As armas, as lâminas e os punhos fechados apontam para as nossas existências
Este é o sexto texto de uma série de escritos a partir do encontro entre uma escutadora e uma sobrevivente de feminicídio, cujos vínculos se deram a partir do programa de extensão Clínica Feminista na Perspectiva da Interseccionalidade da UFRGS.
Nas últimas eleições presidenciais deste país, o homem com quem tive três filhos disse “vou votar em Bolsonaro por ele ser a favor do armamento”. Dois anos e meio depois e nenhuma pensão paga, fui atacada por ele a golpes de facão, na saída do trabalho, aguardando o ônibus pela manhã. As sequelas são físicas e psicológicas: perdi permanentemente o movimento de uma das mãos, dois dedos quase foram extirpados, e hoje sou uma mulher com deficiência aguardando que o Estado reconheça tal condição.
Embora não fosse uma arma de fogo, ele estava munido da certeza da impunidade. Assim como ficou impune, no mesmo ano de 2017, o homem que perseguiu a outra autora deste texto, pela avenida Osvaldo Aranha, no centro de Porto Alegre, numa quarta-feira de outono pela hora do almoço. Aos gritos, ele dizia “vou te matar sua lésbica, se eu tivesse uma arma, metia um tiro no meio da sua cabeça”. O segurança da farmácia e um vendedor ambulante, testemunhas das ameaças, diante da cena, apenas riram.
Enquanto escrevemos este texto, soubemos que uma jovem mulher foi morta por asfixia e agressões físicas, e encontrada com sua filha de dois anos dormindo sobre seu corpo. A mãe encontrou a filha e a neta após a própria mãe do assassino, pai da criança e foragido, avisá-la sobre uma briga do casal. A vítima tinha ainda mais duas crianças.
Ambas as autoras deste texto são profissionais de Saúde, conhecemos nosso campo de atuação, cada qual com sua expertise. Ao contrário da pandemia de H1N1 em 2009, quando as vacinas foram disponibilizadas ao final daquele mesmo ano, tendo como primeiro grupo prioritário trabalhadores da assistência direta à Saúde, em 2020 observamos o inverso: a proibição de uso de equipamentos de proteção individual em um primeiro momento para conter gastos; a negligência com insumos hospitalares de primeira necessidade; as vacinas que demoraram um ano para chegar, por recusa do governo em adquiri-las sem o pagamento de propina.
E tão vertiginosa quanto a pandemia da covid-19 foi a escalada de violências estruturais, dentre as quais a violência de gênero, o racismo e o terricídio. Chegam a nós os relatos de mulheres sendo ameaçadas por seus companheiros caso não votem no candidato cuja fama já era ser um péssimo militar ainda na ditadura.
O que vivemos ao longo dos quatro últimos anos resulta das condições sociais forjadas no contexto do bolsonarismo, fenômeno que conseguiu amplificar e disseminar posturas retrógradas e de constante incitação ao crime através das mais sofisticadas e populares ferramentas de tecnologia em comunicação. A máquina de guerra bolsonarista consiste na múltipla fabricação de pobrezas, das materiais às simbólicas e espirituais, na institucionalização da tortura tornada espetáculo através da indiferença.
Vítimas da violência patriarcal, em especial sobreviventes de feminicídio, conhecem bem os efeitos cáusticos da combinação entre indiferença e impunidade, negligência e omissão. Se, por um lado, mulheres e identidades subalternizadas em situação de vulnerabilidade e violência doméstica morrem em maior percentual por ferimentos de “armas brancas” (atente ao racismo contido nessa expressão), sabe-se que o acesso facilitado a armas de fogo de maior calibre pelo atual presidente representou maior letalidade e influencia negativamente a ocorrência de violência psicológica. Nós vimos isso acontecer, nós vivemos e testemunhamos cotidianamente e as estatísticas provam essa realidade.
Sabendo que as armas, as lâminas e os punhos fechados apontam para as nossas existências, nos perguntamos se quem diz anular o voto como posição política válida já pensou sobre o risco real que sofrem as mulheres de serem assassinadas. Sua mãe, sua irmã, sua prima, sua vizinha, sua filha. Pensem nisso quando forem votar.
Assim como cada memória, cada cicatriz do meu corpo também é política.
* Thaís Hipólito, em diálogo com Lara Werner.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko