O governo que tivemos na pandemia foi a prova irrefutável do risco de nossas escolhas políticas

Estamos vivendo uma espécie de surto. Até a eleição, o discurso era de fraude no processo eleitoral e a energia estava canalizada para a manipulação religiosa do processo político. Também multiplicaram-se empregadores que, de forma despudorada, ameaçaram despedir ou reduzir salário, caso determinado candidato não fosse eleito. Com isso, pretenderam forçar suas empregadas e seus empregados a votarem nesse candidato.  Exigiram o uso de camisa amarela, cantaram hinos. Muitas pessoas votaram enroladas na bandeira nacional.

Após a proclamação do resultado, mais surto. Ao lado das tentativas de impedimento de voto durante o dia 30, e das barreiras nas estradas, organizadas previamente, com o uso criminoso do aparato estatal, uma série de manifestações de desespero. Algumas pessoas choraram, gritaram, rezaram apavoradas. Pediram intervenção militar, AI5. Houve um transe patético, provocado pela falsa notícia de prisão do ministro Alexandre de Moraes, em uma praça pública de Porto Alegre.

Cantoria do hino nacional, com a mão em riste, imitando a saudação nazista. Muita violência, que resultou inclusive nas mortes de Pedro Henrique e Luana, em Belo Horizonte. E uma cena emblemática, na qual um cidadão se prende à dianteira de um caminhão, tentando impedir, com seu próprio corpo, que o veículo rompesse um bloqueio de rodovia. O caminhão segue, devagar, enquanto o motorista pede ao manifestante que desça.

Ele não desce, senão após certo percurso. Após a exaustão.

A manipulação religiosa, por si só, não dá conta de explicar o fenômeno. Afinal, se houve jejum, pregação e crença inamovível na vontade de deus, o resultado deveria ser compreendido como expressão dessa mesma vontade. Sob essa perspectiva, seria fácil concluir que deus não quis mais quatro anos de negacionismo, corrupção e violência. Mas não é assim que funciona.

O surto expressa uma tentativa de fugir, de qualquer modo, da realidade. Daí porque é possível pensar em parar um caminhão com a força do corpo. Não se trata apenas da realidade imediata, representada pelo resultado do "jogo" eleitoral que, conforme essa metáfora expressa, funcionou como uma espécie de partida de futebol para tantas pessoas. Não se trata de parar o caminhão. Pessoas entrevistadas durante esses atos disseram que estavam ali para salvar o Brasil, mas não sabiam sequer explicar do que ou como.

O colapso mental que provoca atos desvairados como os que acompanhamos nos últimos dias é resultado de um processo histórico de desajuste que vem se explicitando de forma cada vez mais nítida. Se até pouco tempo falar de sexualidade era tabu; as pessoas negras e pobres não ocupavam posições de poder nem estavam nos bancos das universidades e o feminicídio era "perdoado" com o discurso de legítima defesa da honra, hoje a realidade é diversa. Não se trata de superação do capacitismo, do racismo ou do machismo; longe disso! Mas avançamos, sem dúvida.

O processo histórico de superação desses mitos está em curso.

E é justamente esse o desajuste que evoca discursos em que pátria, família e propriedade viram mantras, inclusive para quem não tem afetos, trabalho ou casa decente para viver. O medo de quem até então fingia que estava a salvo, por performar o modelo universal de sujeito, não foi desencadeado apenas pela visibilidade que a diferença conseguiu alcançar. Houve, ainda, uma aposta deliberada na barbárie, através da desconstrução de conquistas sociais, com o teto de gastos, a "reforma" trabalhista, o desmanche do sistema de seguridade social, entre outras tantas medidas de destruição do tecido de proteção social que é, no limite, a condição para a reprodução da sociabilidade, mesmo - ou sobretudo - sob a lógica excludente do capital.

A pandemia, por sua vez, foi a demonstração irrefutável da insustentabilidade desse modelo para todas as pessoas, mesmo as ricas, brancas, heterossexuais, crentes. Mas a pandemia não nos encontrou em um momento de paz e tranquilidade, quando tudo ia muito bem. Ao contrário, foi nesse cenário catastrófico de aposta na barbárie que a covid-19 aportou no Brasil. Um país que ainda não acertou as contas com a violência da escravização, nem responsabilizou os torturadores. Um país que figura entre os de maior desigualdade social, entre os que mais matam pessoas LGBTQIA+, e que para além do desmanche das poucas conquistas sociais, já havia embarcado na aposta cínica de um governo que de algum modo personifica esses males.

Alguém que, com discurso racista, LGBTfóbico, capacitista, armamentista e machista, elogiou publicamente um torturador. Foi justamente esse o sujeito que - sustentado por tantas outras pessoas - em plena pandemia, imitou a falta de ar, debochando das vítimas e de seus familiares, enquanto boicotava de modo criminoso todas as medidas válidas para a contenção da doença e de seus efeitos mais perversos. Sintomático que, à época, seus seguidores gritassem - em coro com o líder - que a economia não podia parar. E que, com o resultado das eleições, tenham sido mobilizados exatamente para parar a economia, promovendo o fechamento das estradas.

Não há como exigir coerência, porque o surto não se dá no plano da racionalização do comportamento. Está ligado aos afetos: insegurança, medo, pânico. Cristalizados na figura retórica e fantasiosa do comunismo, esses sentimentos são reais e profundos. Foram agravados com a experiência traumática de uma pandemia vivida em meio ao pandemônio, como descreve o amigo Ricardo Antunes em um de seus textos.

O que vivemos hoje pode então ser compreendido como uma catarse: a purgação das paixões, do sentimento de terror diante de uma realidade com a qual é impossível conviver sem afetar-se. E tem lá a sua lógica. O governo que tivemos durante a pandemia foi a prova irrefutável do risco de nossas escolhas políticas. Votar pode significar sim entregar poder nas mãos de quem não nos quer vivos. A manipulação desses sentimentos reais, canalizando-os para as pessoas negras, indígenas, mulheres, pobres, LGBTQIA+, sob o epíteto fantasmático do comunismo, não é tão difícil quanto pode parecer.

Ao contrário, são esses os corpos que simbólica e concretamente desafiam o falso sentimento de segurança dos "cidadãos de bem”. Somos uma sociedade fundada justamente nessa violência, constituída desde a noção atávica de que há corpos que servem ou outros que devem ser servidos. Portanto, qualquer mudança nessa lógica escravista é compreendida como um perigo. Mais fácil seguir apostando no algoz, transformando-o simbolicamente no salvador da pátria, pois é ele quem promete, ainda que atue em sentido contrário, o retorno à lei e à ordem.

Compreender plenamente esse fenômeno demandará tempo. Mas é urgente lidar com ele. Para isso, não existe resposta. Apenas algumas pistas. Uma delas é o fato de que toda essa história de violência sempre se fundou, no Brasil, em uma política de conciliação. A conciliação que nega o racismo sob o discurso da democracia racial. Nega a opressão, sob o discurso de direitos sociais que podem ser reiteradamente ignorados por práticas e entendimentos que esvaziam o sentido da norma. Nega o sexismo, sob o discurso da privatividade do lar e da igualdade entre homens e mulheres. Nega a discriminação, enquanto segue sendo um dos países que mais mata transexuais no mundo.

Não há, então, como reconstruir o Brasil, desde uma política conciliatória. Percebam: não estou afirmando contrariedade alguma ao diálogo, que é indispensável. Tampouco afirmo que há algo de positivo na divisão gerada em famílias, cujas pessoas têm visões de mundo que se confrontam. Não se trata, ainda, de um discurso contra a construção de políticas conjuntas, sem as quais qualquer governo seria inviabilizado. Apenas gostaria de fazer o registro do meu sentimento profundo de que é um equívoco seguirmos apostando naquilo que nos conduziu até aqui. Não há conciliação possível com a barbárie.

Então, se for para reconstruir a sociabilidade perdida entre a morte de Marielle e a granada de Roberto Jefferson ou a arma em punho de Zambelli, que não seja pela mesma via de fuga da realidade que viabilizou tanta loucura. Do contrário, o passo que demos no último dia 30 não será suficiente para evitar mais e mais sofrimento.

É urgente adotar medidas que nos posicionem em sentido oposto ao do fascismo, cuja força vem sendo demonstrada e, como bem sabemos, ultrapassa a figura de quem hoje ainda ocupa o cargo de presidente da república. Entre elas, impõe-se a revogação integral da “reforma” trabalhista, da “reforma” da previdência e do teto de gastos. E o avanço, no sentido de implementar garantias até hoje ignoradas, como a proteção contra a despedida imotivada. Impõe-se uma aposta radical na educação transformadora, fundada na ética do amor e que, desde muito cedo, discuta com nossas crianças o que significa viver em uma sociedade de trabalho obrigatório.

É preciso, ainda, reconhecer a violência de que fomos alvo, especialmente nos últimos seis anos, e rejeitá-la integralmente. Isso passa pela constituição de uma Comissão da Verdade, como afirmou a Associação Americana de Juristas em nota recentemente lançada. Passa pela identificação e responsabilização de todas as pessoas que contribuíram ativa e passivamente para atingirmos a trágica cifra de 688 mil mortos e quase 35 milhões de pessoas infectadas por covid-19. Daqueles que sustentaram uma política financeirista à custa da miséria de tantos. Dos que apostaram no desmonte das conquistas sociais. Diálogo não é conciliação e, sobretudo, não é esquecimento.

Já erramos tanto, por apostar numa espécie de "deixa disso", que coloca sob o tapete toda a violência de que são alvos sempre e sempre os mesmos corpos. Chega! Não há diálogo possível com quem violenta, com quem mata, estupra, tortura. Não há como contemporizar com quem atua contra a vacinação, libera o uso de veneno na comida, repete que a terra é plana ou invoca deus para justificar agressões, enquanto patrocina grilagem de terra, assassinato, queimadas, chacinas.

A reconstrução no âmbito político terá de passar por alianças, mas é preciso exigir desde logo que nenhuma delas permita o esquecimento e a inação. Se realmente aprendemos muito, como diz a canção de Ivan Lins, da qual tomei emprestado o título deste artigo, tão certo quanto "desesperar jamais" é não esquecer. E não esquecer passa por apurar, registrar, divulgar, retirar da cena pública e responsabilizar quem nos violentou, quem nos agrediu, quem tentou por tantas formas nos eliminar.

"Nada, nada, nada de esquecer

No balanço de perdas e danos

Já tivemos muitos desenganos

Já tivemos muito que chorar

Mas agora acho que chegou a hora

De fazer valer o dito popular

Desesperar, jamais"

(Ivan Lins)

* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko