Rio Grande do Sul

DOIS PESOS

Conhecida pelo uso da força, BM diz aguardar ordens para agir contra golpistas na Capital

Comandante do 9º BPM se diz à espera de ordens do governo do estado, que por sua vez insiste na estratégia do diálogo

Sul 21 |
Ao contrário de outras manifestações, governo estadual tenta encerrar ato golpista na base do diálogo - Foto: Joana Berwanger/Sul21

Aguardando ordens. Essa é a posição do tenente-coronel Fábio da Silva Schmitt, comandante do 9º Batalhão de Polícia Militar (BPM), responsável pelo centro da Capital, sobre o que fazer para pôr fim aos atos antidemocráticos que perduram na cidade.

Mais de 20 dias após o segundo turno e a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como novo presidente do Brasil, o centro de Porto Alegre segue convivendo com atos golpistas em frente ao Comando Militar do Sul. Sem aceitar o resultado democrático das urnas, apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL) pedem uma intervenção militar que impeça o petista de assumir o Palácio do Planalto a partir do dia 1º de janeiro de 2023.

O ato na capital gaúcha não é um caso isolado. Cenas semelhantes têm sido vistas diante de quartéis do Exército Brasil afora. Em Porto Alegre, chama a atenção a duração do ato. A Rua Padre Tomé está trancada há muitos dias e, desde o princípio, a posição do governo de Ranolfo Vieira Júnior (PSDB) é tentar dispersar o movimento por meio do diálogo, sem o uso da força policial.

No dia 11 de novembro, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, determinou a desobstrução imediata das vias públicas bloqueadas por atos golpistas em todo o País. Para cumprir a decisão judicial, o comandante do 9º BPM  explica haver um protocolo para a desobstrução de vias públicas e que a Brigada Militar o está seguindo.

Schmitt explica que fez dois pedidos recentes aos bolsonaristas. Na quinta-feira da semana passada (17), solicitou que fossem retirados os veículos que estavam estacionados irregularmente na rua. A demanda foi atendida. O outro pedido foi para que as barracas dispostas na rua fossem retiradas. Esse não foi atendido.

Com a negativa, na última segunda-feira (21), o comandante do 9º BPM voltou ao local para novamente pedir a retirada das barracas. No mesmo dia, a polícia recolheu o caminhão de som que estava no local. Tecnicamente, o veículo foi apreendido por “alteração de característica”, devido ao fato de ser um caminhão de carga utilizado para outro fim sem autorização.

Quanto às barracas, porém, até esta quarta-feira (23), elas continuavam na rua, assim como os apoiadores do presidente Bolsonaro que pedem por um golpe. “A solicitação foi feita. Fiz uma fala institucional em nome da Brigada Militar buscando uma solução pacífica para todos os lados. É desse jeito que fica. Essas ações fazem parte de uma gradação para encontrar uma saída pacífica”, diz o comandante do 9º BPM.


Em 2016, estudantes que protestavam contra pacote de medidas do governo Sartori não tiveram o mesmo tratamento por parte da BM / Foto: Guilherme Santos/Sul21

Questionado sobre qual o próximo passo, considerando que os pedidos não estão sendo plenamente atendidos e a ocupação do espaço público permanece, o tenente-coronel Schmitt explica que não cabe a ele decidir: “Esse nível de decisão é da própria reunião que falamos no começo da conversa”, justifica, se referindo ao gabinete de crise criado pelo governo estadual logo após o fim do segundo turno das eleições e o início dos atos antidemocráticos. “Esse nível de decisão não cabe a mim, nem de comentar. Não sei dizer, no momento, qual o próximo passo.”

Schmitt refuta a possibilidade de que a demora em pôr fim ao ato golpista possa transmitir a ideia de que a BM está sendo complacente ou omissa. Segundo ele, a situação está sendo monitorada e a intenção é retirar as pessoas de forma pacífica. “Não sei te dizer se vai ser construída uma ordem de dispersão. O próximo passo é a saída deles”, afirma.

Ele rechaça a possibilidade de haver “dois pesos e duas medidas” entre a atuação da BM frente ao atos golpistas e outras manifestações já ocorridas na Capital, que sofreram com a força do policiamento.

“Cada caso é um caso, as situações são diversas. Essa se apresentou dessa maneira e ninguém imaginou que fosse perdurar como está se perdurando”, comenta, reconhecendo não lembrar de outro ato tão longo na cidade. “Eu aguardo ordens para fazer o próximo passo, seja ele qual for”, afirma.

O comandante do 9º BPM ressalta que se uma ação ostensiva for feita e causar ferimento em crianças e idosos, por exemplo, a repercussão será muito negativa. Com esse cenário posto, Schmitt enfatiza a posição de um comandante aguardando ordens superiores. “Eu não sei te dizer o próximo passo”, afirma, destacando que a decisão cabe ao governo estadual.


Em junho de 2017, a polícia montou uma operação de guerra para cumprir ordem judicial e despejar famílias da Ocupação Lanceiros Negros / Foto: Guilherme Santos/Sul21

Porrada e bomba

Acostumada a atuar na defesa de movimentos sociais na Capital, a advogada Jucemara Beltrami não esconde a surpresa ao observar o modo como o governo estadual tem agido diante do movimento golpista em frente ao quartel do Exército. Ela enumera situações nos últimos anos em que a BM não teve a mesma disposição para o diálogo como demonstra agora com os apoiadores do presidente Bolsonaro. A advogada recorda, por exemplo, a maneira violenta como a polícia agiu nos atos contra o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, em 2016.

“Houve uma forte repressão em cima de caminhadas. Eram simples caminhadas, com gritos de palavras de ordem pedindo que se mantivesse o Estado Democrático de Direito. Ou seja, eram atos em defesa da democracia, e pessoas foram presas, levadas para o presídio feminino e masculino pelo simples fato de estarem pedindo que se mantivesse a democracia”, destaca.

A advogada lembra da forma agressiva como a BM agiu naqueles atos, inclusive com a prisão de mulheres. Ela enfatiza que, nos atos de 2016, a polícia usou o expediente de agentes infiltrados, os chamados P2, para se misturar em meio aos manifestantes e obter informações. “Isso demonstra que a Brigada, através do comando de um governador, tem mecanismos para poder saber quem organiza, quem paga a conta”, analisa.

Nas manifestações contra o impeachment de Dilma, Jucemara diz que, muitas vezes, a repressão da polícia ocorria na parte final do ato, com a justificativa de acelerar a dispersão e desobstruir a rua. No mesmo ano de 2016, ela ainda recorda a atuação da BM frente às ocupações de escolas promovida por estudantes em defesa da educação pública.

“Houve também nesses atos uma violenta reação da Brigada Militar. Inclusive com a detenção de menores, segurando os estudantes e jogando spray de pimenta nos olhos e nas pessoas. Sempre de uma forma muito agressiva, muito violenta, com cavalos, cassetete, balas de borracha e spray de pimenta”, relembra.


Contra o choque, jovens seguram escudos de papelão / Foto: Guilherme Santos/Sul21

O emblemático caso da Ocupação Lanceiros Negros, cujas famílias foram despejadas em 2017 numa madrugada fria e chuvosa, também é recordado pela advogada como exemplo de ação violenta protagonizada pela BM. Naquela ocasião, de posse de uma decisão judicial tal como existe agora em relação aos atos antidemocráticos, a opção não foi a via do diálogo.

“Nas pequenas ocupações a atuação da Brigada é sempre muito violenta, sem respeitar o diálogo, sem respeitar nem direito de criança, enfim, eles atuam de forma bastante violenta, com bomba de efeito moral, gás de pimenta, bala de borracha. Essa é a forma com que eles atuam sempre contra os grupos que estão na defesa de algum direito, nunca é pregando golpe”, lamenta a advogada.


Despejo da Ocupação Lanceiros Negros colocou na rua, e de noite, famílias com crianças de colo / Foto: Guilherme Santos/Sul21

Lenta e gradual

Em contato com a reportagem do Sul21, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) declarou que a última decisão, tomada em conjunto pelo gabinete de crise, foi de ampliação do diálogo com os manifestantes para buscar a desobstrução da via.

“Nos últimos dias, já foram retirados banheiros químicos e um carro de som. O secretário da Segurança Pública, coronel Vanius Cesar Santarosa, e o comandante-geral da BM, coronel Cláudio dos Santos Feoli, estiveram em Brasília onde participaram de reunião com o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Alexandre de Moraes, para, entre outros temas, tratarem sobre as manifestações pós-eleições. Durante a conversa que teve com o ministro Alexandre de Moraes nesta quarta-feira, o comandante da Brigada Militar destacou que a retirada está sendo feita de maneira lenta e gradual”, informa o governo estadual.

No começo de novembro, o Ministério Público Federal (MPF), o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MPRS) e o Ministério Público de Contas (MPC) cobraram do prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), e do diretor-presidente da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), Paulo Ramires, informações sobre as medidas adotadas para garantir o desbloqueio de vias públicas na capital gaúcha.

Em resposta, a Prefeitura argumentou que os bloqueios estão dentro dos limites do direito constitucional à reunião e que eventuais abusos e desvirtuamentos desse direito devem ser contidos pela Brigada Militar, não pelo município.

Procurado novamente cerca de 15 dias depois, o MPRS adotou agora um tom mais comedido. O órgão informou seguir acompanhando a situação, conforme a estratégia definida pelo governo estadual.

“O MPRS segue atuando em parceria com demais instituições no Gabinete de Crise e no acompanhamento do trabalho desenvolvido pelas forças de segurança do Estado de acordo com estratégia definida para promover a normalização da circulação nas vias da capital onde ainda ocorrem manifestações”, declarou.

Ainda mais sucinta é a posição do MPF. Questionada, a instituição respondeu apenas que “o Ministério Público Federal segue apurando e analisando o caso”.


No final de 2016, Brigada usa bombas de gás para dispersas manifestantes contra a PEC 55 do governo Temer / Foto: Guilherme Santos/Sul21

 

Edição: Sul 21