Rio Grande do Sul

Opinião

Artigo | A Engenharia da reconstrução de um país demolido

A metáfora da guerra cabe, infelizmente, quanto à perda de vidas humanas. A pandemia provocou milhões de mortes

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Nenhuma estrutura, edificação ou equipamento será projetado, construído, usufruído ou colocado em funcionamento em espaço ou oportunidade neutros
Nenhuma estrutura, edificação ou equipamento será projetado, construído, usufruído ou colocado em funcionamento em espaço ou oportunidade neutros - Divulgação

Nosso país vive um momento crucial, à espera da posse do novo governo. O filme Alemanha Ano Zero, de Rossellini, retrata um país destroçado, com ruínas por toda parte. O Brasil não passou por uma guerra devastadora, não teve suas estruturas físicas destruídas, mas chega ao momento atual com uma verdadeira devastação institucional e social, provocada por quem disse, explicitamente, que chegou para desfazer e não para construir. 

A metáfora da guerra cabe, infelizmente, quanto à perda de vidas humanas. A pandemia provocou milhões de mortes pelo mundo, mas nosso país teve centenas de milhares de óbitos que poderiam ter sido evitados não fosse a atitude criminosa do governo federal frente a ela.

As instituições e os programas sociais foram destroçados. Em todas as áreas da administração e da implementação de políticas públicas, o dano é imenso. Emprego e relações trabalhistas, educação, cultura, saúde, agropecuária, infraestrutura, meio ambiente, comunicação, política econômica e qualquer área ou subárea da administração da vida nacional tudo rumou no caminho do caos. 

A reconstrução nacional situa-se em um contexto de tripla crise mundial. Na pauta econômico-financeira, a ameaça da depressão, a inflação crescente, e a pobreza, provocadas ou agravadas pela pandemia enfrentada por políticas neoliberais incompetentes ou autoritárias e, como se não bastasse, o acirramento da disputa da hegemonia levada até a guerra, todos esses fatores ensombressem o futuro próximo das nações. O Brasil deverá desenvolver sua reconstrução em um quadro bem diferente e economicamente mais complexo do que aquele do pós-guerra mundial.

A segunda (melhor dizer mais crucial) crise planetária é a da emergência ambiental. As mudanças climáticas, configuradas pelo aquecimento global e suas consequências, já sentidas concretamente, deram um novo sentido de urgência à necessidade de uma transformação civilizacional. A mesma já vinha sendo defendida por ativistas e profissionais, por conta da poluição crescente, da disputa irracional pelas águas, acarretando a diminuição de sua disponibilidade, da geração e do consumo de energia de forma predatória.

Agora, a população humana percebe que o planeta não é ilimitado e o tempo é escasso para evitar um futuro catastrófico. Nessa crise o Brasil tem um papel crucial, não só com a Amazônia, mas pela sua potencialidade com relação à água doce, sua riqueza mineral e seu potencial de produção alimentar.

Finalmente, no contexto geopolítico, a difícil transição da hegemonia imperial para uma governança multipolar apresenta desafios complexos a todos os atores. No caso brasileiro, uma nação que tinha começado a exercer atuação importante na arena internacional foi, ignobilmente, relegada ao papel de pária. Obviamente, qualquer reconstrução nacional depende de discussões e acordos que envolvem não só políticas, mas tecnologias. 

E o mundo multipolar que se desenha exige aperfeiçoamento da participação popular com todos os instrumentos que a tecnologia fornece assim como a defesa contra o novo populismo fascista. 

Após o catastrófico desmonte de uma nação, assim como aconteceu com a Alemanha ou a Itália no pós-guerra – ou em qualquer outro país que sofreu dano semelhante, provocada por guerra ou não - o essencial, a partir do momento de volta à normalidade, é pensar, planejar, programar e executar a reconstrução. 

Naturalmente, esse planejamento e as ações dele derivadas dependem, inicialmente, de uma cuidadosa análise das perdas (e das causas dessas perdas). É preciso considerar, entretanto, que tanto essa análise quanto o próprio processo de reconstrução não serão uma experiência de laboratório nem um estudo acadêmico, na medida em que a história não para e “o caminho deve ser feito caminhando”. Mas todos os instrumentos de aferição e de diagnóstico precisam ser empregados, de forma acurada e competente, o que não se aplica apenas às políticas públicas e instituições, mas até mesmo a obras físicas atrasadas, incompletas ou necessárias.

A reconstrução depende e terá de ser feita com medidas políticas, institucionais, econômicas e sociais, mas junto e ao lado de todas elas, certamente estará a necessidade do aporte tecnológico e da contribuição de todos os ramos da engenharia. Não se recuperará a educação sem os instrumentos, os equipamentos e as edificações necessárias e competentes. Não se colocará em vigor uma adequada política ambiental sem aporte tecnológico análogo. Não se entende a saúde atendida sem hospitais, equipamentos e uma infraestrutura geral a sua disposição. Da mesma forma para a produção agrícola, os transportes, o turismo, as relações de trabalho, o emprego etc. A própria política macroeconômica ou as relações microeconômicas, especialmente neste mundo digital, que avança em invocação com velocidade crescente, dependem fortemente da tecnologia.

Nesse ponto, cabe destacar fortemente que, quando se fala de tecnologia (seja de pesquisa, seja de aplicação) e de engenharia, forçosamente está se falando de profissionais – educadores, pesquisadores, profissionais de todos os campos, ou seja, engenheiras e engenheiros atuando concretamente na vida real.

Sem esses profissionais, com formação competente, presentes e atuantes, a reconstrução não será possível. Os exemplos históricos são bem nítidos. Além da reconstrução da Europa devastada, podemos lembrar a importância que a engenharia teve na recuperação dos Estados Unidos após a crise de 1929 (basta apenas um exemplo: o grande plano de desenvolvimento da Bacia do rio Tenessee e a multiplicação de obras públicas, com construção de rodovias e hidroelétricas). Vale mencionar, também, o exemplo chinês que transformou o país, a partir dos anos 1990 em um grande canteiro de obras, com danos ambientais que estão sendo reparados com apoio tecnológico. Em todos os casos, o Estado muito atuante e profissionais da área tecnológica presentes com as soluções e sua implementação. 

O que não se pode esquecer é que a eficácia da atuação profissional e o avanço dessa eficácia, nos seus resultados materiais e institucionais, dependem, fundamentalmente da inovação. Entra aqui, a importância da pesquisa científica, seja pura ou aplicada, o papel das universidades e outros centros especializados, onde novamente, profissionais da área tecnológica são indispensáveis e fundamentais. 

Cabe dizer que a palavra inovação precisa ser recuperada, nesse momento de crise, para ser mais do que um conceito de submissão ao “admirável mundo novo” de tecnologia a serviço de poderosos ou a uma noção perigosamente ingênua de um mundo digital independente da realidade social e que vai trazer o paraíso artificial (e para muito poucos). A ciência, a pesquisa, a inovação poderão concorrer para novas crises sociais, ambientais e até éticas se não forem acoplados aos interesses humanos concretos. 

Frente à inovação, engenheiros e engenheiras terão, cada vez mais, a necessidade de aperfeiçoamento constante, de novas atitudes e soluções, em intercâmbio com pesquisadores que se valham das vivências e experiências de campo.

No momento em que nosso país precisa urgentemente da reconstrução, não é apenas uma decisão opcional o compromisso social de profissionais de engenharia. Não se compreenderá, nos próximos tempos, o engenheiro ou a engenheira que considere seu êxito profissional resultado de uma meritocracia que esconde a vergonhosa diversidade de oportunidades e considera que empreender é apenas competição desenfreada. O interesse social, as necessidades coletivas serão, nesses tempos vindouros, a prioridade obrigatória de todos e todas que pretendam ajudar a construir um país melhor.

A noção de compromisso social da engenharia e de seus profissionais acarreta outra dimensão: a necessária visão política. Não se entenderá, em um processo de retomada de planos, obras e serviços fundamentais a uma nação desenvolvida social e ambientalmente, que ciência, tecnologia e engenharias sejam consideradas entes politicamente neutros. 

Nenhuma estrutura, edificação ou equipamento será projetado, construído, usufruído ou colocado em funcionamento em espaço ou oportunidade neutros. Engenheiro ou engenheira nunca deverá ser o robô a executar o que lhe é programado sem consciência do que está a fazer. Exatamente, essa noção, indispensável a cada momento da atuação profissional, é o início da consciência política. Não apenas agir tecnicamente, mas saber por quê, para quê e como exercer seu conhecimento e sua competência técnica.

Essa noção primária de que toda ação tem uma conotação política, nesse período de reconstrução nacional, exigirá desenvolvimento e aprofundamento bem maiores. Haverá milhares de opções a serem decididas  pelas instâncias políticas e administrativas (por exemplo, nas políticas habitacional, ambiental, agrária, educacional, sanitária etc) onde profissionais da engenharia estarão envolvidos e precisarão ser consultados. Nos momentos de consulta, um engenheiro precisará não apenas apontar alternativas técnicas, mas terá a obrigação de também opinar sobre as implicações sociais, ambientais e econômicas de cada alternativa. Para cumprir esse dever, não se entende que engenheiros e engenheiras estejam alienados da vida política. 

Conhecer, acompanhar, entender e avaliar o processo político nacional (ou estadual e municipal) é o fundamento para que qualquer atividade profissional seja iluminada pela boa visão política. O negativismo político contribuiu para todos os retrocessos políticos e institucionais da história brasileira e esses retrocessos estão diretamente ligados aos atrasos no desenvolvimento econômico e social e, de forma mais direta, no grande retrocesso que sofremos nos últimos anos e que nos levam a falar em reconstrução. 

Atuação profissional politicamente consciente é reconhecer que o processo democrático também foi erodido e que, se sua resiliência permitiu uma nova chance histórica, a reconstrução nacional só será levada adiante se todos, incluídos profissionais e entidades representativas da engenharia lutarem explicitamente contra os ataques á democracia, às instituições e os Poderes Constituídos. 

Não à omissão. Compromisso com a reconstrução!

* Engenheiro Civil

** Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko