O projeto é visto como excludente e segregador tanto por seus defensores, quanto por seus opositores
Os processos de concessão de parques e de outros espaços públicos em Porto Alegre andam a passos acelerados, reforçando a lógica neoliberal de cercamento do espaço público para obtenção de lucro privado. O regime de concessão de áreas públicas muda a natureza do bem, priva um lugar do uso que lhe é peculiar - uso público - e lhe impõe regras de uso definidas pela iniciativa privada.
O Parque da Farroupilha, simbólica e carinhosamente apelidado de Redenção, o maior e mais movimentado parque da cidade, com rica e única história e cultura, está seguindo a tramitação para ser concedido de maneira temporária - por 30 longos anos - à iniciativa privada. Uma proposta descabida, que ameaça um espaço tradicional de lazer, cultura, comércio e política da cidade. Descabida, porque o propósito de um parque público não é proporcionar lucro privado, ao contrário do que afirmam os defensores do projeto, que justificam que a motivação da concessão se deve ao fato do Parque ser deficitário. Argumento falacioso que desvia ou esquece da finalidade do parque, que é o de garantir espaço ao esporte, ao lazer e à cultura, melhorando a qualidade de vida da cidade.
A consulta pública, ainda aberta, disponibiliza diversos documentos para análise. Desses, o Caderno de Encargos é um dos principais (aqui), pois é nele que estão previstas as obrigações e as possibilidades abertas ao concessionário. Sobre este documento, cabem alguns apontamentos:
i) embora enfatize o não cercamento do Parque de forma definitiva, o documento permite que o mesmo seja cercado de maneira temporária com a cobrança de ingressos. O documento também é contraditório quando afirma que o Parque terá entradas de acesso livres de cobrança e que serão implantados postos de informação para orientação dos usuários de onde estão as entradas para pedestres. Assim, apesar das reiteradas manifestações do prefeito Sebastião Melo de que o parque não será cercado, o documento estabelece, por sua generalidade e imprecisão, uma dúvida razoável sobre o quão temporário serão esses cercamentos e que acessos serão permitidos na prática.
ii) a realização de eventos e de atividades dentro do parque estará condicionada, ainda segundo o Caderno de Encargos, à autorização do concessionário que, gratia argumentandi, atua no parque para obter lucro. Eventos e atividades que hoje ocorrem de forma espontânea e costumeira no Parque dependerão de autorização do concessionário. Para quem conhece Porto Alegre, tal necessidade de autorização privada implica em prejuízo irreparável ao direito de ir e vir, ao direito de se manifestar, ao direito de usufruir o espaço público da forma que lhe aprouver, ou seja, implica prejuízo à cidadania de Porto Alegre e região metropolitana.
iii) O Caderno de Encargos também torna obrigatória a construção de um garajão subterrâneo com 577 vagas sob o atual parque Ramiro Souto, que abriga a pista de atletismo e campo de futebol. Uma obra que carece de justificativa pública para sua realização, uma vez que já existe um grande número de estacionamentos privados na volta do parque. A proposta também desdenha dos imensos impactos e transtornos que uma obra deste porte provocará na cidade, na vizinhança imediata e nos frequentadores do parque. Mais grave, por estar incluído no perímetro de interface de intervenção do Plano Diretor do Centro Histórico, o Projeto Especial de Segundo Grau do Garajão estará dispensado de realizar as necessárias medidas para minimizar o impacto urbano do projeto.
Dada a gravidade, extensão e profundidade da proposição de concessão da Redenção, um movimento espontâneo de revolta e indignação começou a tomar corpo na cidade. O Coletivo Preserva Redenção surgiu desta insatisfação. O Coletivo lançou uma carta denúncia que pode ser lida em sua totalidade aqui e um abaixo assinado físico e outro virtual para impedir que o espaço público da Redenção seja concedido. A partir dessas manifestações iniciais, uma grande quantidade de coletivos e organizações da sociedade civil - com destaque para a seccional do IAB/RS por seu aporte técnico à contestação do projeto - se uniram à preservação do parque como área pública. Evidente a necessidade de serviços de manutenção do parque, tais como, sinalização, mobiliário urbano, adequação do calçamento incluindo o piso podotátil, adequação dos sanitários, preservação e conservação dos monumentos e prédios existentes, entre outros, no entanto para realizar tais tarefas não é necessário privatizar o parque. O Paço Municipal tem orçamento para executar os serviços mencionados - inclusive porque já existem espaços concedidos dentro do parque, como é o caso do Mercado do Bom Fim, Refúgio do Lago, entre outros.
O projeto é visto como excludente e segregador tanto por seus defensores, quanto por seus opositores. Em recente declaração, a secretária de parcerias do Município, Ana Pellini, afirmou que “a concessão irá qualificar os frequentadores do parque”, numa clara alusão às restrições que serão impostas àqueles que frequentam gratuitamente ou trabalham no parque e que não poderão lá permanecer ou atuar após o início do regime de concessão.
A proposta de concessão apresentada é muito grave, pois afetará diretamente a qualidade de vida, o bem-estar e a subsistência de milhares de pessoas, além de deturpar o patrimônio histórico, cultural e imaterial da cidade. É preciso que este projeto de concessão seja interrompido e isto somente ocorrerá com a mobilização da população, que tem sido ultimamente alijada da decisão sobre os usos e finalidades do espaço público.
Finalmente, a luta pela preservação e conservação une conservadores e progressistas em Porto Alegre. A rejeição à Concessão da Redenção une diferenças! A rede Observatório das Metrópoles, núcleo regional do Rio Grande do Sul, está atenta a mais este desafio metropolitano, em suas diversas dimensões, sejam elas a econômica, social ou urbanística.
* Fabian Scholze Domingues, professor da Faculdade de Economia da UFRGS e pesquisador do Observatório das Metrópoles; Maria Dalila Bohrer, Arquiteta e Urbanista, membra da Comissão Cidades do IAB/RS.
** Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko