Rio Grande do Sul

Fé e Política

Budistas divulgam carta em defesa da vida e da democracia

Brasil de Fato RS conversou com monge Seikaku sobre o documento que alerta para os riscos de um 2º mandato de Bolsonaro

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Monge Seikaku (esq.) ao lado do Lama Samten (dir.) - Foto: Zé Paiva/Vista Imagens

O movimento budista do Rio Grande do Sul divulgou, na noite desta segunda-feira (24), a “Carta Fé na Democracia”. O documento teve a iniciativa do Lama Padma Samten, que coordena o Centro de Estudos Budistas Bodisatva (CEBB). Espalhada em diversos lugares do Brasil, no estado a organização situa-se no Caminho do Meio, estrada de Viamão que liga a cidade a Porto Alegre.

A iniciativa tem apoio de outros grupos religiosos, entre eles o Instituto Zen Maitreya – Zendo Diamante. Representante desta organização budista, o monge Seikaku conta que Lama Samten tomou a iniciativa de fazer o documento e enviar a pessoas que são simpatizantes da causa, e não só a budistas. A carta traz um posicionamento em relação a Bolsonaro e aos riscos de sua reeleição. O principal deles é uma possível guerra civil.

“Nós somos pacifistas, achamos que esse clima que se criou, que se vive hoje no Brasil, é um clima de promoção da intolerância e da violência, nós não podemos apoiar isso, porque isso aí vai nos levar a uma conflagração nacional. Eu temo muito que a gente acabe num clima de guerra civil, porque um dos processos preparatórios de uma guerra civil é exatamente a promoção de uma cisão dentro da sociedade” afirma Seikaku.

Ao explicar o documento, o monge disse ainda temer o projeto de Bolsonaro que está armando a sociedade, através da facilitação do acesso ao uso de armas. Chama a atenção para a questão também das milícias. "O projeto político do Bolsonaro é fazer do Brasil o que foi feito no Rio de Janeiro, que hoje é um estado no qual as milícias já substituem o Estado em 70% dos bairros."

O monge lembrou ainda que numa entrevista no horário nobre da Globo, no momento do Jornal Nacional, Bolsonaro disse: "Olha, nós acreditamos que as eleições não vão resolver nada. Nós temos que ter uma guerra civil, tem que morrer 30 mil pessoas pelo menos, daí para mais. Vão morrer crianças, vão morrer velhos, vão morrer pessoas, que é lamentável que isso aconteça, mas é inevitável".

Ele continuou criticando o projeto neofascista: “Bolsonaro está querendo nos levar para o caos, para se aproveitar do caos e colocar gente armada que não conversa mais com ninguém, que se julgam os donos da verdade e que vão querer na marra silenciar as pessoas que pensam de maneira diferente. Aí entra também esse fundamentalismo religioso, é exatamente no plano religioso a reprodução dessa intolerância política e numa pretensa fundamentação religiosa. Quando as religiões deveriam estar promovendo a paz”, afirma.

De acordo com Seikaku, o Brasil vive uma patologia civilizacional e está no fim do processo civilizatório. "Quando comecei a atuar no movimento ecológico, há mais de 50 anos, eu tinha dentro do meu horizonte de preocupações a questão da inviabilidade do processo da civilização industrial capitalista. Mas eu pensava que nós tínhamos ainda muito tempo pela frente. Naquela época eu achava que dava para evitar o pior”, recorda.

Seikaku é o nome budista adotado pelo ex-presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural ( AGAPAN), Celso Marques.

Mantras e atitudes que levaram a II Guerra Mundial

Ele avalia o bolsonarismo e inclusive seus lemas, que chama de mantra "Deus, pátria e família e Brasil acima de tudo e Deus acima de todos". Os compara com os usados por Hitler na Alemanha e Mussolini na Itália, na construção dos piores totalitarismos da história, no século XX.

“O Hitler aparecia assim seguidamente com criancinhas no colo, fazendo carinho em criancinhas. Parecia uma pessoa muito vinculada a tradições, vamos dizer de respeito à família. O fascismo italiano colocava muito mais a questão de Deus. Eu acho que é muito importante um exemplo mesmo dessa perversão, vamos dizer assim, da religião, porque a religião deveria ser um meio de pacificação da sociedade. O que nós estamos vendo aqui, que vimos no fascismo, vimos no nazismo e estamos vendo atualmente é a utilização da religião na promoção do ódio, na promoção da intolerância, na promoção de todos os valores que são antivalores mesmo”, avalia.

Seikaku aprofunda a questão e recorda que “foi uma das motivações fundamentais que deram origem à Segunda Guerra Mundial, que foi uma monstruosidade, uma grande tragédia civilizacional, que nós ainda não saímos dela. Nós continuamos em guerra. Porque realmente o estado de normalidade desse capitalismo que existe aí é um estado de guerra, e que hoje atinge quase que dimensões obscenas.”

Para ele, a situação pela qual passa o país é muito parecida. "Quando se vive num país como o Brasil, no qual a Constituição é constantemente desrespeitada, violentada, nós estamos vivendo um contexto de barbárie. Um contexto que vai contra a própria ideia de civilização. Então nós estamos vendo pessoas que inadvertidamente, muitas vezes com a melhor das boas intenções, estão sendo manipuladas, estão sendo agentes de um processo de obscurantismo. De um fundamentalismo que é extremamente burro e dirigido, muitas vezes, por pessoas mal-intencionadas, das lideranças desses movimentos”, afirma.

Veja a íntegra da carta

Fé na Democracia

O Brasil está num momento muito grave, no qual a democracia está sendo questionada sistematicamente, inclusive com sérias ameaças ao equilíbrio entre os poderes, assegurado pela Constituição Federal Brasileira, e à própria Constituição, pilares de uma nação republicana. Isso resulta em descrédito das pessoas nas instituições.

A corrupção, com desvio de recursos públicos e emendas parlamentares obscuras, se apresenta como um comportamento endêmico ao longo de nossa história, sob as mais diferentes formas, comprometendo políticas de governo, empresas públicas, beneficiando políticos, empresas e seus afiliados. Além disso, o cerceamento dos instrumentos e estruturas de investigação, traz grande prejuízo aos valores democráticos.

Na economia, a alta de preços dos produtos necessários à sobrevivência oprime as famílias e leva ao endividamento, a falta de empregos tira a perspectiva de futuro para milhões de pessoas e a fome reaparece com potência, chegando a 33 milhões de pessoas.

As florestas e biomas, as águas, fundamentais para a existência da biodiversidade e manutenção da vida no planeta, são constantemente ameaçados, destruídos e desprotegidos pelas autoridades, trazendo severas mudanças no clima e, com isso, toda a vida humana poderá ser sucumbida.

As comunidades tradicionais, em especial os Povos Indígenas e Quilombolas, estão sendo impelidas à condição anterior à Constituição de 1988, deixando de ser reconhecidas nos seus direitos fundamentais, voltando a ser ameaçadas e retiradas de seus territórios por força das invasões de suas terras, queimadas, grilagem, garimpo e narcotráfico.

A educação pública brasileira está fora das prioridades, sofrendo redução drástica de recursos, difamação do ensino e dos profissionais, e descaracterização das estruturas educacionais, em todos os níveis. Soma-se a isso a ausência total de diálogo e o autoritarismo governamental.

A Pandemia de Covid evidenciou o movimento de descaracterizar o Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS), através da ausência de definições e de coordenação no nível federal, acrescida das orientações equivocadas e sem comprovação científica na prescrição de tratamentos. A demora na aquisição de vacinas e os maus exemplos quanto à sua importância corroboraram para o seu descrédito.

A violência é aquecida pela facilitação do comércio e aquisição de armas e por falas de ódio que colocam as pessoas em permanente estado de tensão e aflição, aumentando a insegurança, a intolerância religiosa, a discriminação racial, territorial, de gênero, sexual e de afetos.

Nesse sentido, propomos valores que consideramos fundamentais na definição do próximo presidente do Brasil e de seus auxiliares, assim como no posicionamento das instâncias legislativas e judiciárias, com respeito à Constituição e às Declarações e Convenções Internacionais referentes aos valores e direitos fundamentais dos seres humanos e da biodiversidade.

Conclamamos por:

Direito à vida digna, sustentável e preciosa. Bem-estar físico, emocional e social. Redes humanas assentadas em compaixão, pacificação, valorização, respeito e lucidez.

Uma cultura de paz, em todos os níveis e em todos os lugares, opondo-nos às visões autoritárias, sectárias, armamentistas e violentas nas disputas políticas e no convívio social. Uma paz que nos permita falar e ouvir com abertura e interesse.

Justiça social e liberdade. Acesso amplo às condições básicas (físicas, emocionais e sociais) de apoio à vida: infraestrutura básica; alimentação de qualidade; saúde integrada e preventiva; segurança física e emocional; justiça ampla e restaurativa; educação que inclua o livre pensar, o respeito à diversidade, o mundo interno e as emoções; liberdade de movimento, pensamento e expressão. Nesse sentido ratificamos o contido no art. 6 da Constituição brasileira e reforçamos o caráter de igualdade para todos dessa proposição.

Respeito à diversidade religiosa, à laicidade do Estado e valorização das diferentes culturas e expressões que compõem nossa sociedade, incluindo os povos tradicionais, as expressões e modos de vida de matriz africana, as diferentes culturas e religiões, as pessoas com deficiência, as mulheres, as diferentes expressões de gênero, sexualidade e afeto. Uma postura que vá além da tolerância: que inclua generosidade, respeito e um interesse genuíno por todos os humanos.

Proteção, apreciação e reconexão com a natureza, a partir da consciência da interdependência entre toda a vida na Terra e da compreensão dos impactos de nossos movimentos nos diferentes grupos humanos, nos animais e vegetais, na terra, nas águas e na atmosfera. A proteção dos ecossistemas e o fortalecimento da Soberania Alimentar e das práticas agroecológicas, familiares, saudáveis, orgânicas, integradas ao ambiente e às culturas tradicionais.

Auto-organização e redes de apoio, através do favorecimento da formação de redes baseadas em solidariedade, apoio mútuo e visões não sectárias de coletividade. Construção de espaços múltiplos de diálogo, de associações comunitárias, de fomento de projeto e de ações construídas coletivamente de forma horizontal e descentralizada.

Garantia da democracia e respeito à Constituição, com participação ampla da sociedade em conselhos municipais, estaduais e federais. Comunicação pública ampla e transparente entre governos e sociedade civil. Mais espaços de abertura para que a sabedoria das diferentes redes possa se traduzir em políticas públicas responsáveis e efetivas.

Autodeterminação das nações e protagonismo brasileiro no fortalecimento da paz e relações de cooperação, assim ratificamos a carta das nações unidas que afirma em seu art. 1, ítem II: Desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal. Um protagonismo que sempre exerceu e sempre foi reconhecido como uma liderança latina na diplomacia mundial.

Com isso acreditamos que os postulantes ao mais alto posto da nação possam se colocar numa posição elevada, de interesse real pelo país, cuidando das pessoas e da natureza, de forma pacífica, gerando esperança, confiança e alegria num futuro respeitoso, honrado e altivo.

Outubro de 2022


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Edição: Marcelo Ferreira