A vitória da esquerda nas periferias tem grande significado
Nos últimos anos, no Brasil, assistimos a popularização, nos meios de comunicação, da “cartografia eleitoral”: os mapas com os resultados das eleições em diferentes demarcações territoriais (regiões, estados, municípios, bairros, zonas eleitorais). Com a crescente “polarização” das eleições brasileiras em dois grandes blocos político-ideológicos, estes mapas ganharam visibilidade jornalística e nas redes sociais têm sido utilizados frequentemente para reforçar discursos ou narrativas sobre questões econômicas, sociais e culturais que envolvem as vitórias de um ou outro nos pleitos eleitorais em determinadas regiões.
Com relação à eleição presidencial, o que se nota é que pelo menos desde as eleições de 2014 os mapas eleitorais pouco têm se modificado, com uma forte hegemonia de votos do “centro-esquerda” e esquerda na Região Nordeste e uma hegemonia da direita no Centro-sul e Centro-oeste do país, neste caso coincidindo com as regiões mineradoras e do agronegócio exportador, notadamente o binômio “gado-soja”. Evidentemente que os mapas eleitorais devem ser analisados sob diferentes escalas, pois muitas vezes um vasto território pintado de vermelho ou azul pode dissimular desigualdades demográficas (a Grande São Paulo tem população equivalente à Região Norte) e diferentes resultados em escala mais local. E é esta a mais importante para entendermos a geografia política ou eleitoral.
Outro aspecto a ser considerado é a atual divisão político-ideológica da população. Com as transformações radicais no mundo do trabalho, notadamente a desindustrialização, a terciarização (predomínio do emprego nos serviços), a flexibilização, precarização e “uberização” do trabalho, a identidade de classe social (a “classe operária”, por exemplo), está enfraquecida em detrimento de identificações socioculturais como as de grupo religioso, identidade étnico-racial, de gênero e orientação sexual e socioterritoriais (periferias e comunidades). Sabemos também que determinados “nichos” eleitorais identitários (como, por exemplo, os grupos neopentecostais) estão hegemonizados por correntes ideológicas bem definidas e se temos territórios nos quais predomina esta população a tendência é que os resultados eleitorais reflitam esta composição. Também devemos considerar os territórios dominados por grupos armados (milícias e narcotráfico) e a influência desta dominação no voto das populações submetidas.
Entre 2018 e 2022 o mapa eleitoral dos municípios brasileiros pouco mudou, com algumas exceções, de regiões onde a direita havia sido hegemônica em 2018 e que agora “passaram” para a esquerda, como é o caso do município de São Paulo, o ABCD paulista, a Zona da Mata mineira, o Pantanal e o Sul do RS.
No estado do Rio Grande do Sul, a chamada Metade Sul foi hegemonicamente de Lula em 2022 com forte presença de Edegar Pretto (candidato a governador) na grande maioria dos municípios. Esta é, notadamente, a região com maiores desigualdades sociais no estado e o resultado pode ser comparado com outras regiões do país que sentiram o abandono e o desmonte das políticas sociais desde o golpe de 2016. Na Serra e Noroeste do estado, tradicionais regiões conservadoras, temos o predomínio do centro-direita e da direita. Esta coincide com a presença do agronegócio empresarial e familiar e da economia industrial de setores produtivos localizados, como o metalmecânico, o coureiro-calçadista e o agroalimentar e seu discurso empreendendedorista e de “eficiência”. É um fenômeno muito importante que atinge as classes trabalhadoras nas regiões mais desenvolvidas onde impera o legado conservador e o discurso moralista, que penetra e impacta as classes trabalhadoras. Com as notícias de pressões de grandes empresas pelo voto de seus trabalhadores, uma parcela desta “hegemonia” pode ser questionada.
Nas cidades médias e centros regionais, a divisão se manteve, com os centros da Metade Sul (Pelotas, Santa Maria, Rio Grande e Bagé) dando vitória à Lula e os da metade norte (Caxias do Sul, Passo Fundo, Bento Gonçalves e Santa Cruz do Sul) com a direita.
No município de Porto Alegre Lula venceu em oito das 10 zonas eleitorais com forte vantagem em territórios da periferia como a Lomba do Pinheiro e a Restinga. A direita venceu em seus tradicionais territórios de classe alta e média alta e também com alguma força nos bairros da baixa classe média onde o pensamento neoliberal-conservador tem se enraizado. A vitória da esquerda nas periferias tem grande significado, tendo em vista que nos últimos pleitos municipais a direita saiu vencedora com ampla votação. Pode indicar uma tendência de virada de voto e deve ser analisada com mais cuidado pelas forças políticas populares tendo em vista a manutenção desta hegemonia nas próximas eleições.
Na Região Metropolitana de Porto Alegre observamos a vitória de Lula e maior proporção de votos de Edegar Pretto nos municípios do entorno de Porto Alegre, refletindo a extensão da periferia da metrópole para estes territórios. Por outro lado, na porção norte da RMPA, que chamamos RMPA-Vale, o Vale do Sinos e região calçadista, os candidatos de centro-direita e direita foram mais votados. Neste caso, a região se soma ao amplo arco de hegemonia do centro-direita que abrange desde a Serra Gaúcha até o Noroeste do estado.
Cabe ainda algumas considerações sobre os/as deputados/as federais e estaduais. Com relação à população observamos uma “sobrerrepresentação” da capital no poder legislativo, tanto federal como estadual. Porto Alegre possui cerca de 13% da população do estado segundo estimativas do IBGE e elegeu 25% dos/as deputados/as federais e 34% dos/as estaduais. O “interior” do estado, por sua vez, com 62% da população elegeu 64% dos representantes no legislativo federal e 54% do legislativo estadual. Fica sub-representada a Região Metropolitana (sem Porto Alegre), que com 25% da população tem 9% e 10% dos representantes nos legislativos federal e estadual. Mas neste caso ainda teríamos que analisar aqueles representantes que tem uma pauta mais territorial, de representação regional, de trazer recursos para suas regiões e aqueles/as que tem uma pauta mais geral, do debate do papel do estado e das políticas sociais para toda a população ou para determinadas categorias e/ou grupos sociais. Isto somente pode ser feito analisando a votação dos/as candidatos/as por seção e identificando, assim, seus nichos eleitorais.
Uma última questão, importante nestes tempos de redes sociais e algoritmos eleitorais. Através de ferramentas informacionais é possível proceder a intersecção da cartografia eleitoral como perfis socioeconômicos e socioculturais da população. Estes instrumentos de análise têm servido para a rápida disseminação de informação e contrainformação e “fake News”, o que setores de direita e extrema-direita têm feito com frequência no só no Brasil como em outros países da América Latina e no mundo. Cabe à esquerda e aos setores populares se apropriarem destas ferramentas para responder com a mesma celeridade os boatos digitais. Evidentemente que estas ferramentas não substituem a conversa e o convencimento no dia a dia, de porta em porta, no pé no chão.
* Paulo Roberto Rodrigues Soares, Pesquisador do Observatório das Metrópoles.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko