À violência, simbólica e real, respondamos com fúria e afeto
Esse é o título de um texto imperdível, escrito pelo amigo professor Jorge Luiz Souto Maior e publicado em 2002. Inicia com uma passagem de Hannah Arendt, na qual ela afirma que a fúria irrompe quando há razões para crer que as condições em que estamos poderiam e deveriam ser mudadas, mas não são. Irrompe quando nosso “senso de justiça é injuriado”. Em seu texto, Jorge chama à leitura e à ação, todas as pessoas que “se enfurecem com a injustiça produzida cotidianamente”. Todas as pessoas que discordam da forma como o direito do trabalho “vem sendo construído, interpretado e aplicado”.
O caminho de descompromisso com as conquistas sociais já estava sendo trilhado. A Constituição já vinha sendo ignorada em tantos aspectos, como o da proteção contra a despedida arbitrária. Talvez não imaginássemos que tanta inércia e tamanha persistência na lógica autoritária e racista que sempre permeou as relações sociais no Brasil, fossem conduzir ao que hoje estamos vivendo. Ainda assim, já era possível intuir onde nos levaria a estrada de flexibilização e desmanche que estava sendo pavimentada.
Há 20 anos já precisávamos da fúria que nos impele à ação. Mas a maioria de nós preferiu a conciliação, o meio termo, a aceitação de pequenas derrotas em nome de uma harmonia que, no fundo, se sabia impossível.
Lembrei do texto ao ler notícia de decisão recente, da 5ª turma do TST, segundo a qual uma auxiliar de cozinha deverá pagar os honorários de advogado à reclamada, mesmo sendo pobre e, portanto, beneficiária da gratuidade da Justiça. A interpretação restritiva do resultado da ADI 5766 acaba, no limite, por neutralizar o efeito de correção contra a vedação de acesso à justiça produzida pela “reforma”. Alguns dias depois, a 17ª Turma do TRT da 2ª Região, por unanimidade, decidiu que um motorista de caminhão, que por seis anos realizou jornadas extenuantes, não tem direito à rescisão indireta do contrato de trabalho, porque - segundo esses julgadores - ele tolerou as condições impostas pela empresa. Portanto, perdoou a empregadora. Isso em uma realidade na qual perder o emprego é perder o acesso aos alimentos, remédios, roupas, moradia. Em um contexto jurídico, em que jornada extenuante equivale à condição análoga a de escravização (art. 149 do Código Penal).
Logo após ler essa notícia, recebi um vídeo do deputado Bibo Nunes, em que ele afirma que estudantes universitários de Santa Maria “merecem” ser “queimados vivos”. Santa Maria é a cidade das famílias que até hoje sofrem o luto pela tragédia ocorrida na Boate Kiss. Podia não ser, e isso não reduziria a gravidade da fala. Mas é, e isso torna o pronunciamento do deputado ainda mais impressionante. Ele diz, no mesmo vídeo, estar em “grande campanha” pelo candidato que hoje ocupa a Presidência da República. Aquele que há anos também usou o discurso do mérito para dizer a uma colega deputada que ela “não merecia” ser estuprada, por ser feia. Por fim, Roberto Jefferson ofendeu a ministra Cármen Lúcia e atirou contra agentes da Polícia Federal. Estava em prisão domiciliar, mas tinha granada em casa. Foi preso depois de negociar, sem tapa na cara, sem chute. Não foi colocado no porta-malas. Não foi assassinado, por asfixia, em uma viatura policial, como Genivaldo, nem morreu espancado na porta de um supermercado, como João Alberto. Ele não é preto nem pobre.
Os conteúdos dos dois vídeos, de Jefferson e de Bibo Nunes, são impressionantes, pelo despudor da violência, pela escolha das palavras, pelo desejo de eliminação. Assusta muito que o vídeo de Roberto Jefferson, por exemplo, tenha sido veiculado nas redes sociais da filha dele, uma mulher que aparentemente chancelou a misoginia criminosa do pai. Em Porto Alegre, o cantor Seu Jorge foi alvo de xingamentos racistas por ter feito o L com a mão durante um show em um dos mais conceituados clubes da cidade. Em áudio, um dos dirigentes do clube tentou justificar a reação de parte da plateia, como se houvesse alguma justificativa para o racismo.
A multiplicação de práticas de violência racista e misoginia, e de decisões que naturalizam a exploração sem limite dos corpos trabalhadores não é um acaso.
A escolha das pessoas pobres, negras e das mulheres como alvos preferenciais da violência social e política que marca a campanha eleitoral deste ano é a explicitação de uma racionalidade ainda não superada. A evidência do que realmente está em jogo nessa disputa. Não é uma escolha político-partidária. É o confronto de diferentes visões de mundo.
Quais corpos podem ocupar quais espaços? O que podemos fazer com nossa sexualidade? Qual o papel das mulheres na estrutura social? Por que precisamos trabalhar para comprar alimentos?
Essas perguntas, que nem aparecem nos debates ou campanhas, são as questões que verdadeiramente determinam, de forma consciente ou não, escolhas políticas que vêm sendo feitas e que parecem criar abismos em vez de laços. Votar é importante. Escrevi nesta coluna que assédio eleitoral é crime e que ninguém tem condições reais de saber em quem votamos. Mas o desafio verdadeiro não se resume a isso. Diz com a capacidade que precisamos ter, enquanto sociedade, de discutir com afeto e sinceridade o que realmente importa.
Entender como é possível invocar os valores da família para defender quem afirma que prefere um filho morto a um filho gay; quem afirma que “pintou um clima” com adolescentes de 14 ou 15 anos, passa por investigar o quanto ainda estamos vinculados aos valores que hierarquizam pessoas de acordo com a propriedade, a raça ou o gênero.
A incoerência no fato de um pretenso escolhido de deus ter deliberadamente atuado para impedir a compra de medicamentos que poderiam salvar tantas vidas ou debochado de quem morreu asfixiado durante a pandemia é apenas aparente. A história nos mostra o quanto é possível cultuar deuses que hierarquizam, separam vencedores de perdedores, vingam e matam.
As notícias falsas, o descompromisso com a verdade, revelam-se então como sintomas. Não constituem a causa de tanta irracionalidade. Antes, são consequências de uma luta desesperada pela conservação da ordem que por tanto tempo serviu apenas para parte dos corpos, brancos héteros e proprietários.
Daí porque transformou-se em uma cruzada divina. A luta do bem contra o mal. Há uma verdade escondida na aparente loucura da guerra santa. Estamos realmente disputando bem mais do que o discurso ou as posições de poder, que serão ocupadas nessa estrutura social excludente e perversa. Trata-se da explicitação de uma crise profunda, de valores e de vivências.
Perceber isso nos habilita a compreender a importância da participação ativa, amorosa e comprometida em tudo o que implica nossa vida comum. Nada de apatia, é preciso agir, é preciso encontro, diálogo, é preciso fúria. Não a que destrói; não a que agride e segrega. Aquela que nos faz movimento; em que “eu sou porque nós somos”, como diz a filosofia Ubuntu.
À violência, simbólica e real, respondamos com fúria e afeto. E com samba:
“E é prá chegar
Sabendo que a gente tem
O sol na mão
E o brilho das pessoas
É bem maior
Irá iluminar nossas manhãs
Não vamos deixar
Ninguém atrapalhar
A nossa passagem
Não vamos deixar ninguém chegar com sacanagem
Vambora que a hora é essa
E vamos ganhar
Não vamos deixar
Uns e outros melar
Oô eô eá!
E a festa vai apenas
Começar
Oô eô eá!
Não vamos deixar
Ninguém dispersar”
(Gonzaguinha)
* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko