Precisaremos, todos, ser mais do que somos, nos gritos de apoio e confiança
Esta semana acompanhei atividades da Rede Irerê de Proteção à Ciência e o pouco que consegui assistir do 13º Congresso da Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco. O tema era vasto: Na Irerê, a construção e proteção de fontes de conhecimentos de base científica (não limitada ao escopo acadêmico) e na Abrasco, a Saúde e a Democracia: diversidade, equidade e justiça social e saúde.
Com isso, me vi cercado por vetores apontando para dezenas de temas e oportunidades de acesso a elementos de esclarecimento e de conscientização, sobre uma noção muito ampla de saúde. Coisa multidimensional, com várias arestas e pelo menos um eixo de ligação: aquele que diz tudo e todos dependerem do equilíbrio ecossistêmico (saúde ambiental, saúde eco social, saúde interrelacional). Enfim, uma só saúde ou seu oposto, avançando desde as áreas mais descuidadas e fragilizadas, para o todo. Como o aquecimento global, que afeta primeiro a alguns, mas que, com a normalização do drama daqueles, basta dar tempo ao tempo para que ninguém escape.
Coisa de fato complicada.
Mais ainda se percebermos o contexto assustador das expectativas crescentes (com a eleição de Lula) e as injustiças abissais que caracterizam nossa sociedade em esfacelamento.
Desde o golpe de 2016, mas em galope acelerado ao longo do período de enxofre onde estivemos à mercê daquele presidente que implantou a mentira como estratégia de governo, constatamos o avanço do pior. E parece que nos acostumamos com a ideia de que aqui tudo de ruim pode acontecer. E com a internalização geral deste clima, aos poucos se tornou evidente que podemos até mesmo naturalizar seus efeitos. E são tantos, que já não há como listar. Faltam palavras e os superlativos perdem significação.
Negacionismo, ecocídio, genocídio, fascismo, perversões diversas e coisas tantas envolvendo a degeneração da saúde coletiva nacional, que os ordenamentos de prioridade carecem de sentido e sequer cabem hierarquias. O tecido social apodrece. E isso aparece, desde no mais simples, onde se tornou comum desrespeitar o que seria básico (a exemplo do cuidado com crianças e idosos da própria família), até na completa e sofisticada desregulamentação de normas fundantes do contrato social que nos une.
Vejam o que se passa, por exemplo, com o ataque a valores éticos e à subjetividade de nosso povo, através da abusiva veiculação de metáforas que se destinam a favorecer interesses de grupos crescentemente beneficiados pela destruição dos direitos sociais. Coisa simples de fazer? Não. Mas eles conseguem. E resulta fácil de perceber que isso está ocorrendo quando a sociedade repete, sem pensar, que os indígenas não merecem tanto espaço, que os agrotóxicos salvam vidas, que os comunistas ameaçam o futuro da Pátria, que as instituições públicas são antro de incompetência e corrupção, etc.
De onde isso vem?
Seria de ampla articulação entre ações empresariais com influência sobre um governo irresponsável e com apoio de manipulações midiáticas orientadas à criação de apatia popular pela repetição de bobagens e pela ocultação (ou distorção) de questões cruciais, bem como pela criminalização daqueles que contra elas se insurgem?
Pois é o que parece.
As disputas sadias por projetos de vida e nação deixam de existir quando a assimetria de forças, atuando massivamente em favor da ignorância, tende a anular e certamente desencoraja a emergência de focos de lucidez. Basta lembrar que as fantasias de sucesso no combate à covid, na geração de empregos, no controle de queimadas e em realizações diversas que manteriam o povo alegre, otimista e feliz, ilustrativas do ataque ao imaginário popular, quase reelegeram o fascista especializado em matar.
Com o controle deste tipo de filtros desenhou-se um mundo irreal, elaborado a partir de propagandas enganosas, desprezando o fato de que isso (ilusões no espaço das subjetividades) ainda que retarde a consciência social do drama, não invalida seus fundamentos: mesmo que muitos a neguem, há, sempre houve e sempre haverá, estreita interdependência entre o ambiente e as relações eco sociais. O descasamento repentino, brutal como tem sido a regra, ou até gradativo, disfarçado e quase amistoso, entre estas, sempre traz o caos.
O que se observa, portanto, não passa da sinalização indicativa de que vivenciamos ecologias tão degradadas, no urbano, no rural e no plano espiritual, que já está comprometida a possibilidade de recuperação da saúde como um todo. Desencadeou-se algo que esmaece a saúde do país e alimenta ilusões de que se faz necessário o abandono de formas de existir, justificando seu descarte, como folhas secas de árvores mortas ao longo do Rio Doce, no crime de Brumadinho.
Percebe-se, enfim, que a recuperação do Estado dependerá de um bem sucedido saneamento das ilusões subjetivas, das crenças do povo, bem como da reconstrução de sua confiança (do povo) na capacidade operativa das instituições públicas necessárias à reorganização de uma sociedade includente, habilitada a avançar rumo aos objetivos que trouxeram Lula ao governo. Será necessário que acordos e pactos sociais estabelecidos democraticamente venham a ser cobrados com ênfase nas ruas, e respeitado pelos poderes constitucionais.
Daí a importância de a sociedade contribuir para a transição governamental. Existirão parâmetros inegociáveis. Também haverá uma avalanche de demandas ligadas a necessidades reais, desejos subjetivos, setoriais, e ilusões criadas por fantasias midiáticas. Por isso, se fazem justificadas as preocupações com o escasso tempo e a limitação de recursos com que se defrontará o governo que assume em 2023.
E estes são apenas alguns dos detalhes que se referem ao porvir. No que já passou, Inês é morta e basta que não ocorra uma anistia geral ao que isso significa, para que avancemos. Uma vez que com o presidente podre apodreceram várias instituições e parte da sociedade, isso deve ser esclarecido, recuperado onde possível, e punido onde necessário. Com a subjetividade do povo contaminada em relação a isso, aqueles muitos que batem no peito amarelo e gritam suas preferências pelo caos à reconstituição da democracia, também devem ser desmascarados com esclarecimento geral, ao povo, dos interesses a que estão servindo.
Já no que respeita ao futuro, temos que observar a recidiva daqueles problemas nas cordas vocais do Lula, o gesto de Geraldo Alckmin escrevendo carta amiga ao brasileiro indicado pelo presidente que mente à presidência do BID, e que lá assume com apoio de entidades associadas ao que se passou entre nós no período de trevas, bem como o que se passa na equipe de transição. O que chega até aquela equipe, por mãos de quem lá chega, e que tipos de tratamentos cada tema recebe?
E, sendo evidente que tudo se relaciona tanto à síndrome nacional dos vices em ascensão, como às dificuldades das equipes de transição com computadores formatados e outros que tais, precisamos abrir o olho para discursos que recentemente passaram a ser repetidos à náusea: economia verde, novas biotecnologias de precisão, alimentos fortificados, e outras novidades.
Afinal, a perspectiva de saúde ecossistêmica, global, é coisa tão complexa que não pode ser delegada exclusivamente a grupos de representação claramente sob ameaça de contaminação. Ela exige nossa atenção e empenho de participação direta nas instâncias onde estão sendo debatidos os caminhos para o futuro do país. Precisamos mais do que não soltar as mãos e entrecruzar os braços, formando barreira que não deixe vazar as esperanças do Brasil. Precisamos encarar a realidade. Entender que o tempo da inocência acabou.
Agora são insuficientes a generosidade, o otimismo, a qualidade, a seriedade e a competência dos nossos.
Precisaremos, todos, ser mais do que somos, nos gritos de apoio e confiança, mas também no acompanhamento do que cabe aos nossos e dos limites onde não lhes será permitido transigir, neste momento de disputa. Ou não vai funcionar. Vejam o que aconteceu com os argentinos e os alemães, nos jogos desta semana.
Venceram os mais fracos, porque estavam atentos e porque, em verdade e na hora dos fatos, acreditaram que podiam, e se fizeram mais fortes.
Nesta hora, mais do que nunca, será preciso ser atento e forte.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko