Rio Grande do Sul

Coluna

Estamos todos exaustos

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"Que possamos deixar esse amor a si mesmo - narcísico - um pouco ao lado e não tomar qualquer diferença uma ameaça" - Arte: Hans Feibusch - óleo sobre lienzo
O apagamento das diferenças é a raiz de todo regime totalitário

O segundo turno das eleições não trouxe nenhum mistério. Desta vez, tanto os místicos quanto os cientistas políticos convergiram em suas previsões: haveria uma disputa acirrada sobre a escolha presidencial no Brasil. 

Hoje, tudo está acontecendo como previsto, para o alívio daqueles que se sentem ansiosos frente ao novo: enxurrada de fake news, conflitos, discussões, agressões físicas e verbais, recepção da Polícia Federal por tiros de fuzil e granada, pressão por votos, deslegitimação das escolhas individuais, saturação de informações dentro das bolhas que até então eram redutos de saúde mental e todo adjetivo que tenha faltado neste parágrafo e que remeta à intolerância frente às diferentes visões de mundo. 

Mas talvez uma palavra seja capaz de finalmente unir os brasileiros: exaustão.  Independente da escolha que será feita no dia 30 de outubro, provavelmente você que acompanha e participa deste embate está exausto neste exato momento. Nos últimos dias todos temos vivido uma experiência de guerra discursiva, um embate que nos fadigou, desfez laços e distanciou ainda mais aqueles que não apostaram na mínima possibilidade da palavra circular. 

Nos sentimos pouco escutados, cansados, com medo, revoltados, indignados, decepcionados e desiludidos. Duramente marcados pela atual impotência de se fazer compreender, Ó Pátria amada, Idolatrada, Salve! Salve! E as perguntas se repetem de ambos os lados: Como assim você vai votar nele? Depois de tudo o que ele fez?  Eu jamais esperaria isso de você, tão inteligente, etc.

E então, após a apuração dos votos, a metade de nós estará enlutada. Lambendo feridas e tentando juntar os restos de um ideal estilhaçado. A reação à perda comporta um doloroso abatimento e como em todo processo de luto, será necessário um grande trabalho psíquico. Tão importante quanto entrar em contato com a dor da perda é conseguir reunir o que restou e seguir em frente.

E aos vitoriosos, não apenas festa, mas o encontro com o real de um Brasil em frangalhos. Há uma imensa crise instaurada, além da econômica, claro. Vivemos a crise na capacidade de tolerar a alteridade do outro. Respeitar a condição de que o outro é outro. Entender que o vizinho ao lado tem uma forma diferente de ser e existir no mundo. 

O apagamento das diferenças é a raiz de todo regime totalitário. É imprescindível retomar que embora “somos todos poeira de estrela”, como declarou o astrônomo Carl Sagan, foram as diversidades de eventos adversos que propiciaram que evoluíssemos até aqui. 

Que possamos deixar esse amor a si mesmo - narcísico - um pouco ao lado e não tomar qualquer diferença uma ameaça. O que chama a atenção no mito de Narciso é que justamente porque “Narciso acha feio o que não é espelho”, que o mesmo fica hipnotizado por sua imagem refletida no lago e no momento que tenta tocá-la, morre afogado.

O Brasil é reconhecido como um país diverso em todos os seus aspectos. Que nossa luta seja contra a incessante busca pela padronização de corpos, de religiões, de sexualidades, de existências. Mesmo exaustos, enlutados e desacreditados, é urgente combatermos essa posição infantil em que o diferente de mim é ameaçador.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko