Livro traz resultados de pesquisa e reflexões críticas sobre temas importantes da reforma urbana
Foi lançado esta semana pelo Núcleo Porto Alegre do Observatório das Metrópoles o livro Reforma Urbana e Direito à Cidade em Porto Alegre que mostra, através de artigos desenvolvidos por pesquisadores, um retrato contemporâneo de nossa cidade. O livro faz parte de uma coleção lançada nacionalmente pelo Observatório das Metrópoles, que está disponível gratuitamente para download.
A plataforma da Reforma Urbana foi estabelecida desde a redemocratização do país. Esteve presente na Constituição de 1988, na aprovação dos princípios da Função Social da Cidade e da Propriedade e na construção do Estatuto da Cidade (aprovado em 2001). Em Porto Alegre, as diversas lutas sociais e políticas conseguiram avanços importantes na Lei Orgânica Municipal (1990), com a previsão de instrumentos jurídico-urbanísticos para possibilitar o acesso à terra e à habitação, juntamente com a previsão de políticas públicas voltadas ao bem-estar urbano de todos/as e à distribuição mais justa dos equipamentos e serviços públicos nos diversos territórios da cidade.
Olhando para a cidade nestes mais de 35 anos desde a redemocratização do país, enxergamos muitos avanços e conquistas populares da reforma urbana. Questões relativas às políticas urbanas e à democratização da gestão municipal tornaram Porto Alegre referência nacional e internacional, principalmente com o Orçamento Participativo, o funcionamento dos Conselhos populares e do Congresso da Cidade. A cidadania em geral e as classes trabalhadoras e populares foram incluídas na gestão pública, consagrando inovações democráticas com efeitos positivos na produção coletiva da cidade. No rol desses avanços, entretanto, ficaram evidentes os limites para implementar políticas mais profundas e eficazes de alteração da lógica de ocupação e uso dos espaços urbanos e de propriedade da terra. Dentre os déficits destaca-se a diminuta importância dada pela ação estatal às políticas de regularização fundiária e de construção habitacional, que possibilitassem o acesso a terra e a habitação, uma das maiores reivindicações das comunidades.
Democratizar as decisões sobre as prioridades orçamentárias e os conteúdos das políticas públicas setoriais locais é, sem dúvida, estratégico na busca de cidades mais justas e sustentáveis. Mas tornam-se insuficientes para incidir na lógica permanente de produção das desigualdades socioespaciais que caracteriza nosso modelo de desenvolvimento, altamente concentrador de renda, de riquezas e de acesso seletivo ao bem-estar. Assim, ficaram evidentes os limites da participação social fragmentada, com a pouca articulação entre as instituições que constituem a ampla e diversificada rede participativa da democracia local. Dimensões essas que também esbarraram nos limites postos pela estrutura administrativa estatal, ainda demasiadamente centralizada e burocrática.
Entretanto, não há dúvidas que nesse período os diversos movimentos sociais e associativos tornaram-se sujeitos da democracia local. A sua ação a partir de um repertório diversificado, por vezes de contestação, por vezes de colaboração com o poder público, foi fundamental para muitas conquistas, porém com dificuldades para uma ação independente e capaz de articular melhor as comunidades na defesa de suas conquistas. O que foi evidenciado a partir de meados dos anos 2000, quando os ventos políticos mudaram (para pior).
As oportunidades criadas nesse ciclo foram progressivamente modificadas e se tornaram cada vez mais desfavoráveis à reforma urbana. A transição para um regime urbano de tipo empreendedorista e de city marketing ocorreu com a virada política neoliberal, de caráter autoritário, principalmente a partir das gestões dos prefeitos Marchezan e Melo. As medidas destes governos resultaram na privatização dos espaços e serviços por meio de políticas de terceirização e de concessões. Podemos dizer que foi implantada uma “antirreforma urbana” do neoliberalismo autoritário, que corresponde à desdemocratização da cidade, levando a retrocessos em todos os sentidos.
É sobre esse processo que trata este livro. Ele encerra um ciclo, com resultados de pesquisa e reflexões críticas sobre temas importantes na pauta da reforma urbana, e inaugura um novo, orientado por princípios e abordagens mais ajustados ao atual contexto político e econômico que se impõe. Nesse sentido é importante apontar a concepção de direito à cidade proposta pelo Observatório das Metrópoles, constituindo-se em um programa ético-político que pode orientar as políticas públicas e as lutas sociais em geral, a partir do fundamento da produção, uso e apropriação da cidade, não mais submetida integralmente à lógica do mercado, mas orientada ao bem comum.
Nessa perspectiva, a reforma urbana deve apontar para as seguintes questões no contexto em que vivemos:
a) as fragilidades institucionais que o modelo neoliberal oferece à gestão democrática e participativa da cidade, ao mesmo tempo em que movimentos e organizações sociais se fortalecem com experiências que ensinam;
b) a desigualdade resultante da distribuição da renda urbana e da terra na cidade, fomentando a especulação imobiliária e o interesse de grandes construtoras;
c) a mercantilização da regulação pública da produção do espaço urbano construído;
d) priorização, por parte do Estado, em alocar recursos públicos na manutenção do modelo da cidade desigual e injusta das nossas cidades, principalmente as metrópoles;
e) difusão e preferência por destinação de oportunidades em perspectiva meritocrática e excludente, dificultando o acesso de muitos atores que participam da construção coletiva da cidade.
O livro é composto de dez capítulos com temas como desigualdades e bem-estar urbano, habitação, ajustes regulatórios pró-mercado, mobilidade urbana, financiamento de campanhas eleitorais, participação e contrarreforma urbana, plano diretor, reivindicações e lutas urbanas e mobilizações comunitárias contra a fome.
Nas conclusões apresentamos algumas propostas para pensar o futuro, a partir de contribuições dos pesquisadores do Núcleo, movimentos sociais e sociedade civil, que foram reunidos no Fórum Local realizado em agosto deste ano, refletindo sobre a possibilidade de uma instituinte do Direito à Cidade e de um novo horizonte para a Reforma Urbana na cidade, articulado com os grandes temas nacionais da política urbana, que agora, a partir do resultado da eleição presidencial, apontam para a possibilidade de reconstrução de nossas cidades em outra perspectiva.
* Este artigo é uma versão resumida da introdução do livro.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko