Rio Grande do Sul

LITERATURA

Alunos de escola na Lomba do Pinheiro lançam o livro "E se a periferia fosse o centro?"

Obra traz o cotidiano de quem vive uma Porto Alegre periférica e reflete sobre as distâncias geográficas e simbólicas

Brasil de Fato | Porto Alegre |
O livro é assinado por 90 autores, de 13 a 65 anos, dos anos finais do Ensino Fundamental e da modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA) - Foto: Mateus Bruxel

O livro "E se a periferia fosse o centro?", escrito por alunos da Escola Municipal de Ensino Fundamental Saint Hilaire, do bairro Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre, foi lançado na tarde desta quinta-feira (10) em evento no colégio com a presença dos estudantes. Poética e reflexiva, a obra é uma antologia de histórias que retratam a realidade periférica da Capital a partir do olhar dos corpos que a vivenciam. 

Reunindo diferentes gêneros discursivos, o livro é assinado por 90 autores, de 13 a 65 anos, dos anos finais do Ensino Fundamental e da modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA). Em cartas, poemas e crônicas, há depoimentos intimistas sobre os tempos da pandemia de covid-19, abandono escolar, violência contra mulher e racismo. Mas também contém registros de afetividade entre aqueles que, apesar de tudo, brincam, se divertem, ensinam e aprendem. 

Thayla Rodrigues Feijó, aluna do 9º ano, conta se sentir orgulhosa. "Eu tô muito feliz por ver esse livro, poder dizer que ele é meu e perceber que eu me tornei uma autora." No livro, ao falar sobre seus sonhos, em particular, o de ser chefe de cozinha, ela relata uma situação em que foi vítima de racismo em um restaurante. 


Poética e reflexiva, a obra reúne histórias que retratam a realidade periférica da Capital a partir do olhar dos corpos que a vivenciam / Foto: Mateus Bruxel

Para Rejane Mendes Trindade, aluna da EJA, escrever foi uma das formas de reafirmar a sua existência. "Quando eu parei [de estudar], eu tive a sensação de ter parado com tudo. O meu voltar me fez perceber que nunca é tarde para o saber. A cada texto que eu entregava, e os professores elogiavam, era muito gratificante. Eu pensava: 'Nossa, eu ainda sou capaz de estudar e de aprender!'." Autora de "É preciso manter a esperança viva!", umas das crônicas contidas no livro, Rejane narra o seu reencontro com a escola. 

Uma Porto Alegre invisível

Com 124 páginas, o livro foi desenvolvido nas aulas do professor de História e Filosofia Marco Mello. "A gente quer muito repensar a nossa cidade a partir das nossas periferias. E esse livro faz pensar justamente nas nossas comunidades", comenta o professor.

A iniciativa nasceu a partir do Coletivo de Professores de História (CPHIS) da rede municipal de ensino da Capital em parceria com a Associação dos Trabalhadores/as em Educação do Município de Porto Alegre (Atempa) e movimentos sociais que fazem parte do projeto POAncestral – Muito além de 250. 

De acordo com Mello, em meio às comemorações do aniversário de Porto Alegre, a obra busca contrapor o pensamento ufanista, eurocêntrico e descontextualizado que historicamente atravessa a memória da cidade. O e-book de "E se a periferia fosse o centro?" será disponibilizado de forma gratuita para acesso e download nas redes sociais da Escola Saint Hilaire.

O prefácio da obra é do astrofísico Alan Alves Brito, pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Física e em Ensino de Física e no Núcleo de Estudos Afro-Brasileiro, Indígenas e Africanos da UFRGS. Dedicado a estudar questões decoloniais, étnico-raciais, de gênero e suas intersecções nas ciências exatas, ele destaca a importância de uma educação de qualidade acessível para todos. 


Alan Alves Brito, pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Física e em Ensino de Física e no Núcleo de Estudos Afro-Brasileiro, Indígenas e Africanos da UFRGS / Foto: André Feltes

"Eu estudei a minha vida toda em escola pública e também venho da periferia. Para mim, a escola foi de fato um lugar importante de empoderamento, de possibilidades e de realização de sonhos. Agradeço imensamente a possibilidade de escrever. E eu escrevo com o objetivo de que cada estudante da escola pública, sobretudo da periferia, cada menina e menino negros e pobres se enxerguem nesse lugar de possibilidades", conta Alan. 

Leia o prefácio de "E se a periferia fosse o centro?"

"O livro 'E se a periferia fosse o centro?' é um convite à resistência e à organização política para que coletivamente possamos construir outras narrativas sobre o eu, o outro e os espaços geográficos que nos constituem e nos hierarquizam entre a periferia e o centro. Tal qual o Uni-verso é homogêneo e isotrópico, a periferia está em toda parte e, o centro, é apenas uma especulação geométrica, uma reverberação e um ponto de vista cultural e sistêmico da periferia que se propaga no espaço-tempo. 

Poético, o livro é histórico, filosófico e belo, porque é forjado nos corações e mentes esperançosos de adolescentes, jovens e adultos que, do chão da escola Saint Hilaire na Lomba do Pinheiro, vivenciam com criticidade a flecha do tempo, conscientes politicamente de que não há mais tempo: será preciso adiar o fim do mundo e, para isso, as vozes da periferia precisam ser ouvidas e, os seus pensamentos, potencializados, entendendo a periferia como um espaço geográfico marcado não apenas pelo distanciamento material mas, também, simbólico do centro."

– Alan Alves Brito, pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Física e em Ensino de Física e no Núcleo de Estudos Afro-Brasileiro, Indígenas e Africanos da UFRGS.


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Edição: Marcelo Ferreira