A obra do Coletivo Catarse já é sucesso e aposto que concorrerá a prêmio no Festival de Gramado
Meu tema de hoje se liga ao Coletivo Catarse (CC), que faz aniversário de maioridade (18 anos) neste dia primeiro de outubro. O CC convida todos que compartilham o espírito do Clube de Cultura (Rua Ramiro Barcelos, 1853) e o que ali floresce desde sempre, a uma festa que, mais do que a data, vai antecipar desafios e conquistas a serem mapeados e consolidados como pauta comum, a iniciar de fato neste dia 2 de outubro, com o saneamento do esgoto que domina a política nacional.
Convenhamos, domina também nossa política estadual e municipal. Mas disso também estaremos cuidando dia 2, com Edegar, com Olívio e deputados que não carregam a vergonha associada aos números 22 (PL), 51 (Patriota), 44 (União Brasil), 20 (PSC) 11 (PP), 14 (PTB), 22 (PL), 10 (Republicanos) e 30 (Novo), rótulo dos que acabaram com a aposentadoria e bloquearam recursos públicos para saúde e educação (com a lei do teto de gastos), que apoiaram o orçamento secreto, que acabaram com direitos trabalhistas e dão base ao presidente que mente além de serem declaradamente contrários ao serviço e aos servidores públicos. Basta desta gente, e vamos nos livrar de boa parte deles neste dia 2/10. Só isso já valeria a festa.
Mas o tema desta coluna pretende ser o Coletivo Catarse, as suas realizações, a sua obra mais recente e a sua festa deste sábado.
Pensem aí se vale ou não vale uma festa.
O CC é uma cooperativa de 12 pessoas que fazem por acontecer no campo da renovação cultural e da comunicação participativa. Sei disso porque conheci o grupo através de alguns camaradas que, com atitudes e sem conversa fiada, conferem ao CC a personalidade que dali irradia. Como relato, para mostrar que são todos farinha do mesmo saco, vale dizer que inicialmente topei com o Jefferson. Na década passada, cobrindo lutas do MST, ele estava registrando aquela dificultosa marcha rumo a São Gabriel e a entrada, histórica, daquelas famílias na fazenda Southal, realizada após o crime onde Elton Brum foi morto à bala, pelas costas. Porque eles não desistiram, graças à organização popular e com o apoio de mídias tão comprometidas com a vida quanto opostas ao que circulava nas TVs e grandes jornais, hoje aquele simbólico, sempre endividado e pouco produtivo latifúndio, finalmente está contribuindo para o desenvolvimento do RS.
Mais adiante, conheci o Marcelo Cougo. Ele estava realizando um dos documentários produzidos pelo CC, sobre a luta das mulheres na ocupação Mirabal. Através do Marcelo, que passei a reencontrar em atividades do Coletivo a Cidade Que Queremos, do Clube de Cultura e coletivos antifascistas de torcedores "futebolistas", passei a entender a realidade dramática e o esforço do processo organizativo de povos indígenas que, abandonados pelos poderes públicos de nosso estado, vêm ganhando visibilidade pelo esforço voluntário e por documentários produzidos pelo Coletivo Catarse.
Finalmente, para chegar ao ponto que dá título a esta coluna, Dilúvio - o riacho que a cidade esqueceu, em algum momento acabei conhecendo o Gustavo Türck. Agitador cultural de enorme criatividade, este camarada liderava o programa Heavy Hour, com seu humor ácido e o apoio daquela turma que não passa de uma dúzia, mas parecem 13. Músicas, debates, deboches e chamados à conscientização em ritmo de alegria anarquista resumem o Heavy Hour de todas as quintas.
Pois bem, e esta coluna poderia começar assim: há alguns anos, passando pela Erico esquina com a Ipiranga, Gustavo Türck viu um camarada jogando uma tarrafa no riacho Ipiranga.
Na frente da Zero Hora!!! Estava pescando de rede.
Tainhas bem bacanas haviam subido o riacho e estavam ali, trancadas no degrau do leito, em dia de água quase limpa. Elas vinham da Lagoa dos Patos, longa viagem na busca de lugar para desova. Por algum motivo estavam subindo, contra a corrente, rumo às nascentes do riacho Dilúvio. Procuravam águas mais limpas do que as encontradas em sua foz, no Guaíba, para povoar com seus alevinos. Faziam o caminho inverso dos barcos de pescadores que aqui habitaram desde milênios até que as obras de “revitalização”, usando o mote da Enchente de 41, iniciaram a obra de destruição das vidas que insistem em acompanhar aquele curso d´água.
Gustavo viu a importância daquela realidade inusitada, e a usou inicialmente como tema para alguns programas do Heavy Hour, que depois articulou em história completa, com dois capítulos que acabaram reunidos no belo curta metragem Tainhas do Dilúvio.
E este é o fato: os ativistas do Coletivo Catarse entenderam que no esforço das tainhas contra a poluição de um riacho que a especulação imobiliária pretende destruir se reproduzia algo de revolucionário, a ser entendido e explicado a todos. Estavam certos. O choque entre as forças da natureza empurrando a vida na contramão de ações humanas que, em benefício de alguns, desprezam valores reais, de fato não deve passar desapercebido.
Ali, naquele microdrama de tainhas que só pretendiam povoar as nascentes do Dilúvio, se refletia a luta dos Sem-terra, das Mulheres da Mirabal, dos povos Guarany, Kaingang e todos aqueles oprimidos pela força de interesses fascistas. Ali estava a necessidade de democracia participativa com o engajamento consciente dos porto-alegrenses que, assim, esperamos, haveremos de contribuir para um mundo mais justo, mais includente, mais amistoso à natureza.
Percebendo isso, e com apoio do Sindicato dos Bancários, o Coletivo Catarse produziu a metáfora didática deste drama universal, no filme documentário Dilúvio – O riacho que a cidade esqueceu.
Lançado neste dia 27/9, em pré-estreia, com participação de Anahi Fros, Daniele Vieira, Renato Barcelos e Ana Guimarães, a obra já é sucesso e aposto que concorrerá a prêmio no Festival de Gramado.
Baita filme, que como tentei dizer, tem a marca e o calibre do Coletivo Catarse.
Recomendo e adianto: os/as/xs que perderam a oportunidade de assistir nesta semana, fiquem atentos/as/xs e não vacilem. Dia 1, no Clube de Cultura, poderemos não apenas discutir o tema, rir, dançar e tomar umas, como também combinar a festa do dia 2 de outubro e as ações que se seguirão. Além disso, podemos agendar participação no lançamento formal, na estreia de fato deste filme, que acontecerá na Feira do Livro de Porto Alegre 2022, já no Brasil sem Bolsonaro.
Tempo em que estaremos envolvidos com o mundo real, sabendo que aquela gente que hoje se exibe lambendo cano de escopeta estará de volta a seus esgotos entubados, sob ameaça de cadeia, respondendo processos criminais.
Para finalizar, relacionando o que comentei acima e a história coletiva que estamos sempre ajudando a construir, com nossas ações e omissões, me apoio na conexão que Daniele Vieira estabeleceu, entre este filme e a memória coletiva de nossa cidade, para fechar esta conversa.
Ela lembrou que a Cidade Baixa, que se desenvolveu ao sul do morro que liga a Duque de Caxias à Independência, era uma zona pobre. Ali se abrigavam os habitantes da Ilhota, formada por uma alça do riacho, e o Areal da Baronesa. O riacho os separava e era o caminho por eles seguido, até o rio e para alcançar o centro, de barco. Com a enchente de 41, interesses econômicos trataram de fazer o “saneamento” e “ocupar” aquele território. Assim, ao mesmo tempo em que o riacho era deslocado de seu leito, se desmontavam o cotidiano, as possibilidades, a vida e o futuro daquelas pessoas. Pretos e pobres, foram apagados no decorrer de uma obra que se arrastou por 20 anos enquanto o riacho perdia sua identidade, passando a ser mera calha de dejetos, afastando de vez nossa cidade da natureza que a moldou.
Como comentou um dos presentes (na pré-estreia do Dilúvio – riacho que a cidade esqueceu), no Cine Bancários: “com aquele afastamento da natureza, perdemos parte de nossa humanidade. E não existe preço para isso”. E, como disse outro, “o que se passou com o Ipiranga acontece com todos seus afluentes e com muitos outros rios e riachos desta e outras regiões metropolitanas”. E acontece também o oposto, em outras partes do mundo, evidenciando que o amadurecimento dos habitantes pode se dar em rumo diverso do pretendido pelos que se consideram donos desta cidade.
E neste sentido, vale encerrar parabenizando o povo do Coletivo Catarse, que não nos permite esquecer: o que sustenta nossos direitos são nossas ações conscientes para com os compromissos humanos. Verdades que nos pegam pela emoção, pela alma, reclamam nosso envolvimento pela retomada da democracia e em defesa de bens comuns, nossa parte na luta maior, contra aqueles elementos e atores que se colocam a serviço da morte e do apagamento de todas as histórias de amor em vida. O Dilúvio, somos nós.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko