Passado e presente se entrelaçaram no debate promovido pelo Sindicato dos Servidores da Justiça do Estado do RS (Sindjus/RS) e SindBancários sobre territórios. A atividade foi realizada no Quilombo Areal da Baronesa, um dos 11 quilombos urbanos da capital gaúcha. O debate foi antecedido por um almoço na comunidade.
Os painelistas foram Regina da Silva Miranda, coordenadora estadual de Assistência Técnica e Extensão Rural com Comunidades Remanescentes de Quilombos do RS na Emater/RS-ASCAR; Ubirajara Carvalho Toledo, metroviário e integrante do Instituto de Assessoria às Comunidades Remanescentes de Quilombo (Iacoreque); e Jeise Chaves Alvarez, assistente social e quilombola.
A roda de conversa integra as atividades do Novembro Antirracista Unificado, organizado por várias entidades sindicais, além de fazer parte do 2° encontro do Coletivo pela Igualdade Racial do Sindjus (CIRS).
Em sua fala, Regina destacou os mais de 358 anos de escravidão no país. Também o fato do Brasil ter sido um dos primeiros palcos escravagistas do planeta e um dos últimos a abolir a escravidão, em uma condição de alta violência.
"O Estado brasileiro tem que se olhar nesta violência praticada. Somente pelo esforço do movimento negro unificado e de outros movimentos organizados é que hoje se tem as políticas que se tem. Elas estão muito aquém do que deveriam estar, mas cada uma foi conquista com muito suor e sangue do povo, nada foi dado de boa vontade”, destacou a coordenadora, elencando as leis racistas no país, como a primeira lei da educação que dizia ser proibido a pessoa negra estudar, e a lei da vadiagem.
“O Brasil tem que se olhar para estas condições e fazer reparações profundas”, ressaltou.
Presença na agricultura
Ao abordar o contexto atual, Regina comentou que das 130 comunidades quilombolas gaúchas registradas na Fundação Cultural Palmares, 115 são rurais e 15 urbanas. Em seus 20 anos de trabalho na EMATER, a coordenadora testemunhou o embranquecimento da agricultura no estado e a discriminação com a população negra, indígena e quilombola no setor.
“Nós temos comunidades negras em muitos municípios, são 68 municípios onde elas estão, em sua imensa maioria são rurais. O tempo médio que essas comunidades estão lá é de 200 anos e é uma população altamente discriminada. Tem seus territórios violados. Quanto menor o município, mais racista ele é”, afirmou.
O diagnóstico elaborado pela Emater e divulgado na primeira semana de novembro deste ano, intitulado "Comunidades Remanescentes dos Quilombos Certificadas do Rio Grande do Sul: diagnóstico social, econômico e produtivo", apontou que em 58% das comunidades remanescentes de quilombo (urbanas e rurais) há famílias que comercializam sua produção agropecuária.
“Quem diz que negros não produzem nada, isso é falso. Eles produzem e têm uma agricultura muito peculiar e só sua. Se existem sementes crioulas, é por causa da agricultura indígena e negra que elas sobreviveram, porque a agricultura convencional tem soja até em cima da casa do cachorro. Planta medicinal não sobrou coisa nenhuma. Não é essa relação que a agricultura quilombola tem com a terra. É uma relação do sagrado”, descreveu.
Contudo, a coordenadora salientou que a formalização da condição de agricultor ainda hoje é dificultada. Um dos fatores que contribui para essa situação está ligada diretamente com a titularização. “Atualmente tem 113 processos abertos no Incra de comunidades pedindo a titulação da terra. Há mais de 20 anos esses processos estão abertos. No Rio Grande do Sul só cinco são titulados. E ainda parcial, não é o título completo. Sempre vão dando um pedacinho, é um ritual de violação do Estado para com essas comunidades”, frisou.
“Se tu não tem a regularização, se tu não tem crédito, se tu não tem terra, como é que tu vai produzir para a comercialização? O diagnóstico mostrou que a produção quilombola é uma produção ativa, rica, diversificada. Mas por ser numa condição de violação dos seus direitos é uma produção mais para a subsistência”, finalizou.
"A gente sobreviveu graças à nossa capacidade de resiliência e solidariedade"
Assim como Regina, Ubirajara, destacou o processo de escravização no país. “Somos um país jovem, de apenas 522 anos de história, 350 de escravidão e apenas 134 de abolição”, afirmou, destacando que para o Brasil vieram sequestrados 4 milhões de africanos, africanas e crianças, que construíram a riqueza do país.
Ele também pontuou sobre a invisibilidade histórica da população negra e das revoltas que aconteceram no país. “Balaiada, Sabinada, Cabanagem, Revolta dos Malês, estão todas ligadas à Traição de Porongos aos Lanceiros Negros. A elite não poderia aceitar negros armados com a promessa de liberdade. Está na história. Existe um imaginário de medo de que nós negros façamos com eles aquilo que eles fizeram com nossos ancestrais."
Ubirajara afirmou que o povo negro não tem o ódio no coração e que cultiva a solidariedade, sem nenhum tipo de sentimento de revanchismo. “Mas, para algumas culturas isso é impossível, pois eles sabem as barbaridades que fizeram. (...) As teorias do racismo científico foram propagadas pelo mundo. Até hoje se tenta desconstruir essas ideias. A gente está lutando contra esses estereótipos", ressaltou citando O Caso do Homem Errado (filme que conta a história do operário negro Júlio César que, ao ser confundido com um assaltante, foi executado pela Brigada Militar).
Ao abordar a questão da territorialidade, o ativista disse que a luta das comunidades quilombolas está inserida na luta pela Constituição de 88. “Hoje, a Comunidade do Areal da Baronesa tem já esse certificado, mas o racismo institucional impede a titulação desse território, por causa da especulação imobiliária. Esse título é fornecido para a associação do território, ele é coletivo e indivisível e impede que a especulação imobiliária comece a fatiar esses territórios. Então essa titulação visa garantir a existência dessas comunidades", explicou.
Quilombo é reduto de resistência da população preta
Nascida e criada no quilombo do Areal da Baronesa, a acadêmica de serviço social Jeysi Chaves Alvarez, 32 anos, há oito não reside no local, mas fala com orgulho da sua comunidade. Durante o encontro, além de falar de sua vivência na comunidade, chamou atenção sobre a especulação imobiliária, tão presente em muitos quilombos da Capital.
“Hoje, o Areal é uma rua de 300 metros, antes a gente tinha aberturas dos dois lados no final da rua. Tanto para a Múcio Teixeira quanto para a Barão do Gravataí. Hoje, a gente já não tem essa possibilidade. Não é de agora que a gente sofre com a questão da especulação imobiliária por estar em um território centralizado, onde o custo de vida é alto”, expôs ao Brasil de Fato RS.
Para ela, quando se fala em território quilombola, se fala da periferia. “O que nos assola e o que nos mata é o tráfico e o alto número de pessoas pretas presas no sistema carcerário. E nós precisamos sim falar sobre isso. É importante falarmos sobre essa questão do tráfico e das facções, porque elas acabam vindo para territórios como o Areal, na tentativa de tomada desse território. Tanto pela logística do tráfico de drogas quanto pelo aliciamento de jovens”, comentou.
Também pontuou sobre o histórico da comunidade e suas memórias da infância. Ela comentou que muitas das comunidades ditas como periféricas de Porto Alegre, como Restinga, Rubem Berta, onde ela mora atualmente, são oriundas da região onde está localizada a região do Areal da Baronesa. Enfatizou a importância da produção dentro e sobre o território e a importância de manter viva a história.
Jeysi está atualmente fazendo um trabalho junto com o projeto Areal do Futuro, que atua com as crianças da comunidade para manter a cultura e a história da comunidade.
Depois da fala dos convidados foi aberta para manifestações do público e também apresentação cultural.
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Edição: Marcelo Ferreira