É preciso barrar essa proposta escandalosa que expropria a renda dos mais pobres
Se havia alguma dúvida de que esse governo é para os ricos, não há mais. O ministro da Economia, Paulo Guedes, está propondo a quebra de uma tradição. Segundo notícias veiculadas recentemente nos grandes jornais do país, o governo está preparando proposta de desvinculação da correção do salário mínimo e das aposentadorias ao índice de inflação (INPC). O resultado disso é que o valor da correção dos salários e dos benefícios previdenciários poderá ser inferior à inflação, e não há dúvida de que esse é o objetivo principal da proposta. A Constituição Federal, de 1988, estabelece, em seu Art. 7º, inciso IV, que o salário mínimo precisa ter reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo.
A renda nacional é produzida por toda a sociedade brasileira através das inúmeras atividades econômicas. Uma parte desta renda se transforma em remuneração do capital, na forma de lucros e dividendos; uma parte constitui a remuneração do trabalho; e uma terceira parte se transforma em tributos que vão financiar as políticas públicas.
O Estado brasileiro, ao estabelecer, dentre os direitos trabalhistas, o salário mínimo como piso de remuneração pelo trabalho, e ao garantir a manutenção do seu valor no tempo, interfere deliberada e corretamente na distribuição da renda produzida socialmente, determinando, portanto, um limite para a liberdade plena do setor empresarial.
Quando o Estado estabelece ainda mecanismos que proporcionem ganho real ao salário mínimo, ou seja, ganho acima da inflação vinculado ao crescimento econômico, está também promovendo a distribuição aos trabalhadores de parte dos ganhos decorrentes do aumento da produtividade. O exemplo disso foi o acordo firmado entre o governo e as centrais sindicais em 2006, que passou a ser adotado em 2008, garantindo, além da reposição da inflação, o reajuste pela taxa de crescimento do PIB do segundo ano anterior (Lei 12.382, de 25 de fevereiro de 2011, artigo 2º).
A proposta de Emenda à Constituição que está sendo preparada pelo ministro Paulo Guedes e o presidente Bolsonaro retira a obrigatoriedade de se garantir a reposição da inflação do período anterior no reajuste do salário mínimo e dos benefícios previdenciários. Com essa medida, a renda dos trabalhadores e dos aposentados será certamente corroída pela inflação e perderá rapidamente seu poder de compra, em benefício das rendas do capital que absorverão, a cada ano, uma fatia maior da renda nacional. A redução dos custos do trabalho implica o aumento dos lucros.
Com a redução do valor das aposentadorias, o objetivo é reduzir os gastos públicos e possibilitar uma redução de tributos. Aliás, em 2016, o governo Temer já havia proposto em seu projeto de reforma da Previdência a desvinculação da correção dos benefícios aos reajustes do salário mínimo. A proposta do governo, portanto, privilegia o interesse do setor privado empresarial, às custas da precarização das condições de vida dos mais pobres, e aponta, mais uma vez, no sentido do Estado mínimo.
A Constituição Federal nos manda promover a redução das desigualdades sociais e não há dúvida de que, além de políticas públicas bem orientadas e tributação progressiva, uma das principais formas de cumprir este objetivo é garantir a valorização real do salário mínimo.
Importante ressaltar que no período de 2003 a 2016, o salário mínimo acumulou 59,21% de ganho real, acima da inflação, portanto. De 2017 até 2019, o ganho real concedido foi de apenas 0,79%. Já no período do atual governo, o salário mínimo não teve nenhum centavo de ganho real, e, além disso, propõe redução real do valor daqui para frente. Paralelamente, observa-se que a desigualdade social reduziu substancialmente entre 2004 e 2014, mas voltou a crescer de forma expressiva a partir de 2016.
A opção explícita do governo de promover a redução da remuneração do trabalho em benefício dos interesses imediatos do setor empresarial traz, em si, uma contradição relevante, pois afeta justamente aquelas rendas com maior propensão ao consumo e isso contribui para a persistência da crise econômica.
Ampliar a renda de quem ganha menos, especialmente em períodos de crise, constitui medida comprovadamente favorável à atividade econômica. Um exemplo muito claro do papel virtuoso da distribuição de renda pode ser observado no efeito produzido no aquecimento da economia pelo pagamento da renda emergencial de R$ 600,00, em 2020, que, no auge da pandemia da covid-19, reduziu pela metade a expectativa de déficit no PIB para aquele ano.
O que importa mesmo, neste momento, é que, caso essa proposta seja apresentada e aprovada pelo Congresso Nacional, os trabalhadores e os aposentados perderão capacidade de compra de produtos e serviços a cada ano, o que, certamente, fará aumentar a pobreza, a marginalização e a desigualdade social. É preciso barrar essa proposta escandalosa e impedir que o governo continue a transformar o Estado num instrumento de expropriação da renda dos mais pobres em benefício dos mais ricos.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko