O livro "E se a periferia fosse o centro?", escrito por alunos da Escola Municipal de Ensino Fundamental Saint Hilaire, do bairro Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre, foi lançado na tarde desta quinta-feira (10) em evento no colégio com a presença dos estudantes. Poética e reflexiva, a obra é uma antologia de histórias que retratam a realidade periférica da Capital a partir do olhar dos corpos que a vivenciam.
Reunindo diferentes gêneros discursivos, o livro é assinado por 90 autores, de 13 a 65 anos, dos anos finais do Ensino Fundamental e da modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA). Em cartas, poemas e crônicas, há depoimentos intimistas sobre os tempos da pandemia de covid-19, abandono escolar, violência contra mulher e racismo. Mas também contém registros de afetividade entre aqueles que, apesar de tudo, brincam, se divertem, ensinam e aprendem.
Thayla Rodrigues Feijó, aluna do 9º ano, conta se sentir orgulhosa. "Eu tô muito feliz por ver esse livro, poder dizer que ele é meu e perceber que eu me tornei uma autora." No livro, ao falar sobre seus sonhos, em particular, o de ser chefe de cozinha, ela relata uma situação em que foi vítima de racismo em um restaurante.
Para Rejane Mendes Trindade, aluna da EJA, escrever foi uma das formas de reafirmar a sua existência. "Quando eu parei [de estudar], eu tive a sensação de ter parado com tudo. O meu voltar me fez perceber que nunca é tarde para o saber. A cada texto que eu entregava, e os professores elogiavam, era muito gratificante. Eu pensava: 'Nossa, eu ainda sou capaz de estudar e de aprender!'." Autora de "É preciso manter a esperança viva!", umas das crônicas contidas no livro, Rejane narra o seu reencontro com a escola.
Uma Porto Alegre invisível
Com 124 páginas, o livro foi desenvolvido nas aulas do professor de História e Filosofia Marco Mello. "A gente quer muito repensar a nossa cidade a partir das nossas periferias. E esse livro faz pensar justamente nas nossas comunidades", comenta o professor.
A iniciativa nasceu a partir do Coletivo de Professores de História (CPHIS) da rede municipal de ensino da Capital em parceria com a Associação dos Trabalhadores/as em Educação do Município de Porto Alegre (Atempa) e movimentos sociais que fazem parte do projeto POAncestral – Muito além de 250.
De acordo com Mello, em meio às comemorações do aniversário de Porto Alegre, a obra busca contrapor o pensamento ufanista, eurocêntrico e descontextualizado que historicamente atravessa a memória da cidade. O e-book de "E se a periferia fosse o centro?" será disponibilizado de forma gratuita para acesso e download nas redes sociais da Escola Saint Hilaire.
O prefácio da obra é do astrofísico Alan Alves Brito, pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Física e em Ensino de Física e no Núcleo de Estudos Afro-Brasileiro, Indígenas e Africanos da UFRGS. Dedicado a estudar questões decoloniais, étnico-raciais, de gênero e suas intersecções nas ciências exatas, ele destaca a importância de uma educação de qualidade acessível para todos.
"Eu estudei a minha vida toda em escola pública e também venho da periferia. Para mim, a escola foi de fato um lugar importante de empoderamento, de possibilidades e de realização de sonhos. Agradeço imensamente a possibilidade de escrever. E eu escrevo com o objetivo de que cada estudante da escola pública, sobretudo da periferia, cada menina e menino negros e pobres se enxerguem nesse lugar de possibilidades", conta Alan.
Leia o prefácio de "E se a periferia fosse o centro?"
"O livro 'E se a periferia fosse o centro?' é um convite à resistência e à organização política para que coletivamente possamos construir outras narrativas sobre o eu, o outro e os espaços geográficos que nos constituem e nos hierarquizam entre a periferia e o centro. Tal qual o Uni-verso é homogêneo e isotrópico, a periferia está em toda parte e, o centro, é apenas uma especulação geométrica, uma reverberação e um ponto de vista cultural e sistêmico da periferia que se propaga no espaço-tempo.
Poético, o livro é histórico, filosófico e belo, porque é forjado nos corações e mentes esperançosos de adolescentes, jovens e adultos que, do chão da escola Saint Hilaire na Lomba do Pinheiro, vivenciam com criticidade a flecha do tempo, conscientes politicamente de que não há mais tempo: será preciso adiar o fim do mundo e, para isso, as vozes da periferia precisam ser ouvidas e, os seus pensamentos, potencializados, entendendo a periferia como um espaço geográfico marcado não apenas pelo distanciamento material mas, também, simbólico do centro."
– Alan Alves Brito, pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Física e em Ensino de Física e no Núcleo de Estudos Afro-Brasileiro, Indígenas e Africanos da UFRGS.
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Edição: Marcelo Ferreira