As mães da Praça de Maio pariram o lastro da contemporânea democracia argentina
Nesses dias tivemos uma conversa, na beira da cama do hospital, com Clarisse Castilhos. Não sei se ela se chama assim, mas eu a reconheço como uma feminista histórica.
Nesses tempos alongados, conversamos sobre o que nos havia marcado da personalidade de Hebe de Bonafini. Madre de Plaza de Mayo recentemente falecida. Ela, ao contrário dos dois filhos e da nora, sequestradxs e desaparecidxs pela ditadura militar argentina, pôde morrer em um hospital recebendo cuidados até o momento último de vida em seu corpo. Pensar sobre a maneira como vivemos e, incluso, sobre como morremos (e o que não nos foi permitido viver) deve estar na agenda de qualquer país que se considere democrático. Faz parte da agenda dos direitos humanos.
Definitivamente, não é inédito entre as pautas feministas, de comunidades tradicionais e atualizado pela pandemia de covid-19. Não é inédito: como viver e morrer atravessou toda a luta pelo direito ao tratamento de pessoas com HIV pelo Estado, e o Brasil teve papel fundamental na discussão sobre a quebra de patente para a fabricação de antirretrovirais. Os ensinamentos sobre desobediência, sabemos, não vêm do Estado patriarcal capitalista, vetor do colonialismo até os dias de hoje. No Brasil nos falta lembrar quantas pessoas foram mortas pela ditadura cívico-militar defendendo o Estado de Bem Estar Social, a Saúde como direito previsto na Constituição de 1988, e implodir a máfia dos corpos mortos e vendidos às faculdades de Medicina pelo país até então.
“Era preciso fazer algo, os homens só choravam”, ela me contava sobre Hebe e sua fúria desobediente pelo direito ao luto fora, antes de tudo, seu desejo pelo direito à vida que, segundo ela, havia aprendido com seus filhos. Talvez não me alcancem as palavras a beleza daquele momento: tecendo o fio de nosso continuum lésbico, que sempre vi tão materializado em Clarisse e suas relações, íamos costurando nossas memórias sobre uma feminista histórica, ainda que assim não se tenha nomeado.
Assim como as mulheres de comunidades tradicionais tem nomeado como feminismo comunitário o conjunto de suas práticas de resistência e luta política de suas comunidades por décadas ou séculos. Era preciso deixar que os homens chorassem, e ir às ruas para tornar público o desaparecimento de filhos e filhas com a fúria de quem os havia parido e criado.
As mães da Praça de Maio, cuja primeira presidente da associação foi Hebe de Bonafini, por sua presença e intensidade, desobediência e até mesmo irreverência, pariram o lastro da contemporânea democracia argentina: fizeram do luto compartido o laço social que hoje, de tão bem tecido, está na boca de milhões de feministas que ensinaram ao mundo a gritar “Nenhuma a Menos”, que lança a pergunta feroz “Donde está Tehuel?”, jovem trans desaparecido ao procurar trabalho, e que acolhe a cada mãe cujas crias desaparecem ainda hoje, evidenciando a íntima relação entre a negligência de Estado e as redes internacionais de tráfico de pessoas e outros crimes hediondos.
E não é que, no Brasil, não tenhamos as nossas próprias: contemporaneamente, o movimento Mães de Maio, na figura pública de Débora Silva, tem repetido a tarefa de não nos deixar esquecer que a tragédia se repete historicamente como farsa, a cada ano: Acary, Gamboa, Jacarezinho, Paraisópolis. Do que aprendemos com o movimento social argentino, a lição de casa ainda não cumprida coletivamente é não negociar, não perdoar e não esquecer.
Dar vida à morte é uma tarefa árdua que não fazemos sozinhas. Atravessa nossas existências, empresta sentidos a gerações futuras. Antes ainda: permite que as gerações após a nossa possam viver, tanto quanto permite-nos desfrutar da beleza de ver envelhecer e morrer, com toda a dignidade possível, as pessoas que amamos. Permite-nos o direito à desobediência lúcida e orientada, com potencial para construir mundos habitáveis, democracias reais, vínculos que transcendem linearidades, e a legítima revolta amorosa contra tudo o que oprime e diminui o valor intrínseco das nossas vidas. Somos nossas próprias heranças, em perspectiva feminista.
* Lara Werner, em diálogo com Clarisse Castilhos
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko