Rio Grande do Sul

Coluna

Das “Mariposas” a Marielle: um problema de (des)memória?

Imagem de perfil do Colunistaesd
"Assembleia Geral da ONU instituiu, em 1999, a data de 25 de novembro como o Dia Internacional de Combate à Violência Contra a Mulher" - Foto: Pixabay
Que parcela da sociedade brasileira está interessada em saber o significado do dia 25 de novembro?

Em 25 de novembro de 1960, Minerva, Patria e Maria Tereza, as irmãs Mirabal, foram brutalmente assassinadas na República Dominicana. Sabe-se que a população ficou aterrorizada pelo assassinato das irmãs, e sentia medo, mesmo as pessoas mais próximas ao Regime, o que resultou na queda do ditador Rafael Trujillo, contra quem elas lutavam e que fora o mandante do crime.

“As mariposas” (borboletas), como foram chamadas, desde então transformaram-se em ícones das lutas feministas, especialmente depois que a Assembleia Geral da ONU instituiu, em 1999, a data como o Dia Internacional de Combate à Violência Contra a Mulher.

Que parcela da sociedade brasileira estaria hoje interessada em saber o significado desta data?

Será que em nosso país a violência contra a mulher produz medo, horror e revolta, para além dos círculos de pessoas engajadas nesta luta?

Lembro que em 2019, no dia 25 de novembro, vários grupos de feministas estavam reunidos no centro de Porto Alegre protestando e a multidão de pessoas que passava, notadamente de mulheres, sequer olhava para o lado para saber do que se tratava.

Poucas semanas depois, organizei com uma amiga a performance “Um estuprador no teu caminho”, no Parque Farroupilha, e apenas uma mulher externa aos movimentos de luta veio juntar-se a nós. Das quase 300 que éramos, apenas ela saiu da apatia das passantes e ocupou seu lugar de fala e de revolta.

Uma importante amostra da falta de inteligência da sociedade quanto a este problema me parece se situar no assassinato de Marielle Franco, ocorrido em 14 de março de 2018. É certo que existe uma maciça movimentação política, assim como dos movimentos engajados nos direitos humanos e no combate à violência contra a mulher, no sentido de pressionar o poder público a esclarecer o crime atroz, insistindo na questão de saber quem foi o mandante.

Mas será que a população em geral se coloca questões quanto a isso?

Marielle era cria da favela da Maré, no Rio de Janeiro. Defensora dos direitos humanos, mulher LGBT, negra, irmã, mãe e esposa, além de ser socióloga e vereadora do Rio de Janeiro. Incansável lutadora contra a violência de Estado e contra as manobras sórdidas do poder público que produzem efeitos destruidores na população mais vulnerável, teria ela sido executada para que finalmente silenciasse? A quem interessaria sua morte?

Enfim, resta ainda saber qual é a fatia da população do país que pelo menos tem lembrança deste crime. Será que não seria importante que algum dia fosse instituída a data do seu assassinato, junto com seu motorista Anderson, como o dia nacional de combate à violência contra a mulher?

O Brasil talvez produzisse algum efeito de memória na sua sociedade, se marcasse este acontecimento para todes. Quem sabe assim ela se sentiria mais concernida pelas estatísticas alarmantes que a cada ano nos informam o quanto nossas vidas estão sempre por um fio.

Cabe lembrar aqui que em 2021, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (relatório de 7/03/22), o Brasil registrou um estupro a cada 10 minutos, um feminicídio a cada 7 horas, e um ato de violência contra a mulher a cada 8 minutos. Em 2022, segundo o mesmo Fórum, (notícia de 19/11/22), o feminicídio teve um aumento de 176% entre janeiro e outubro, em relação ao mesmo período de 2021, o que nos deixa supor que não será muito diferente para o estupro e a violência.

E quem são essas mulheres? 

São aquelas que não vemos nem ouvimos, cuja existência desconhecemos, mesmo que estejam pelas ruas da cidade nos pedindo ajuda, e das quais sistematicamente desviamos e esquecemos. Agimos como se cada uma delas não carregasse consigo a precariedade da nossa própria existência, da qual nada queremos saber.

De quantas Marielles vamos precisar para sairmos da afasia social em que estamos e lembrar, como os dominicanos de 1960, do quanto estamos implicadas em cada violência, em cada feminicídio? Basta!

* Rosane Pereira, Psicanalista e escritora, autora de “Mulheres Esquecidas”(Editora Bestiário- 2022), entre outros, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre-APPOA, e Presidente da Associação Projeto Gradiva – atendimento clínico psicanalítico a mulheres em situação de violência. E-mail [email protected]

* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko