficas e plurais, nas quais as necessidades dos habitantes sejam satisfeitas, reconhecendo as necessidades específicas daqueles em situação de vulnerabilidade.” Nada mais distante da Nova Agenda Urbana e dos compromissos firmados pelo Brasil junto à ONU, do que a concessão do Parque da Redenção à iniciativa privada.

7 – Finalmente, é preciso dizer que se não bastasse esse extenso rol de razões locais para sermos contrários à concessão da Redenção, há ainda razões de escala planetária. Em todo o planeta se debate, hoje, a importância dos COMUNS para a humanidade. Para além das conveniências de manutenção do sistema econômico em uma fase de capitalismo financeirizado, milhões de pessoas se organizam para lembrar à humanidade que só temos futuro enquanto espécie se inaugurarmos práticas e maneiras de viver que reconheçam a natureza como uma riqueza comum, a ser respeitada, preservada e desfrutada em igualdade de condições por todos e todas. As águas, as praias marítimas, o ar que respiramos, a floresta, as riquezas naturais são exemplos de comuns que devemos contribuir, com nossas práticas políticas e de cidadania, para que possam ser acessados por todos e todas. Nas cidades, os parques como a Redenção são um exemplo potente de um COMUM urbano que não deve ser financeirizado, pelo contrário: deve cada vez mais ser reconhecido como território de todos e todas. A proposta de concessão da Redenção, portanto, reforça um modelo econômico, político e social que limita nossas possibilidades, enquanto humanidade, a um futuro hostil e garantido a poucos. Somos contrários à concessão da Redenção, portanto, porque acreditamos e lutamos por um outro mundo possível e necessário.

* Betânia Alfonsin, Jurista, pesquisadora do Núcleo Porto Alegre do Observatório das Metrópoles.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko