A reconstrução e a transformação democrática e popular do Brasil é urgente!
O resultado das eleições presidenciais com a vitória de Luís Inácio Lula da Silva (PT e partidos coligados) representa a possibilidade de retomada da normalidade democrática na condução do governo federal e na relação do Estado com a sociedade civil e os movimentos sociais e populares do país. Tem um significado importante para a América Latina e para o mundo, pois representou uma derrota das forças de extrema direita organizadas internacionalmente, recolocando o Brasil como participante do debate geopolítico internacional, especialmente nas agendas dos direitos humanos, meio ambiente. Para os nossos vizinhos latino-americanos, a soma do Brasil aos países que nos últimos anos têm optado por governos progressistas representa uma nova chance para a unidade do continente e a possibilidade de construção de novos canais de cooperação.
Em nosso país, apesar da força que mantiveram as correntes ultraliberais e autoritárias de extrema direita em setores e territórios da sociedade, a vitória de Lula, em aliança com representantes do campo democrático principalmente no segundo turno, representa a possibilidade de construção de um novo projeto de desenvolvimento e de novas relações entre o Estado e a sociedade, com a participação desta na definição de políticas públicas, especialmente no campo social.
Após a derrota nas eleições municipais dos últimos anos (2016, 2020) e em nível nacional (2018), o crescimento eleitoral de Lula e da esquerda nas metrópoles [1] abre uma brecha para a construção de uma nova hegemonia política na escala municipal em 2024. Esta tarefa não será fácil porque, apesar da vitória de Lula em Porto Alegre, com 53,5% dos votos, no conjunto da Região Metropolitana foram apenas 46,37% dos votos, ou 42,65% se excluirmos a Capital. No primeiro turno Lula venceu em Porto Alegre e mais nove municípios da RMPA, número que foi reduzido a cinco no segundo turno [2]. Nos grandes colégios eleitorais da RMPA a vitória só ocorreu em Viamão e Sapucaia do Sul. Além disso, a extrema direita foi vencedora em municípios importantes do Vale dos Sinos, segundo polo da RMPA.
O olhar metropolitano será importante para o novo governo, no sentido de aglutinar setores sociais para a sua sustentação política e nos embates com a opinião pública, especialmente porque a extrema direita ainda estará presente e atuante, como os acontecimentos pós-eleitorais indicam. A metrópole, enquanto nó estratégico da rede urbana gaúcha, também se constitui em espaço de interlocução com boa parte dos setores fortemente vinculados aos ultraliberais no país e no mundo, como o agronegócio, por exemplo. Neste sentido, os canais de diálogo do Estado com a sociedade e com a economia do RS devem encontrar ali um ambiente aberto para novas articulações, negociações e propostas que atendam aos interesses de todas as regiões, a partir da reconstrução de políticas públicas e do próprio aparato estatal que trata do desenvolvimento metropolitano e regional.
No Brasil, os últimos seis anos (desde 2016) foram de desmonte do Estado e das políticas sociais. No caso da política urbana tivemos a extinção do Ministério das Cidades e o fechamento das instâncias de participação social na área, como o Conselho das Cidades e a respectiva Conferência Nacional. O retrocesso autoritário veio acompanhado do avanço do projeto ultraliberal de privatização, com cortes no orçamento para as políticas públicas, especialmente da política habitacional para populações de baixa renda e excluídos do mercado e a despossessão dos pobres, com o avanço da especulação imobiliária sobre terrenos ocupados por comunidades. Tivemos ainda um conjunto de mudanças institucionais e legais, que apontam para a mercantilização e privatização dos comuns urbanos, como no caso da legislação de regularização fundiária e do novo marco legal do saneamento. Favoreceu-se assim a construção de regimes urbanos pró-mercado e a implantação de projetos ultraliberais nas metrópoles, a exemplo do caso emblemático de Porto Alegre.
Agora é o momento de reconstruir a política urbana. E diante de tantos desmontes nos perguntamos, o que é mais urgente e o que é possível fazer?
Sabemos que o terceiro governo Lula, será de reconstrução e que deverá enfrentar disputas devido a conjuntura desfavorável em termos de correlação de forças no Congresso e em governos estaduais importantes. A possível composição do governo não indica a formação de um ministério “puro sangue” progressista, uma vez que será necessário aglutinar os apoios para a sustentação das políticas governamentais. A negociação política, portanto, é a chave para uma abertura de espaços que se voltem principalmente aos menos favorecidos na sociedade e que foram os mais atingidos pelo atual governo federal.
O fato é que as periferias urbanas votaram em Lula. Ao longo da campanha e, especialmente no segundo turno, houve grande mobilização dos movimentos sociais e populares, dos movimentos culturais, dos povos tradicionais e originários, das mulheres, da juventude, que foram fundamentais na apertada, porém incontestável, vitória. Estes grupos, somados a outros que estiveram na campanha, estarão com o governo, mas que irão cobrar ações efetivas.
Por isso, será necessária uma Política Urbana, voltada aos principais entraves nas nossas metrópoles e cidades médias, que apresentam grandes problemas, agravados pelos anos de políticas neoliberais e de crise socioeconômica. A nova Política Urbana poderá ser articuladora de diferentes políticas setoriais. Entre elas o saneamento básico e a infraestrutura, as moradias em áreas de risco, os graves problemas ambientais, especialmente os recursos hídricos e áreas de proteção ambiental, além do apagão no transporte coletivo. A tudo isso soma-se a exclusão histórica das periferias as oportunidades de educação e cultura.
A Política Habitacional deve ser retomada na ótica do direito à cidade, e não apenas como direito à casa própria, pensando nos setores mais necessitados de moradia das periferias e das ocupações das áreas centrais. É importante considerar as diversas avaliações do Programa Minha Casa Minha Vida, para não repetir os erros e os efeitos negativos em segregação espacial e precariedade do acesso aos bens e serviços que constituem o direito à cidade. A política habitacional deve ser vinculada a uma política de Mobilidade Urbana, que dê prioridade ao transporte coletivo, drasticamente reduzido durante e após a pandemia.
É necessária também uma política específica para as Regiões Metropolitanas, reconhecendo os processos territoriais cada vez mais desiguais de ocupação destas aglomerações. A retomada do Ministério das Cidades é uma oportunidade para o planejamento metropolitano, a partir da cooperação entre as cidades das regiões, como política territorial e como política de desenvolvimento e distribuição de renda. No âmbito local, é importante lembrar que o RS está muito atrasado em relação a outros estados, no que se refere à definição de um Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado para suas regiões metropolitanas, conforme prevê o Estatuto da Metrópole, de 2015.
Também será importante reconstruir a participação social em diferentes escalas de atuação: os conselhos de políticas e de direitos e as conferências nacionais. Sendo a fome uma das principais crises a serem tratadas, principalmente após a pandemia, é necessário trazer os diversos estratos de renda da sociedade para discutir as prioridades. É salutar e fundamental a disposição de Lula durante a campanha eleitoral em construir o Orçamento Participativo em nível nacional. Este seria uma via possível e necessária para democratizar e dar transparência ao processo de alocação justa dos recursos públicos.
É imprescindível inovar em uma agenda democrática que contemple a diversidade considerando os novos engajamentos, como o das mulheres, dos/as negros/as, dos povos originários, da população LGBTQIA+, dos moradores em situação de rua, entre outros, contando ainda com as tradicionais e novas categorias profissionais do novo mundo do trabalho (empreendedores, uberizados, precariado).
A reconstrução nacional da democracia e das políticas públicas, voltadas para o desenvolvimento inclusivo e soberano, pode contar com a rede do Observatório das Metrópoles que realizou nos últimos anos uma série de estudos, pesquisas acadêmicas, e debates com atores da sociedade civil e movimentos organizados. Esta será também nossa ação nos próximos anos, colocando-nos à disposição para todas e todos engajados em um novo projeto de nação. A reconstrução e a transformação democrática e popular do Brasil é urgente!
[1] As cidades com mais de 500 mil habitantes deram 61% de votos a Bolsonaro em 2018. Nestas eleições, 51%. O presidente perdeu 1 milhão de votos nesses municípios, enquanto o petista ganhou 5 milhões em relação ao desempenho de Haddad em 2018. Metrópoles “desbolsonarizam” em 2022 e ajudam na vitória de Lula..
[2] Vitória no primeiro turno: Alvorada, Arroio dos Ratos, Charqueadas, Eldorado do Sul, Esteio, Guaíba, Sapucaia do Sul, São Jerônimo, Viamão. No segundo turno a vitória se repetiu em Arroio dos Ratos, Charqueadas, Sapucaia do Sul, São Jerônimo e Viamão.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko