“Nosso estado entendeu que é preciso subverter essa lógica de falta de representação negra nos espaços de poder. E isso se materializa não apenas na nossa chegada em peso na Assembleia Legislativa, mas também com a eleição da Daiana (Santos, vereadora e eleita deputada federal) e a importante votação da Karen. O Rio Grande do Sul mostrou que é preciso superar essa lógica da política feita por gente que não tem nem a cara nem a identidade do nosso povo”, destaca Bruna Rodrigues (PCdoB) em entrevista ao Brasil de Fato RS.
Com 35 anos, Bruna é vereadora de Porto Alegre, mãe e, atualmente, estudante cotista do curso de Administração Pública e Social na UFRGS. Além disso, preside o PCdoB na capital gaúcha, sendo a primeira mulher negra a dirigir um partido político na cidade.
Nascida e criada na Vila Cruzeiro, filha de empregada doméstica e gari, é uma das inúmeras filhas das políticas sociais. A partir de 2023, a parlamentar será uma das primeiras mulheres negras a ocupar a Assembleia Legislativa em seus quase 200 anos de história. Como metas, ela pretende ampliar o trabalho que já vem sendo feito na Câmara Municipal de Porto Alegre, como o combate a pobreza menstrual e o projeto que prioriza mulheres em situação de violência e mulheres que vivem em vulnerabilidade social, a luta pela vaga na creche.
Na entrevista abaixo, Bruna fala do feito histórico da representatividade no legislativo estadual, da sua história e do envolvimento com a política.
Brasil de Fato RS - Tu e a Laura se tornaram as duas primeiras mulheres negras na Assembleia. Gostaria que tu comentasse a importância desse momento, o que significa chegar lá depois de quase 200 anos de atividades de casa em um estado como o nosso?
Bruna Rodrigues - Durante a pré-campanha e até na campanha mesmo refleti sobre o quão simbólico e importante é a chegada coletiva de parlamentares negros e negras. Nós pouco ou nunca, no caso das mulheres negras, nos vimos ocupando esse espaço de poder. Tanto eu quanto a Laura sonhamos com isso: com a ruptura desse ciclo sem representação das mulheres negras.
Esse é um marco muito potente do levante que a eleição da Bancada Negra da Câmara Municipal de Porto Alegre despertou na sociedade. O povo preto precisa ocupar o parlamento e a chegada de não uma, mas duas mulheres negras, fala muito sobre essa tomada de consciência que conquistamos.
É importante contextualizar a nossa chegada. Nós temos uma Assembleia Legislativa que tem uma existência longa, e que nunca na história teve parlamentares mulheres negras. Mas quando olhamos para a limpeza, para a manutenção, quando olhamos para aquele espaço que sempre garantiram a estrutura lá, nós nos vemos.
Eu acho que olhar para Assembleia e refletir sobre a nossa chegada é olhar para lugares que há tempos nós mantemos a estrutura, mas nós não falamos do cotidiano da nossa vida. Isso quer dizer que uma parcela da população, uma parcela do povo nunca se viu lá, nunca teve as suas demandas.
Hoje as mulheres negras convivem com a mortalidade dos seus filhos, a luta pela vaga na creche, a distribuição de absorvente nas escolas. Nós temos aí uma vasta demanda e que nunca na história pode ser ouvida naquelas tribunas.
"Eu tenho uma trajetória de luta e de organização popular nessa cidade, isso é importante registrar" / Foto: Clara Aguiar
Então eu estou muito feliz de ser parte dessa voz que vai ecoar no estado. Nós batalhamos para que a luta antirracista fosse concebida, fosse entendida pelo estado do Rio Grande do Sul, e foi. E nós estamos felizes, vamos trabalhar muito, não vai ser fácil, nós sabemos, a nossa presença, a nossa chegada incomoda essa elite tradicional da política, mas nós estamos muito tranquilas, que a nossa chegada dialoga com sentimento social e com uma necessidade social.
Nosso estado entendeu que é preciso subverter essa lógica de falta de representação negra nos espaços de poder. E isso se materializa não apenas na nossa chegada em peso na Assembleia Legislativa, mas também com a eleição da Daiana (Santos, vereadora e eleita deputada federal) e a importante votação da Karen. O Rio Grande do Sul mostrou que é preciso superar essa lógica da política feita por gente que não tem nem a cara nem a identidade do nosso povo!
BdF RS - Falando em representatividade, a Assembleia terá 11 mulheres, dentro de 55 cadeiras...
Bruna - Temos aqui 11 mulheres, nem todas são mulheres que representam o sonho da dignidade e da igualdade. Tem uma parcela das mulheres aqui que reproduz toda a discussão machista que os homens proferem, toda a agenda machista que os homens impõe.
Tem um dito popular que uma grande camarada sempre me disse, a Jussara Cony: “Não basta ser mulher, precisa estar no lado certo da luta”. Portanto quando eu olho pra Assembleia, não basta ser mulher, precisa estar do lado certo da luta, precisa entender a importância das mulheres na política.
Eu acho que ainda tem os muito caminho para trilhar, eu acho que a batalha ainda é muito grande, eu acho que nós temos desafios que são enormes. Nós precisamos combater o analfabetismo político, esse é gigante, esse na minha opinião é o que faz com que o bolsonarismo se encontre com o berço que ele se desenvolve bem.
Precisamos fazer com que cada vez mais a política faça parte do nosso cotidiano.
BdF RS - Como essa eleição pode fazer a diferença?
Bruna - Essa eleição tem diversos significados: primeiro porque está sendo a oportunidade de derrotar um ciclo de descaso e destruição de sonhos e de políticas públicas. A pandemia desvelou o que há de pior no governo Bolsonaro, e isso mobilizou a indignação da sociedade.
Também foi durante esse período em que as pessoas enxergaram muito mais a importância da política para a transformação da realidade que vivemos. Então quando vemos mais de dois milhões de jovens fazendo seu primeiro título, quando vemos as pessoas discutindo e participando ativamente do debate público sobre as eleições, isso mostra que a diferença está sendo feita.
Precisamos fazer com que cada vez mais a política faça parte do nosso cotidiano, sem qualquer repulsa ou criminalização.
Essa política tradicional, ela nos enfrenta com muita violência, porém o povo nos trata com muito carinho.
BdFRS - Como foi fazer a campanha no contexto que estamos vivendo?
Bruna - A campanha foi dureza, falar da campanha é falar de muitas contradições, é falar de um ambiente completamente hostil, de uma campanha que fala de muita violência, que tem muitos embates. Porém é falar de uma campanha completamente afetuosa.
Eu me apresentei para cidade como uma mulher que trava boa batalha e que olha para política com carinho. Eu consegui, e eu sentia muito isso, ao mesmo tempo que era difícil ser uma mulher, mãe, trabalhadora, na política é muito difícil. Porque a política é organizada para os homens. Trazer a política para o campo das mulheres é um desafio, porque nós vamos enfrentar a violência política de gênero, vamos enfrentar os homens que dizem que esse espaço não é nosso.
Por outro lado, o povo foi muito afetuoso, eu nunca enfrentei uma campanha tão afetuosa por parte do povo, e tão raivosa por parte da organização política tradicional. Nós temos aí uma dualidade, um campo que se confronta, essa política tradicional, ela nos enfrenta com muita violência, porém o povo nos trata com muito carinho.
Nós temos lado, nós sabemos quem nós queremos representar. Eu fico muito feliz de representar essa parcela da população, que sempre esteve garantindo a estrutura desses espaços, mas que nunca tinha se visto utilizando a tribuna, vai se ver a partir do ano que vem.
BdF RS - Nessa eleição também teve um crescimento do uso das redes sociais. Como foi esse impacto em comparação com a ‘velha” política, sair às ruas?
Bruna - Eu procuro ter muita responsabilidade com a rede e com a rua. A rede social é um instrumento que amplifica a nossa voz, e que faz com que as pessoas consigam acompanhar o nosso cotidiano. Porém a necessidade de se manter na rua, ela é muito grande, e desafia, porque a rede social é uma discussão em tempo real, ela está aqui, ela tá presente.
Eu estou falando contigo, e se eu estiver ao vivo as pessoas estão me acompanhando. Mas o olhar, o contato, eu sou muito do contato, eu gosto muito de olhar para as pessoas, eu gosto muito de tocar nas pessoas, eu sou muito presencial, e eu não abro mão de ter essa rotina.
BdF RS - Vimos no pleito deste ano o crescimento do PCdoB, assim como de outros partidos de esquerda, ao mesmo tempo teve o crescimento do bolsonarismo. Como tu analisa esta situação?
Bruna - Eu sou a primeira mulher negra a presidir um partido político aqui em Porto Alegre. Levando em consideração que é o centenário, eu sou muito feliz de ser parte dessa geração que conduz o PCdoB nesse centenário.
O PCdoB é um partido que combateu a ditadura, que vivenciou a ilegalidade, que teve muitos dos nossos camaradas torturados, presos e inclusive mortos. Esses 100 anos marcam a nossa necessidade de se renovar, o PCdoB se reencontra, na verdade se ressignifica nesses 100 anos.
Nós temos aqui em Porto Alegre, nós tivemos a primeira bancada 100% negra e feminista, e agora nós replicamos ela tanto para deputado estadual como pra deputado federal. Isso quer dizer que o povo tem uma expectativa do PCdoB, e ele vem correspondendo essa expectativa.
Nós vamos seguir daqui para diante batalhando, a nossa sucessão na Câmara de Vereadores é tão de luta quanto nós. A primeira suplência é do meu amigo, do meu parceiro de luta Giovani Culau, e o movimento coletivo é uma gurizada batalhadora pra caramba e que tem tanto compromisso com a cidade quanto eu. E Abigail Pereira que é militante do movimento sindical, que é uma mulher histórica, de muita luta do PCdoB.
Então é sobre isso, é sobre o PCdoB se ressignificar nesses 100 anos, e tá aí correspondendo às expectativas do povo.
Essa chegada fala muito sobre uma parcela da população que vive dias muito difíceis, mas que porém nunca fez parte do cotidiano da política.
BdF RS - Tu é mãe, tu vem da periferia. Queria que tu falasse deste teu lugar e do encontro com a política?
Bruna - Venho da Cruzeiro, eu sempre falo, eu sou uma guria que conhece a política aos 16 anos, com uma filha nos braços. Eu conheci a Manuela D’Ávila, eu estava sentada no cordão da calçada da vila onde eu morava e a Manuela era candidata a vereadora e passava falando sobre a importância de mulheres como eu para a política.
Não era natural olhar pra política e ver uma mulher como eu, assim como não era natural ver uma jovem como ela. E eu achei que naquele encontro, eu tive um encontro muito feliz com a política. Eu era uma menina lá da Vila Cruzeiro que maternava na adolescência, e que precisava da luta pela vaga na creche para dar conta da maternidade.
Eu acho acho que é sobre isso, é sobre uma mulher que nunca se viu na política, uma mulher jovem, negra, da periferia, que nunca se viu em determinados lugares, que a partir da sua organização, da organização de tantas como eu, nós estamos lá.
É importante dizer que essa chegada não foi individual, ela não foi sozinha, não é um mérito próprio. É um sentimento da necessidade que se materializa na luta. Eu sou militante desde os meus 16 anos, eu tenho 35 hoje. Eu me filiei ao PCdoB quando tinha 16 anos, eu fui da União da Juventude Socialista e posterior eu fui presidenta da UAMPA (União das Associações de Moradores de Porto Alegre).
Então eu tenho uma trajetória de luta e de organização popular nessa cidade, isso é importante registrar. Porque quando falam da política, desconstroem a nossa chegada, e eu sempre falo sobre isso, porque é importante que as pessoas saibam que nós não brotamos. Nenhum de nós brotou da terra, todos nós nos construímos militantes há bastante tempo, inclusive é o que nos conecta, e todos nós fomos militantes desde a juventude.
É importante concebermos, entendermos que essa chegada fala muito sobre uma parcela da população que vive dias muito difíceis, mas que porém nunca fez parte do cotidiano da política.
"Vamos chegar na Assembleia de forma coletiva" / Foto: Clara Aguiar
BdF RS - A tua mãe tem um papel muito significativo...
Bruna - Minha mãe é uma mulher muito forte, a maior expressão da força e da coragem que eu tenho nessa vida é da minha mãe.
Teve uma situação, lá na Vila Cruzeiro, a minha mãe se colocou de frente de uma arma, um cara que era um cara muito violento, brigava com as crianças da comunidade. Nós estávamos jogando futebol e ele foi brigar com meu irmão, puxou uma arma, a minha mãe foi a pessoa que se colocou na frente daquela arma naquele momento.
Aquela mulher ali para mim, ela sabia que podia acontecer um monte de coisas, a minha mãe é essa mulher, que pelos filhos vira uma leoa. Ela criou cinco filhos assim, se colocando na linha de frente o tempo inteiro. Eu fico muito feliz de ser a filha dessa trabalhadora da limpeza urbana da cidade, a minha mãe é gari até hoje. E ela também chega no trabalho dela e encontra tantos como ela, e diz: dá pra vencer, dá pra ocupar, porque a minha filha tá lá.
BdF RS - Como será trabalhar dentro da Assembleia com um governo de direita, ou conservador, sendo Eduardo Leite ou Onyx.
Bruna - Independente do governo que for eleito nós seremos oposição, e uma oposição levando como pauta central as necessidades cotidianas do povo. O nosso povo vive a fome, vive o desemprego, vive a necessidade de uma escola de turno integral, vive a necessidade de combater a pobreza menstrual. Tu imagina que uma parcela da população, uma parcela das meninas do nosso estado deixam de ir pra escola porque não tem absorvente, usam miolo de pão, usam jornal dobrado. Isso precisa nos revoltar, nos indignar, e precisa também fazer com que consigamos mobilizar a sociedade para pressionar o governo.
Nós sabemos que a batalha é muito grande, sabemos que independente do governo eleito, nós teremos muita responsabilidade. Eu sempre falo que a experiência que nós tivemos aqui na Câmara, da bancada negra, a experiência dessa chegada coletiva, se por hora a coletividade nos faz conseguir enfrentar esse governo conservador que nós temos aqui em Porto Alegre, esse é o legado positivo. E vamos chegar na Assembleia de forma coletiva também.
Mas aqui, em especial, nós tivemos uma experiência, fui a primeira mulher a presidir a Comissão de Orçamento. Tudo que nós estamos falando aqui precisa se materializar no orçamento, porque se não tiver no orçamento não existe. Vamos precisar usar com a nossa inteligência, que nós adquirimos aqui na Câmara de Vereadores, para pautar o orçamento do estado, eu acho que essa é a nossa tarefa.
"Nenhum de nós brotou da terra, todos nós nos construímos militantes há bastante tempo" / Foto: Júlia D'Avila
BdF RS - Quais os projetos que tu vai levar pra assembleia?
Bruna - Os projetos que nós debatemos aqui na câmara, combate a pobreza menstrual, o projeto que prioriza mulheres em situação de violência, e mulheres que vivem a vulnerabilidade social, a luta pela vaga na creche é uma centralidade pra mim, eu sei que as mulheres não saem de casa se não tem a vaga na creche garantida. Então todas as batalhas que nós apresentamos aqui, elas são cabíveis pro estado, e essa base que nós vamos levar, foi isso que nós nos comprometemos com as pessoas.
BdF RS - E sobre segundo turno a nível nacional, como será?
Bruna - Agora é Lula, eu estou em campanha desde o dia seguinte da eleição. Final de semana agora eu estava com o Olívio na Restinga, nós temos agendas de centro.
Temos um desafio na eleição que é fazer com que as pessoas consigam vencer o medo. O medo tem nos paralisado, tem feito com que não saíamos na rua adesivados. E o medo é real, ele não é uma produção da nossa consciência. Esse medo tem base, eles são violentos.
Precisamos virar a chave do medo e ir galgando o nosso espaço, eles não são maiores que nós. Eu não acredito que o nosso estado seja regado de tanto ódio. Eu acredito que as pessoas não conseguem se conectar com a informação.
O sentido de verdade foi alterado, e nós precisamos restabelecer ele. E restabelecer ele é em contato cotidiano com o povo. Agora é derrotar o Bolsonaro, e aqui no estado derrotar o Onyx. Eu não faço apologia ao Leite, mas eu não tenho dúvida do dano que o Onyx representa pro nosso estado, e eu vou combater a chegada dele ao governo.
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Edição: Marcelo Ferreira